Com três temporadas entre 2013 e 2015 Hannibal foi lançada com a ideia de adaptar os livros de Thomas Harris, mas, a verdade é que os nomes na série (inclusive do próprio autor) não são desconhecidos.
Antes de Mads Mikkelsen, Hannibal já foi vivido por Anthony Hopkins em 1991 (e 2001 e 2002) e mesmo Brian Cox (sim, Logan Roy) no filme de 1986 de Michael Mann Caçador de Assassinos, e, ainda que algumas das histórias compartilhem elementos das histórias dos livros, existem diferenças consideráveis entre as adaptações.
Os filmes tentam manter o foco para que a narrativa conte em um intervalo de pouco mais de 2 horas todos os elementos da história (qual é a ameaça, porque o protagonista está envolvido na investigação e como pode resolver o caso em questão), enquanto a série cadencia estes elementos para que sejam apresentados aos poucos (como qual é a ameaça, que vai se desenvolvendo aos poucos, enquanto oferece dúvida e questionamento ao protagonista sobre sua própria motivação).
Por exemplo, na série não existe um único vilão como no(s) filme(s). Will Graham e essencialmente sua divisão do FBI passa episódio após episódio caçando um psicopata diferente, enquanto aprende mais e mais sobre a mente dos assassinos em série, ao passo em que aprende mais sobre as motivações sinistras de seu psiquiatra Hannibal Lecter.
Mesmo em temporadas subsequentes em que exista um vilão maior (seja o Dragão Vermelho ou o próprio Hannibal), isso faz parte da estrutura narrativa para desenvolver esse conflito de maneira cadenciada episódio após episódio, e, para isso precisa de uma estrutura narrativa para que cada episódio construa de maneira sólida os degraus para ascender até a conclusão, ainda que funcione individualmente.
Funciona porque tem um excelente roteiro, uma direção brilhante e um elenco extraordinário - afinal, se você tenta a mesma coisa sem nada disso, você acaba com 'Clarice' - e, de maneira geral é o mesmo que acontece com os filmes (com um excelente roteiro, uma direção brilhante e um elenco extraordinário O Silêncio dos Inocentes é fantástico enquanto O Caçador de Assassinos mal passe pelo radar de qualquer pessoa).
Mas é uma visão bastante simplista de que as coisas só funcionam quando tudo é brilhante, excelente e fantástico, com um time incrível trabalhando para produzir e construir o produto final, e, considerando que a série mal chegou ao final na terceira temporada (enquanto coisas vastamente inferiores passaram da décima temporada - e com muito mais episódios por temporada), é fácil dizer que ela não foi um sucesso - nem mesmo de crítica, com uma lista bem modesta de prêmios ou indicações - enquanto tanto Anthony Hopkins quanto Jodie Forster levaram indicações por suas performances no filme de 1991, né?
Então, o material ser excelente mas não encontrar o público faz dele um fracasso ou, bem, qual seria a definição para ele? É um problema de marketing, de timing ou, pura e simplesmente azar?
Para um estúdio - que no fim do dia é quem toma as decisões e assina os cheques - compensa bem mais uma produção medíocre com muita audiência que uma grande produção que não consegue nem público nem crítica.
No fim do dia, no entanto, a questão primordial é sobre o público, ou se você quiser ser mais literal, o público esperado para o material. Veja, o cinema sempre foi extremamente conservador, por mais que algumas raras exceções de brilhantismo e genialidade surjam aqui e acolá.
É sempre custoso produzir um filme e justamente por isso adaptações de materiais que já funcionaram em outros meios são uma forma de mitigar o risco de apresentar uma ideia que aliene o público, e, além disso os filmes tendem a seguir estruturas mais familiares e que já funcionaram antes. Fórmulas de sucesso, repetindo não só o que funcionou ou funciona mas mudando pouco (ou muito pouco) para que o público sinta que é uma experiência nova e diferente (como podemos facilmente ver com todos os filmes policiais de duplas inusitadas... Ei, mas esse tem Whoppi Goldberg e um T-Rex!)
Com a televisão as coisas são diferentes - com sets, estrelas e orçamentos menores - e até não muito tempo atrás também com um formato diferente de filmagem, e, equipamento mais pobre também para produzir em quantidade maior e mais rápido. Dito tudo isso, a tv permite maior liberdade que as demandas e exigências de um mercado por retornos, e, boas equipes podem usar isso a seu favor.
