Existe uma diferença fundamental entre comédia e sitcom, e essa é uma diferença fundamental, que é em grande parte o motivo que explica a facilidade com que o segundo tenha se mantido vivo por tantos anos na televisão, e que resultaram em sua agonizante e eventual morte.
A sitcom é uma abreviação para comédia de situação do original inglês, e, comumente, apresenta mais cenários e situações do que se preocupa com narrativa e construção de personagens, e, de maneira geral igualmente, o final de um episódio marca não apenas o final da situação mas de toda e qualquer repercussão e consequência.
Geralmente sitcoms se formam com conceitos que permitem a geração contínua de histórias com um elenco fixo apoiado constantemente por participações especiais e um elenco rotativo (como um bar, um escritório ou um hospital) mas não é incomum abordar uma estrutura familiar geralmente disfuncional (seja um irmão parasita que se muda com o outro bem mais sucedido ou uma família suburbana típica com todos os problemas da subúrbia), onde trapalhadas se seguem, afinal, se trata de uma comédia. Não obstante, os personagens do núcleo central dessas tramas vivem em um constante estado de torpor com mínimo desenvolvimento se algum.
Se um personagem faz algo horroroso e asqueroso (por motivos cômicos, claro, afinal a 'comédia' faz parte da situação), é bem pouco provável que haverá qualquer mudança significativa que vá além do episódio seguinte, e, é extremamente fácil demonstrar exemplos disso, como em Friends quando Ross (que começa a série se divorciando, tem um filho e um relacionamento fracassado com a paixonite do colegial) encontra uma nova namorada e está prestes a se casar, estragando tudo no último minuto (no episódio que é o final da quarta temporada). Na temporada seguinte (e nas demais) o que acontece com esse sujeito na casa dos trinta com um filho e dois divórcios?
Bem, ele começa a namorar uma colegial enquanto inicia uma carreira de professor (e o pai dela faz parte do comitê da universidade que poderia facilmente demiti-lo), e depois se casa novamente enquanto bêbado com a paixonite do colegial e tem um filho com ela (que mais tarde ela tenta um relacionamento com o melhor amigo de Ross enquanto ele tenta namorar uma professora da faculdade - que estava com esse amigo). O que ele aprende nesse processo...? Absolutamente nada pois a existência dos dois filhos são apenas relevantes quando a série apresenta algum cenário em que eles apareçam, os divórcios não interferem em nada ou mudam os hábitos do personagem e em nenhuma das seis temporadas seguintes Ross tenta qualquer jornada de crescimento e desenvolvimento pessoal. Ele não faz terapia ou tenta aprender a lidar melhor com seus próprios sentimentos e frustrações.
Ok, isso é um pouco um exagero, eu sei, afinal personagens fazendo terapia para melhor lidar com seus sentimentos e frustrações não é algo que mesmo o material de maior prestígio e drama sequer finge que tenta lidar.
No entanto, olhando do outro lado do Atlântico para a série Peep Show, vemos algo categoricamente oposto. Mark passa anos tentando se acertar com a colega de trabalho Sophie (sim, vivida por Olivia Colman antes da Rainha e do Oscar), e enquanto o relacionamento tem vários altos e muitos mais baixos, na quarta temporada os dois estão juntos e no rumo para o casamento.
O casamento é um fiasco, e isso leva diretamente a repercussões para Mark (já no episódio seguinte), passando por enorme ostracismo no trabalho além de dificuldades para conseguir se acertar e estabelecer um novo relacionamento. A situação com Sophie igualmente deteriora conforme a moça se afunda no alcoolismo e depressão (sim, lembremos que isso ainda é uma comédia), e acaba grávida de Mark, levando a mais uma série de altos e baixos até que ela sai definitivamente da vida dele enquanto se firma com um novo namorado e não enxerga qualquer perspectiva que o fã de Napoleão vá crescer e se tornar uma pessoa melhor.
Ainda que Peep Show seja dos anos 2000 enquanto Friends dos anos 1990, e existam óbvias diferenças entre o humor britânico e estadunidense (e os resumos dos parágrafos anteriores apontam que mesmo com tramas parecidas, os rumos são bem diferentes), existe uma diferença essencial que está atrelada a forma de produção de conteúdo que tornava a sitcom não apenas uma realidade como uma necessidade, e é algo que se dá no cenário de transmissão televisiva de acordo com planejamento e programações.
Mesmo que nos anos 1990 muitas pessoas tivessem videos cassetes, e a estrutura de exibição de programas seguissem a um horário específico (todos os domingos às 20:30 ou sextas às 19:30 com reprises e etc), por uma infinidade de motivos seria fácil para um espectar perder um episódio ou de maneira similar, para uma rede não exibir o programa.
Sejam motivos pessoais que te impeçam de estar diante da televisão no horário determinado ou o fato que um furacão devastador destruiu o gerador ou está solicitando maior cobertura midiática, as emissoras tinham de se planejar para cenários adversos, e, nisso era extremamente comum que programas fossem produzidos de forma a representar minúsculas mudanças (se alguma) ou desenvolvimento narrativo, afinal se você perder um episódio (ou mesmo uma temporada inteira), seria perfeitamente fácil entender a situação e cenário e acompanhar a partir de qualquer ponto da história.
Com isso, mantendo condições simples e repetitivas permitia para que o público pudesse acompanhar com maior facilidade, mas, de maneira similar, que as retransmissoras pudessem exibir sejam episódios novos ou reprises com igual facilidade. Porém, com o avanço dos serviços de streaming, essa ideia perde tração uma vez que a perspectiva que a audiência se mantenha engajada com uma série por múltiplos episódios - seja numa estrutura de maratona ou acompanhando esporadicamente - garantindo que os assinantes vejam todo o conteúdo, depende muito menos da conveniência de horário (uma vez que é possível assistir a qualquer momento).
Plataformas de streaming passaram a investir muito mais no modelo britânico de produção de comédias (estruturadas e com menos episódios enquanto focando no desenvolvimento de personagens e histórias) e que demanda do público o retorno para novos episódios, e, o que vemos cada vez menos são produtos bobos e de péssima qualidade lançados por tipos como Chuck Lorre (mas que vão continuar a surgir aqui e acolá enquanto esses tipos estiverem vivos e trabalhando), mas que não são mais a força motriz do gênero cômico.
Séries menores (quatro-seis temporadas como Atlanta, Barry ou O que fazemos nas sombras - mas facilmente podemos apontar bem mais exemplos como Sex Education ou The Good Place) com menos episódios e maior enfoque em personagens e desenvolvimento gradual de suas tramas vem ganhando cada vez maior tração e possibilitando melhores experiências que, bem, tentativas de ressuscitar um gênero falido que, honestamente, talvez só funcione para animações ainda (e somente por contar com orçamentos muito menores - mas mesmo essas vem encolhendo e enxugando seus números de episódios, quando não tem hiatos gigantescos entre temporadas como Rick e Morty).