Um diálogo bem escrito diz muito sobre a qualidade do roteiro (e claro, do escritor por trás do mesmo), ao mesmo tempo que nos apresenta melhor o mundo e os personagens nele contidos, e, honestamente seria muito fácil encontrar dezenas e mais dezenas de exemplos para demonstrar exatamente isso.
No entanto, eu acredito que mais que citar exemplos e detalhá-los em diversas mídias, eu posso demonstrá-lo através de um exemplo prático de uma breve troca entre dois personagens em duas séries distintas de quadrinhos, um exemplo negativo (vindo de Daredevil 193 de 1983 escrita por Larry Hama) e um exemplo positivo (da primeira edição da mini-série G.O.D.S. de 2023 escrita por Jonathan Hickman).
Eu não pretendo considerar o restante das respectivas histórias, apenas esse breve diálogo nessas páginas em particular e o que eles dizem e transparecem entre os personagens, e, porque eles funcionam ou não.
Em Demolidor 193, vemos uma no primeiro quadro, mais alongado para demonstrar a mulher em pé de corpo inteiro em relação a Matt que está sentado, temos uma interação entre uma mulher loira com um rosto carrancudo que se aproxima de Matt Murdock e lhe diz "O que você está encarando?", ao que Matt responde "Nada, eu sou cego".
Essa já é uma interação bastante desconfortável entre os personagens, mas logo no quadro seguinte vemos a mulher loira reagindo de maneira exagerada (com o quadro enfocando numa situação dramática em que ela está com o olhar para cima enquanto a boca escancarada diz) "Meu Deeeeeus! Isso é tão embaraçoso! Você deve imaginar que eu sou uma idiota insensível, e você está certo, eu poderia...", no que Matt, conciliador, tenta responder "Não, não, não. Imagine. Na verdade minha resposta foi um tanto ríspida. Eu recentemente me adaptei à minha cegueira que muitas pessoas mal percebem. Amigos?"
O próximo quadro traz os dois continuando a interagir (e agora a se apresentar), mas fica claro que o tom da conversa mudou consideravelmente. Da primeira interação fechada para um seguinte momento de constrangimento, ambos já estão de mãos dadas e conversando de maneira mais aberta.
A loira então se apresenta: "Claro! Meu nome é Willow. De fato Willow, a Fantasmagórica: Mágica Extraordinária! Ato principal do lounge do navio. Que tal ser meu convidado para meu show de hoje?". Matt então responde, deixando claro que ele estava atendo ao que ocorria com a garota e pergunta "Isso não causaria mais problemas com seu namorado?" para a tréplica "Carmine? Eu o conheci hoje. Imaginei que nos entenderíamos por ele ser um magricela alto como eu..." e eu acredito que esse seja especificamente a parte mais rídicula dessa conversa toda.
Willow se apresenta como uma mágica que convida Matt para assistir seu show e ele imagina imediatamente que ela está dando em cima dele ou que isso causaria algum desconforto dela com o namorado (considerando que ela é uma artista que se apresenta em público - e, nesse caso específico, em público em um navio), e tudo isso depois de meras duas interações que denotam claramente que esses dois não começaram em bons termos. Curiosamente, a moça que chega emburrada por um sujeito que a encarava momentos atrás parece ignorar completamente que ele estava de fato prestando atenção na interação dela com o namorado...
O quadro final nos mostra uma visão mais geral (do barco à distância) para concluir as apresentações entre os dois, começando com Willow concluindo seu diálogo do quadro anterior "...Mas ele se demonstrou um verdadeiro estranho! Ei, eu disse o meu nome, qual é o seu?" ao que o protagonista da revista responde "Matt. Matt Murdock, um advogado extraordinário e um ótimo jogador de poker", ao que eu não sei dizer o motivo para o comentário sobre poker (que inclusive eu não me lembro se tem qualquer relevância mais tarde na história) e a moça responde "Ha! Prazer em conhecê-lo, senhor Murdock".
