Esse é um tema um tanto espinhento, porque, e é importante, envolve elementos subjetivos e principalmente gostos particulares.
Alguns podem se sentir magoados quando críticas a seus autores e quadrinhos favoritos são feitos, mas, bem, a tentativa é de ser mais abrangente possível (o que obviamente pode excluir determinados pontos e obras ou dar muito mais luz a determinados pontos - tanto negativos quanto positivos).
De cara, o ponto da estrutura narrativa em quadrinhos que precisamos destacar reside na gênese dos quadrinhos, que enxergava o público infantil, enquanto não o único público-alvo, ao menos como o principal para um nicho importante do que seria o grande mercado de quadrinhos dos Estados Unidos, os super-heróis. As histórias seguem num eixo maniqueísta e otimista da constante batalha do bem contra o mal (na qual, claro, o bem sempre vence com um sorriso nos lábios). Isso inspira também as estruturas no restante do mundo - e essa constante maniqueísta e otimista se repete quase que verbatim em outros estilos de quadrinhos, e, nas histórias japonesas é bastante frequente, mesmo que num mundo moderno pós-Alan Moore/Chris Claremont as vitórias nem sempre são tão preto no branco ou otimistas. A condição que os anos 1980 introduziram aos quadrinhos de super heróis (mas, verdade seja dita, também nos quadrinhos japoneses - ainda que já se encontrasse nos Corto Maltese e outras obras europeias) foram as nuances.
Ainda que existam caminhos longos nesse intervalo (com a ascensão da ficção científica nos anos 1950 influenciadas tanto por Vonnegut, Philip K Dick ou os quadrinhos do Flash), persistem dois grandes fatores limitantes no contexto dos quadrinhos japoneses e norte-americanos que, de certa forma se equivalem (e reverberam também em outros mercados, ainda que existam alternativas como os álbuns franco-belgas).
Com os prazos apertados para publicações num ritmo frenético para garantir a publicação de aproximadamente 10 páginas por semana, os quadrinhos japoneses tendem a priorizar uma estrutura mais cinética (com várias páginas numa luta ou sequência de ação, sem necessidade para diálogo ou desenvolvimento narrativo) que o desenvolvimento de um argumento ou tese. Não que quadrinhos enfatizando argumentos e teses em detrimento de cenas de ação não existam (como Liar Game que eu recomendo muito e pretendo fazer uma resenha num futuro próximo) é só que pra cada um quadrinho dessa forma e estrutura, existem nove Dragon Balls, ou seja, são uma minoria.
Também é bastante comum que os quadrinhos sejam produzidos de maneira mais independente com criadores/autores (cujos nomes estampam as obras) cuidando de tudo na história ainda que rotineiramente exista toda uma equipe desenvolvendo as páginas para se garantir a entrega do material nos prazos. Eu, particularmente, nunca encontrei um único exemplo de interferência editorial impondo modificações no rumo narrativo ou estrutura, mas, por outro lado, é bem comum a realização de pesquisas de popularidade dos personagens de certos mangás, e, essas pesquisas influenciam sim a estrutura narrativa (personagens mais populares ganham mais páginas ou acabam retornando à história mesmo que não exista muito propósito para suas tramas posteriormente ou mesmo que os autores não gostem tanto deles assim). Inclusive, a questão da popularidade é chave para a manutenção de uma série na rotação semanal, na produção de uma série animada (jogos de videogame, figuras de ação e etcs), então agradar os fãs acaba sendo um ponto mais importante que um desenvolvimento narrativo coeso e coerente algumas vezes (e produzindo algumas cenas constrangedoras visando agradar o público masculino adolescente somente).
Falando de temas, os quadrinhos japoneses tem um tema principal - ainda que abordado com variações e com teses variadas em inúmeras séries - sobre a amizade e a solidão, o isolamento/alienação (principalmente tema de quadrinhos de horror). Existem outras condições, como o autodesenvolvimento, o amor (e romance) e diversas teses e temas, mas, nos mais diversos quadrinhos japoneses, os temas de amizade-solidão-isolamento vão ser proeminentes.
Goku não deixaria as montanhas onde foi criado por seu avozinho se não fosse pela amizade de Bulma. Naruto não seria uma criança problema se tivesse amigos e fosse mais respeitado (ainda que talvez teria amigos se não fosse uma criança problema, mas ei). O mesmo vale para os quadrinhos de horror de Junji Ito em que o isolamento social forma os mais terríveis pesadelos e monstros, ou famosos quadrinhos voltados para o público feminino, como Sailor Moon em que o poder da amizade é mais importante e transformador que, bem, qualquer coisa, e, droga, mesmo para dramas épicos como a jornada de Miyamoto Musashi ou Itto Ogami em Vagabond e Lobo Solitário respectivamente, o isolamento de ambos protagonistas em suas peregrinações é peça chave e fundamental para o (auto)desenvolvimento.
