Enquanto a Casa Branca bombardeia o Oriente Médio em uma discussão de chat de aplicativo por nenhum motivo além de justificar a baixa popularidade (de um presidente recém eleito), é curioso que tanta, mas tanta gente se veja incomodado e ofendido pela Branca de Neve.
O filme original de 1937 é um clássico pelo fato de ser uma das primeiras animações coloridas e efetivamente elevar a Disney para um estúdio - que faz mais que curtas e tirinhas de jornal - e história original foi publicada uns bons 80 anos antes em 1857 na narrativa dos Irmãos Grimm, e, com pouco mais de 20 páginas (incluindo ilustrações) o material começa já em quinta marcha e liga o nitro antes do primeiro parágrafo (em três páginas a mãe da Branca de Neve morre, seu pai casa de novo e a madrasta manda matar a garota), e, dizer que o conteúdo é atemporal e relevante, bem, é ser incapaz de entender o que significam dessas palavras pra dizer o mínimo.
A história traz a madrasta má enciumada com a ideia de que alguém possa ser mais bela que ela - mesmo que, sendo bem generoso, seja uma adolescente com uns 13 anos que mal teve sua primeira menstruação mas que todo mundo parece achar natural dizer que é "a mais bela".
A madrasta contrata um assassino (e come as entranhas que o sujeito leva pra ela dizendo que eram da garota), enquanto a menina se embrenha na floresta por um dia inteiro até achar uma cabana que pertence a um grupo de pessoas com nanismo. Porque "anões"? Porque sete? Porque eles são mineradores? Não sei e a história não se importa em esclarecer além disso e deixar claro que eles acolhem a garota desde que ela faça todas as tarefas da casa (e a sua cabeça na sarjeta vai definir o limite para "todas").
No entanto a menina é burra feito uma porta e é enganada três vezes pela mesma pessoa (que sim, é a madrasta com "disfarces" que fazem o Roberto Gómez Bolaños parecer um ninja) com truques cada vez mais idiotas, até que a menina engasga com uma maçã e é dada por morta (com um caixão de vidro e tudo mais), somente para ser vendida para um princípe que conveniente passava por lá e a marca das vinte páginas já estava próxima.
Sem beijo, sem reviravolta mágica, a menina acorda porque um dos servos do príncipe é destrambelhado e tropeça forçando uma manobra Heimlich involuntária, e com isso ela cospe a maçã (depois de dias entalada na garganta e presumida morta pelo espelho mágico), acorda e se casa com o príncipe. Fim? Não, ainda tem a madrasta sendo torturada com sapatos de ferro quente que ela tem de usar para dançar até morrer no casamento da Branca de Neve, mas, sabe, final feliz.
No filme de 1937 da Disney, a história segue as mesmas batidas (rainha mádrasta obcecada com beleza tenta matar a afilhada que foge para a floresta onde passa a morar com os anões), e além de um número assustador de músicas (nos primeiros 15 minutos, Branca de Neve canta 3 canções diferentes e eu genuinamente não acredito que ela tenha um único diálogo que não seja em verso - e isso quando não são apenas com animais), existe um bocado de mudanças. A principal diferença pro conto é que enquanto lá ele já começa na quinta e engata o nitro, na animação, bem, ela vai na banguela por uma loooooooonga descida e sem a menor pressa de chegar em qualquer lugar. Cenas e mais cenas que pouco ou nada agregam para a narrativa (como os anões lavando as mãos antes da refeição), e canções e mais canções para que o filme tenha o mínimo de tempo para ser exibido nos cinemas como longa-metragem.
O príncipe é apresentado logo no começo tentando um dueto com a Branca de Neve (que curiosamente aparece lavando os degraus do palácio como se fosse uma gata borralheira), e são os animais que a conduzem à casa dos "anões" (onde ela proativamente se propõe a limpar tudo - com a ajuda dos animais, é claro).
