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8 de março de 2023

{Resenhas de Quarta...?} O Conto da Karen

O Conto da Aia é um seriado (e um filme de 1990 chamado em idiomas lusófonos de 'A Decadência de uma Espécie' - porque os tradutores gostavam de modificar e adaptar títulos na época, sabe 'Um Maluco no Pedaço', 'Barrados no Baile' e por aí vai) baseado num livro de Margaret Atwood, que é, de maneira resumida, 1984 mas ao invés de todo mundo ferrado são só as mulheres que se lascam.
No livro, a narrativa segue somente a perspectiva de uma personagem (a Aia de qual o Conto se dá no título) e enquanto essa perspectiva única dá uma noção mais opressiva e contida dos eventos (de novo, mais ou menos como 1984) mantendo um constante vislumbre sobre a tirania e ódio ao ponto em que regimes de governo baseados nesse tipo de estrutura vendem todo tipo de absurdo como justificável (afinal governam com base na tirania e ódio), e, eu particularmente acho que não funciona muito bem.

Ficam muitas perguntas sem resposta pra se traçar o raciocínio lógico de como se chegou a esse ponto, sabe? Todo mundo parece perfeitamente confortável com esse cenário absurdo, e, eu sei que vou citar 1984 pela 3ª vez em dois parágrafos, mas, no livro de Orwell o governo opressivo e totalitário do Grande Irmão já existe há tempos. O protagonista nos mostra várias vezes não se lembrar de um mundo diferente daquele enquanto relata seu trabalho mundano e sua rotina... Isso não acontece na obra de Atwood (e, por tabela no seriado). A protagonista SABE de como era o mundo antes de cerimônias de estupro de mulheres para conceberem crianças, e, por mais que se incomode (e não apenas a ela) toda essa sociedade se cria e desenvolve com base nessa cultura.

Aqui, inclusive, no livro eu confesso que não me recordo se existe uma explicação mais abrangente aos motivos para as tais cerimônias, tá. Eu sei que li o livro bem antes de começar a ver a série, mas, eu não me recordo tanto dele justificar estruturalmente com a questão da diminuição de taxas de natalidade ano a ano e etcs (que estão na série e são as justificativas para a formação do regime totalitário de Gilead), o que inclusive faz sentido no contexto do livro não explicar muito sobre isso. A protagonista não tem as informações porque ela é só uma serviçal num mundo que a trata somente como um par de ovários com pernas, ela não vai receber um relatório completo e detalhado dos fatos e eventos que transcorrem dos alto escalões da sociedade em que ela está inserida...
Na primeira temporada, que adapta basicamente o livro de mesmo nome (ainda que, pelo que eu saiba existam outros que se passam no mundo de Gilead), mas expandindo conceitos e a história é melhor desenvolvida justamente ao explorar outros aspectos e contextualizar melhor a mundo no qual a história se passa, e, francamente, eu acho que é uma das melhores temporadas de televisão produzidas (e não só nos últimos anos).
É bem cadenciada, a mensagem é clara e constante e a estrutura funciona muito bem, nos apresentando os personagens principais, temas e conflitos, e, eu não creio que fui o único a ver isso, pois a segunda temporada tem alguns incrementos com participações especiais (como Marisa Tomei, por exemplo) e mais episódios (a segunda e terceira temporadas tem 13 episódios contra os 10 da primeira e demais temporadas) e é onde as coisas começam a degringolar.

Talvez minha maior crítica se dê pelo tamanho e proporção da coisa toda (ainda que na primeira temporada isso não fique tão aparente, fique mais notório efetivamente na terceira), porque realmente eu acho que isso funcionaria muito melhor se fosse somente um culto religioso escroto e esquisito que toda uma nação gigantesca que se formou do dia pra noite derrubando os Estados Unidos (e a forma como tentam justificar e contextualizar isso na série).