A interação é mal trabalhada de começo ao final, truncada e forçada. Willow que obviamente estava incomodada no começo, não apenas se vê constrangida ao ser corrigida como muda completamente de humor com isso, ao mesmo passo que Matt inicia a interação de maneira grosseira (quando podia facilmente ficar calado e deixar os ânimos se acalmarem) e tudo caminha num ritmo acelerado que claramente aponta que essa personagem será importante mais tarde, não?
Você pode não saber o que vai acontecer a seguir (e honestamente não faz tanta diferença para o experimento aqui demonstrado) mas fica claro por essa interação truncada e forçada, que esse diálogo entre os dois era necessário para mover a história adiante. Matt precisava conhecer Willow (e saber que ela trabalha com mágica além de saber dos problemas dela com seu namorado), ou mais importante, nós leitores precisamos conhecer Willow para que a revelação adiante (de que ela é uma criminosa) tenha algum significado.
Isso obviamente transcorreria bem melhor de outra forma (ou para ser honesto outras dezenas de formas), e principalmente sem essa interação nada natural destes personagens. Esse é um dos grandes problemas da má escrita: A situação não faz sentido contextual.
Focando apenas na interação, Willow que está constrangida com o que disse a um homem cego revela que trabalha com mágica e convida esse homem para o show... Quer dizer, ela espera que ele vá se divertir em um show de mágica sem ver os truques e efeitos? Por outro lado, pouco depois Matt, que a pouco dissera que é cego, se declara um excelente jogador de poker, e, a moça que fizera caras e bocas pelo seu constrangimento não se vê minimamente intrigada com a ideia de um homem cego jogando poker a ponto de perguntar sobre isso? É o ponto desse comentário uma mera piada boba para quebrar o gelo (sabe, ha, ha, um jogador de poker cego)?
Quer dizer, não que seja impossível dele fazer isso (e existam jogadores cegos) eu confesso que isso imediatamente chama atenção. Eu quando li o comentário já parti para pesquisas no google sobre o assunto. Essa garota que estava furiosa e desconfiada, deixa passar como se fosse nada?
Considerando o que aprendemos depois nessa edição - que ela é uma criminosa e, não apenas isso, a criminosa que o Demolidor está procurando naquele momento específico - faz sentido que Willow interaja com pessoas desconhecidas em um barco e não que ao contrário se mantenha o mais discreta possível?
Ao mesmo tempo, da perspectiva de Matt Murdock/Demolidor que na época tinha sua identidade secreta, faz sentido que ele, o advogado da Cozinha do Inferno de Nova Iorque esteja naquele barco sozinho em busca de um criminoso - onde por coincidência o Demolidor da Cozinha do Inferno de Nova Iorque - que está em busca de um criminoso - apareça?
Não seria mais lógico que o Demolidor estivesse nas sombras usando suas técnicas ninjas observando as pistas para capturar o criminoso, ou, ao contrário, fizesse tudo isso como Matt Murdock para preservar sua identidade secreta...?
Isoladamente o diálogo não funciona enquanto no contexto maior do que ele está inserido, é ainda pior.
Por outro lado, em G.O.D.S. 1, Hickman aparesenta um breve diálogo entre Dmitri e Wyn, mas mesmo sem ler ou analisar o conteúdo, é possível entender pela expressão facial, pelo silêncio no terceiro quadro e pela linguagem corporal dos personagens o que está acontecendo e entender o tom da conversa (e mesmo de como os dois se relacionam).
Dmitri comenta casualmente no primeiro quadro "Ei, olhe, ali está a sua ex." no que Wyn responde "Ela não é minha ex".