Os "anões" são introduzidos por volta dos vinte minutos (também com uma canção) e aqui temos a maior diferença de que eles tem personalidades e nomes individualizados (no conto, honestamente, ninguém tem um nome, incluindo a Branca de Neve que pode se chamar Danuza pelo que me consta e seu apelido ser Branca de Neve), e, após um bom tempo com o grupo, a ação volta ao palácio onde a Rainha usa de alquimia para se transformar numa idosa (e não um mero disfarce) e produzir os feitiços partindo imediatamente para a maçã envenenada, que, ao contrário do conto dos Grimm, já diz de cara que conduz ao sono da morte (você já deve ter percebido um padrão meio MCU aqui de quantas histórias de fadas a Disney parecia querer abraçar em uma única história, né?).
O filme faz uma pausa brusca para deixar a ideia de que a Branca de Neve morreu no ar por uns minutos pra ficar aquele ar triste até que a narração avançar alguns meses para que o príncipe (do começo) apareça cantando e a encontre e desperte com um beijo e uma canção, e, bem, felizes para sempre sem tortura da rainha má que, bem, não tem nenhum desfecho para sua situação, ainda que, honestamente eu tenha minhas dúvidas se o Príncipe Encantado não é irmão ou meio irmão da Branca de Neve (afinal no começo pelo menos fica a impressão que eles moram no mesmo castelo - e eles tem uma série de feições parecidas como os cabelos e olhos, além de, e eu não posso destacar isso o suficiente, nós não sabermos os nomes deles, ao que tudo indica poderia ser Lannister) o que torna a coisa ainda mais ferrada do que a versão dos Grimm.
Se não ficou bem claro até aqui, não existe muita carne nesse osso... E eu nem sei se existe muito osso nesse osso... É tão simples como você pode imaginar, tudo se concluí com uma velocidade enorme e sem muitas explicações.
Onde está o rei (pai da Branca de Neve) durante tudo isso? Ele ainda está vivo ou o que...? E, eu detecto alguma insinuação de incesto nas motivações da antagonista uma vez que a Rainha Má precisa ser a mais bela porque ela tem medo que o rei olhe pra própria filha e pense "Hm, rolou um clima" e nisso vá abandonar a rainha...?
Nisso volta nos problemas de porque existem as pessoas com nanismo moram numa floresta e porque diabos eles são mineradores (e sete, quer dizer, oito pessoas seria demais para manter uma operação de mineração mas seis seria muito pouco...?), ou de como a protagonista não tem absolutamente nenhuma motivação (sim, ela quer sobreviver, o que é uma baita motivação, mas não é como se ela faça algo muito elaborado para isso, e, mais importante, sendo burra como uma porta ela é enganada três vezes pela mesma pessoa que tentou matá-la anteriormente) e eu poderia continuar além e além sobre isso.
E eu vou.
Veja, se eu quiser buscar uma lição para a fábula, e uma lição bem inocente, a lição da história é a de que o carma resolve as coisas. Se você faz boas ações, boas coisas acontecem, se você faz coisas ruins, isso acaba te alcançando, afinal isso é o que acontece com a protagonista e a antagonista da história (Branca de Neve faz coisas boas e é recompensada enquanto a Rainha Má termina torturada até a morte).
Ok, ainda que isso seja bastante ingênuo e, honestamente, não faça muito sentido mesmo no contexto da própria história quando consideramos os demais personagens. Os mineradores com nanismo oferecem um lar e proteção para a Branca de Neve e acabam na mesma merda que estavam quando tudo começou - não é como se o príncipe oferecesse uma gigantesca recompensa e os levasse para ingressar à corte como cavaleiros ou algo do tipo. Ou mesmo o próprio príncipe, que, nós não sabemos nada sobre ele (além de que é um cara esquisito que quer comprar uma garota em coma - é nada de pervertido nisso).