Pra mim a segunda temporada ainda é, no geral, bastante sólida exceto pelo final da temporada que quase me fez literalmente gritar com televisão - sim o final em si nem é tão ruim, só os segundos finais em que a protagonista toma uma decisão incrivelmente estúpida e que dará o tom circular da terceira temporada, que fica constantemente perseguindo o próprio rabo para terminar mais ou menos no mesmo ponto em que a segunda temporada terminou (mas em proporções maiores).
Fica também claro que a série se torna mais uma elaborada construção de cena após a outra, com o diretor de arte mandando fazendo horas extras e mais horas extras para compor cada quadro mais sofisticado que o anterior. Aqui também é onde a série abusa da 'Elizabeth Moss olhando pra câmera putaça', e é algo que quase todo episódio vai mostrar uma ou outra vez (geralmente com ela olhando pra cima e retorcendo os olhos ou algo do tipo). Sei que ela é a protagonista (atriz principal, produtora e diretora), mas, acaba virando um clichê... Só não pior que a armadura de protagonista que garante que a personagem de Moss sobreviva literalmente a qualquer coisa que mataria o Superman (ela escapa de uma bomba, de mais sessões de tortura que Jack Bauer, tiros e eu nem acho que cobri tudo).

Aqui, a partir, principalmente do final da segunda temporada é onde as coisas degringolam e a necessidade para mais uma temporada, para apelar para demografias maiores, para buscar mais índices de audiência ou estatuetas que o negócios degringola e vai degringolando rápido e perigosamente.

Sem spoilers, (na medida do possível) mas eu realmente vejo quando existe um julgamento tomando forma que a série parece transformar os estupros na pior coisa que Gilead faz (até literalmente)... Tipo, ei, se Gilead mudasse suas políticas quanto a estupro, beleza já pode participar da ONU e estamos ok com as colônias de trabalhos forçados (em áreas expostas a radiação), a tortura e assassinatos promovidos pelo governo, a mutilação genital, a perseguição a minorias (incluindo a perseguição religiosa) e sabe, todo o trabalho escravo após uma milícia terrorista derrubar um governo eleito e instaurar o poder nos Estados Unidos (incluindo o controle a todo o arsenal nuclear e poderio militar).
Mas, ei, se eles maneirassem nos estupros das mulheres loiras e de olhos azuis (tipo a Elizabeth Moss) aí a gente poderia relevar tudo isso, né?

E enquanto eu não estou defendendo os estupros na série (ou no mundo real pelo que vale), temos que analisar o contexto do material e reforçar que de todas as atrocidades que tomam forma no universo da série e dos livros, essa não é a pior, nem de longe. Na verdade, é realmente assustador o simples fato que o trabalho escravo no século XXI é visto de maneira menos problemática porque, sabe, a companhia dona do conglomerado que produz a série emprega trabalho análogo à escravidão no mundo real para produzir souvenires mais baratos para parques, e, sabe, a crítica pareceria hipócrita e vazia. Esse é o grande problema, focando em uma única questão enquanto os demais (inúmeros e absurdos acessos da barbarie) são ignorados (e tem uma cena no julgamento que mostra bem isso, após o longo discurso da personagem de Elizabeth Moss - focando somente nos estupros - em que a advogada do comandante questiona se ela não teve uma escolha - entre ser uma aia e viver em um regime de trabalhos forçados numa área contaminada por radiação nas colônias - e ela não responde, deixando essa hipocrisia, inclusive a da advogada que sob as leis de Gilead, além de não poder exercer sua função, teria subtraídos dedos e a própria mão por ler).