Inclusive esses temas são tão importantes - e funcionam tão bem - porque focam num público alvo para o qual ele é um problema muito próximo, que são os adolescentes (não é raro inclusive que os quadrinhos japoneses se passem em colégios ou os protagonistas estejam em idade colegial), mas não obstante o fator nostalgia também funciona muito bem nessa condição do público alvo para adolescentes (jovens adultos ainda surfarão nessa onda por um tempo enquanto adultos mais velhos buscarão nessas obras a nostalgia de outro momento de suas vidas, ou para apresentar suas obras favoritas para filhos/sobrinhos/netos).
Nos Estados Unidos, a estrutura tende a funcionar num processo mais fordista de linha de produção em que as diferentes partes fazem suas colaborações para ao final encontrarmos um produto pronto para despachar. Um artista escreve, outro ilustra, outros fazem arte final e letreiramento enquanto um editor supervisiona tudo e diz se está alinhado com a política e valores da empresa e carimba o selo de aprovação final. Isso faz com que não seja uma visão única, e sim muitas vezes diluída e facilmente replicável de um processo de produção em série. No entanto isso permite especialização, e é possível encontrar roteiristas que são fora de série ou artistas que são fantásticos ou arte-finalistas e por aí vai, ou mesmo alguns que nem são lá essas coisas mas que podem se desenvolver e partir para outras empreitadas maiores, como o caso de Jeph Loeb (um péssimo escritor, ainda que tenha feito certo nome nas parcerias com Tim Sale, mas que conseguiu crescer bastante como colaborador em seriados baseados em personagens de quadrinhos). No entanto, as editoras são donas da propriedade intelectual (assim como no processo produtivo empresarial), e os colaboradores são apenas elementos da linha de produção, o que mantém em circulação produtos que funcionam e são populares com pequenas mudanças, reinvenções e repaginações (tal qual a indústria automotiva faz com seus veículos ano a ano), ainda que exista o espaço para a produção independente e para criações autorais, que, geralmente é onde os artistas realmente se esforçam e fazem seus melhores trabalhos (claro que também existem os longos processos e batalhas judiciais que explicam em parte essa situação, mas vamos só reconhecer o fato sem alongar muito no assunto).
Em termos de temas, os quadrinhos norte americanos geralmente focam no tema da justiça e suas subvariações e facetas (existe justiça sem liberdade? - comum das narrativas em que despostas como Thanos, Kang ou Darkseid são os vilões principais - Honra equivale a justiça? - tema comum das Tartarugas Ninja, mas que reverbera em questões do Batman em que o caminho virtuoso leva à justiça e por aí vai). Mas esse tema está tão enraizado e repetido nos quadrinhos norteamericanos que ele é explorado em praticamente todo quadrinho, mesmo fora do eixo de super heróis. Em 100 Balas, o debate se vingança equivale a justiça e posteriormente se poder equivale a justiça são as teses da série. Ou The Walking Dead em que os sobreviventes constantemente analisam a moralidade de suas situações e, a justiça de seus atos, em matar tantos os zumbis ou outros sobreviventes para viver mais um dia (não à toa que o protagonista é literalmente um xerife).
Outra constante comum é o da dualidade e contrastes e personagens representando espelhos sombrios, dois lados da mesma moeda (e outas alegorias similares), ou mesmo das identidades duplas e os dilemas éticos que isso impõe. O Demolidor é o campeão nesse tipo de condições dos múltiplos contrastes e dualidades (o rapaz cego que 'enxerga' o mundo melhor que todo mundo, que é católico mas se veste como o diabo e enquanto advogado age nas noites como um justiceiro mascarado - e criminoso).
No entanto, aqui reside o maior problema dos quadrinhos norteamericanos na ausência de uma visão clara de seu público-alvo (e eu falei um pouco mais sobre isso nos comentários sobre Adão Negro). Os super heróis são vistos pelo público em geral como produto para as crianças, mas as editoras não produzem de maneira alguma histórias que funcionem para o público infantil, no entanto também não é o público adolescente que é mirado na produção das histórias, mas curiosamente parecem histórias talhadas para leitores mais maduros e adultos (com conteúdo maduro e adulto que envolve a dualidade e contrastes do sistema judicial, e por falar tanto de justiça abordará muito do crime, expondo a violência, as drogas e os impérios criminosos e cartéis), porém que não são desenvolvidos com nuance e maturidade, e, acabam com cenários como os X-men enfrentando um robô aranha gigante para resolver a injustiça do Apartheid. Fica algo no meio do caminho - com toda a certeza não apropriado para crianças (mesmo que sejam personagens para mexer com o imaginário infantil, e toda festa de aniversário corroborará essa condição) - sem produzir algo que ressoe com o público adolescente (como faz o mercado japonês) ou ser estimulante para o público adulto.
Acaba como uma bagunça sem um público alvo definido, o que pode produzir um Sandman ou Monstro do Pântano de quando em vez, mas geralmente só trará novas revisões ao casamento do Homem Aranha mesmo... E, meio paradoxalmente, como vemos hoje claramente no mercado, o mercado norteamericano vive hoje de nostalgia somente, com a cobra perpetuamente comendo o próprio rabo de histórias antigas que funcionaram alguma vez.
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