Podemos ser honestos e partir de que a lição é que a beleza é a coisa mais importante (e que as pessoas vão te ajudar se você for belo e ligar o foda-se se você for velho, tiver nanismo ou, bem, qualquer outra coisa além do padrão normativo da época)... E além do fato de que eu honestamente não vejo isso como uma lição universal ou válida mesmo para 1857, que dirá nos dias de hoje, eu acredito que existe ao menos um aspecto de bondade que está ali nesse argumento da beleza, estabelecendo que a bondade/caridade é bela e que isso é o que de fato faz a Branca de Neve a mais bela (e, que o desenho de 1937 parece se debruçar um bocado nesse aspecto).
Falando do filme de Disney segue as batidas principais da história, ainda que com uma hora e meia tenha um pouco mais de tempo para trabalhar os elementos da história (e, no estilo Disney amenizar as partes mais problemáticas como a madrasta comendo vísceras ou morrendo de maneira brutal no fim), mas no geral não foge dos mesmos problemas ou das falhas na estrutura narrativa.
Porque sete? Porque pessoas com nanismo e mineiradores (seria alguma ideia racista enraigada na Europa nórdica que vem da mitologia Viking...)? Porque a Madrasta é tão obsessiva com a visão de ser a mais bela...? E por aí vai. Sim, é um conto de fadas curtíssimo e sem tempo ou preocupação para desenvolvimento adequado, mas é extremamente curioso como é uma história boba e fraca.
Quer dizer, existe alguma moral ou lição para essa história? Ou algum ponto?
Como eu disse, porque a história traz os anões e não gatos gigantes que viram ônibus e vivem na floresta ou pombos alienígenas que lutam kung-fu ou qualquer outra coisa...? Branca de Neve não aprende nada nessa história (ela não precisa aprender a se cuidar ou a pensar por si própria ou a ficar mais inteligente), os anões não fazem nada além de oferecer moradia e zelar pelo cadáver da Branca de Neve...
E, desculpa pelo cinismo, mas o motivo pela Disney fazer esse remake live action em 2025 é apenas para manter o material registrado (como os nomes dos anões e as canções) antes que caiam em domínio público em 2037 de acordo com as leis sobre o assunto nos Estados Unidos. O estúdio não está preocupado se o material fracasse retumbantemente nas bilheterias, se vai oferecer uma nova perspectiva sobre uma história antiga (e que não agrega muita coisa sobre a sociedade moderna - ou mesmo a sociedade de 1937 que estava bem mais preocupada com uma guerra na Europa).
E com as perspectivas cada vez mais sinistras de uma nova guerra na Europa, realmente parece pouco provável que alguém se importe com uma história dessas, não? E é aí que você se engana, meu caro leitor porque parece que todo conservador e sua mãe parece incrivelmente preocupado com o quanto a filme da Disney está destruindo nossa sociedade (e não, sabe, as bombas e a inversão de valores em ignorar o efeito destes bombardeios consecutivos e sucessivos enquanto se preocupa com uma bosta de um filme produzido pelo único motivo de manutenção de marca registrada).
Quer dizer, quando a atriz que faz a Branca de Neve tem um tom de pele diferente da escala Pantene de Branco Gelo e ela teve a audácia de dizer que uma história de 1857 (escrita em 20 páginas) precisaria de alguma adaptação e atualização para continuar relevante e atual! Que audácia!
Ou Peter Dinklage que disse que não é bacana usar sete "anões" para uma história em que eles são irrelevantes e pouco agregam além de uma atração circense para fazer algum numerozinho bobo... Quer dizer, o que ele entende sobre pessoas com nanismo?
A questão devoluiu em briga de idiotas conservadores que querem procurar mamadeiras de piroca em tudo e fingir que estes são os problemas reais que afligem a nossa sociedade (enquanto Israel promove um genocídio em Gaza ou o governo estadunidense bombardeia o Iemen para tentar justificar sua estupidez na política econômica no cenário global), mas uma vez que o texto já está longo demais os comentários sobre o filme de 2025 estão no próximo post. Até lá!