O segundo quadro trás Dmitri retificando seu primeiro comentário (nos apresentando mais de sua personalidade com sua necessidade por contextualizar seu comentário anterior) "Ei, ali está a mulher que você ama mais que qualquer coisa e que no lugar de corresponder esse amor, decidiu atirar na sua cara", ao que vemos claramente a reação furiosa de Wyn que se alastra para o próximo quadro (em que permanece em silêncio, esperando que Dmitri se toque, e, após o silêncio constrangedor o quarto quadro concluí: "Oh, agora eu vejo. Você sabia disso o tempo todo, e tentava fingir que tudo estava bem quando na verdade definitivamente não está. Desculpe"
Essa breve interação nos diz volumes sobre os personagens. Sobre o quanto eles já se conhecem (e de que apesar de se conhecerem, não são exatamente amigos, mais para conhecidos e mais especificamente, fica claro que Wyn é alguém hierarquicamente acima de Dmitri, como um professor/mentor, e alguém que ele quer impressionar).
Conciso, direto e ainda assim diz volumes sobre os personagens.
E eu sei que pode parecer uma interação forçosa para gerar o 'humor MCU', demonstrando os personagens fazendo piadas em situações tensas, mas a diferença aqui é que isso mostra a personalidade de ambos os atores na situação e nos apresenta aspectos maiores sobre o todo - elementos que voltam a representar algo no esquema final das coisas, conforme a ingenuidade de Dmitri tem papel crucial para a solução da trama ou o cansaço e frustração de Wyn, por exemplo).
As duas situações aqui apresentadas trazem um dos personagens metendo os pés pelas mãos com uma interação inicial constrangedora, mas a diferença no roteiro faz com que as duas sigam por rumos bastante diferentes e terminem de forma oposta, em uma em que aprendemos mais sobre os personagens enquanto na outra parece contradizer tudo o que faria sentido para eles nesta mesma situação.
Mas, o que tudo isso significa afinal de contas?
No entanto existe um elemento que não é diretamente relacionado ao produto final, e, por tabela, com o que está aqui apresentado, mas que diretamente influencia o resultado - e isso se aplica em outras escalas com outros produtos de entretenimento na mesma proporção.
Eu poderia falar por horas sobre talento e competência ou sobre como um roteiro preguiçoso pode usar um chavão ou bordão (mas aí eu não precisaria de um texto desse tamanho, só dizer 'Bazinga' e todo o público já entenderia o argumento de falta de talento e roteiro preguiçocos usando um chavão-bordão), mas esse não é o ponto.
Daredevil 193 é uma edição tampão marcando a transição entre a fase de enorme sucesso de Frank Miller (que terminara na edição 191, ou seja, meses antes) e com toda a certeza é um material produzido a toque de caixa para que tenha uma edição da série nas bancas e livrarias especializadas dentro dos prazos e tudo mais, e, para isso os editores e executivos encontram o sujeito mais barato e que produza o material mais rápido para entregar, bem, alguma coisa dentro do prazo.
Essa é uma situação bem diferente do que Jonathan Hickman com seu contrato de exclusividade com a Marvel pode produzir e, bem, lançando uma mini-série escolhendo a dedo os colaboradores que vão trabalhar com ele.
Mas você consegue entender porque esse elemento de entregar o produto mais rápido possível pelo menor custo (para cumprir algum prazo ou quadrante fiscal) impacta o resultado final, e, bem, como isso é facilmente verificável de novo e de novo (como quando produziram uma sequência para Cassino Royale a toque de caixa durante a greve dos roteiristas de Hollywood). Ou porque os roteiristas enxergam com enorme termor a ascensão das inteligências artificiais generativas, certo?
Isso piora quando executivos visam apenas potencializar lucros com esse tipo de material tampão (que serve apenas para ganhar tempo e não para produzir a melhor história possível - sabe, como a segunda temporada de A Casa do Dragão).
Mais dinheiro para efeitos especiais, menos dinheiro para os roteiros (direção, atores e demais elementos) e a coisa toda fica uma bagunça desconjuntada, não é mesmo? E às vezes nem tem dinheiro para efeitos especiais como Cats ou Quantumania nos demonstram...