Quer dizer, se analisarmos o contexto da série (ou dos livros), isso o que acontece em Gilead nem é tecnicamente estupro (e eu sei que já tem gente revirando os olhos e querendo me enforcar, mas não é mesmo), e nem porque, tecnicamente, elas são escravas e portanto propriedade, mas porque isso é uma cerimônia religiosa e suas regras e lógica própria, e são protegidas por regras intrínsecas. Quer um exemplo prático e de mundo real disso? Mesmo em todo período em que as drogas foram e são consideradas ilegais, cerimônias como do Santo Daime (mas não só essa, nos Estados Unidos tem algumas bem semelhantes) são vistas como legitimas e legais, ainda que as drogas não sejam - e para alguém consumir a mesma ayahuasca numa república da faculdade ou numa cerimônia de Santo Daime teriam interpretações bem diferentes pela polícia (e judiciário).
Então nesse contexto, o grande problema, voltando aos parágrafos anteriores, É de um regime totalitário baseado em escravidão (e obviamente dos sequestros, não vamos esquecer dos sequestros) no século XXI... (Na verdade também tem o problema de tentarem vender que Gilead é basicamente uma utopia de esquerda, sabe, onde resolveram todo problema ecológico, e onde não existe dinheiro) Sei que isso acaba um tanto covarde e passando o pano ao reconhecer e validar esse culto bizarro enquanto uma religião, mas esse é o argumento da série e dos livros (que os demais países reconhecem Gilead como uma república [? não me pergunte porque, afinal não tem qualquer estrutura republicana] independente).

Como eu disse, acaba se perdendo e conforme vai expandindo cada vez mais para lados mais difusos, vão se abrindo rombos gigantescos na trama e as coisas vão fazendo menos sentido...
Repito, o começo é muito bom, bem escrito e dirigido, vai se perdendo conforme avança surfando na popularidade que conseguiu e na garantia de renovação para mais uma ou duas temporadas, e, acaba se estendendo demais e perdendo o fio da meada. Dava facilmente para cortar uma temporada inteira do material sem perder conteúdo (e, provavelmente aumentando a qualidade), e até acho que já podiam encerrar o material porque não sei se existe mais algo a contar.

{Editado após um discurso nojento no congresso e o especial de 'comédia' de Chris Rock} Eu peço desculpas se o texto pareceu misógino criticando as mulheres diante do sofrimento no contexto da série, porque com toda a certeza essa não é a minha intenção com o texto.

O propósito era de criticar a estrutura do material que tenta colocar a protagonista loira de olhos azuis como a Joana D'Arc misturada com a Mulher Maravilha enquanto dizendo de maneira geral que ninguém sofre tanto quanto ela. As demais moças negras, latinas ou das mais variadas etnias que sofrem, são torturadas e mortas não são importantes na grande epopeia da heroína loira de olhos azuis que vai reclamar com o gerente porque não está contente com o serviço ou atendimento prestado, ou seja, a Karen. Pior até que isso, parte dessas histórias e sofrimento é diminuído é só ruído (pois nem merece o destaque da cena) ou simplesmente ignorado (como a personagem da Gilmore Girl, Alexis Bledel que é submetida a uma colônia de trabalhos forçados, exposta a radiação - onde ela perde um dente e cabelos - depois de ser submetida a mutilação genital, e basicamente a série diz que ela ficou melhor e só está com colesterol alto - juro que não é exagero meu).

Como eu disse no texto original, inclusive, fica até parecendo que, se esse regime tirânico terrível (que comete um número enorme de crimes e violações éticas) se comprometesse a reduzir ou inclusive eliminar por completo os estupros, que estaria tudo bem. Ei, as mulheres são escravas sem liberdade religiosa ou sequer a possibilidade de aprender a ler e que sofrerão castigos e punições severas por situações que sequer são consideradas crimes em qualquer lugar do mundo mas pelo menos elas não são (mais) estupradas. Eles encontraram a avançada Atlântida!

E a série mostra um número assustadoramente alto de mulheres morrendo como moscas ao redor da personagem de Elizabeth Moss (que não dedica um segundo sequer para luto mal considerando essas mortes como relevantes) ou mesmo um número gigantesco de mulheres colaborando e realizando as ações das quais a personagem de Elizabeth Moss e somente ela recebe crédito (como o final da terceira temporada). Pra mim fica até parecendo aquele filme da Emma Stone e Viola Davis em que a garota branca se torna a heroína para ajudar as mulheres negras sofrendo com condições terríveis de trabalho - ao se apropriar de suas histórias escrevendo um livro e ganhando às custas das histórias e condições terríveis de trabalho?
Mais ou menos isso mas com roupas combinando e um bocado mais de cenas de estupro.

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