De novo, não significa que não existam projetos ousados e com maior liberdade no cinema, mas enquanto vemos o Patolino enfrentando seu criador em um desenho animado para crianças, bem, é muito fácil encontrar filmes para o público adulto (e não filmes adultos, deixemos isso claro) que tem dificuldade em contemplar qualquer assunto com qualquer nuance ou complexidade (como a Paixão de Cristo de Mel Gibson). E nem é difícil encontrar exemplos e mais exemplos (desde a menção a Jorge Luis Borges na animação da Liga da Justiça como Floyd, o barbeiro - que é um título de uma música bem sombria do Nirvana - cortar o cabelo de Freakazoid), enquanto, bem, seriados para um público mais velho trazem cenas infames como a do cachorro comendo um coração (eu não estou inventando isso), mesmo material para um público adulto tem problemas com dilemas morais e complexidade (sabe, como Dexter).
Então, o que Hannibal Lecter dos filmes e Hannibal Lecter das séries nos ensinam e mudam um para o outro? Bem, de forma narrativa, não muita coisa, afinal são essencialmente o mesmo personagem com histórias desenvolvidas de maneiras diferentes, mas o que vemos mudar realmente é o público esperado para essas obras.
Em O Silêncio dos Inocentes ou Dragão Vermelho os detetives protagonistas são chavões de filmes policiais (determinados, firmes e com claras convicções do certo e errado), sem uma personalidade ou um passado marcantes. Sabemos quem é Will Graham por ser Edward Norton no filme, mas não temos nenhum relance sobre a pessoa por trás dos chavões. No seriado Will Graham é um personagem completamente desenvolvido, com suas fixações, neuras e traumas que são dissecados nos episódios nas sessões de terapia que vão se apresentando episódio após episódio.
O mesmo vale para o assassino serial canibal Hannibal Lecter.
No seriado contemplamos mais de perto como funciona sua mente, aprendemos mais sobre seu passado, traumas e compulsões. Ele não é apenas um clichê de assassino serial (tão competente que deve ter super-poderes), mas um homem altamente inteligente e complexado, e, é claro que a série tem bem mais tempo para trabalhar todos esses elementos (e muitos mais) que um filme, e, que o filme justamente por isso acaba trabalhando com definições mais amplas (e clichês) que são facilmente identificáveis ao público sem maior desenvolvimento para não interromper ou complicar demais a narrativa.
Essencialmente, um filme (por mais que use de 3 horas e meia ou mais), precisa limitar o desenvolvimento de personagens e traços de suas características mais intrínsecas uma vez que precisa lidar com constrições de tempo (3 horas são o equivalente de 3 a 6 episódios da maioria das séries), e por isso precisa sacrificar estes elementos, com caracterizações mais clichê e lugar-comum em detrimento da história. Com a estrutura episódica, os capítulos permitem maior fôlego nesse desenvolvimento com o intervalo entre episódios (mesmo que você os assista em sequência, é bastante comum que exista um intervalo narrativo, com os episódios se passando em dias diferentes o que reforça traços, características e as personalidades dos personagens).
Os mesmos personagens nos são apresentados de maneiras diferentes dessa forma. Num filme é uma realização impressionante enquanto num seriado é uma estrutura da rotina deste personagem que tem estes momentos marcacntes esporádicos.
E como você pode imaginar, o problema nessa situação de um mundo de streaming onde todos os episódios são disponibilizados imediatamente a maratona se tornou algo bem diferente do que originalmente, acabamos com séries que são produzidos muito mais como filmes longos divididos em partes que como efetivamente séries (episódicas com espaço para desenvolvimento de personagens) para uma estrutura com personagens mais clichês em detrimento de uma narrativa maior (como com Stranger Things ou mesmo Round 6), mas isso é antecipar um bocado coisas que serão discutidas em bem mais detalhe num futuro.
Até lá um bom Natal e um ótimo ano, que esse é o último post de 2024 (e devo voltar somente por volta do dia 15 no ano que começará)!
Um abraço a todos!
Nenhum comentário:
Postar um comentário