Para mim em particular (que fiz aniversário na última sexta) essa história tem um lugar particular na memória e coração. Ela foi o primeiro arco longo que eu li desde o começo - afinal tinha começado a ler Batman havia alguns meses, e não tinha acompanhado sagas mais antigas e na época passava longe das histórias da Marvel (com suas intermináveis Eras do Apocalipse, Massacres e Sagas do Clone) ainda que meu contato fosse com "versão Abril" (cheia de histórias puladas, páginas cortadas e material publicado fora de ordem). Só recentemente eu fui reler esse material quando finalmente comprei os encadernados em versões kindle e li desde antes de A Queda do Morcego até a fase de Greg Rucka na Nova Gotham (que é o arco seguinte à Terra de Ninguém).
Já falei sobre a Queda do Morcego antes, e de forma menor a saga Terremoto, mas basicamente a ideia na DC entre os anos 1980 e 1990 era de construir arcos do Batman em que ele enfrentaria situações muito maiores que sua capacidade (de todos seus vilões exaurindo suas forças até virus mortais e a força dos elementos), geralmente coisas que não importaria muito o quão forte ele socasse o crime na fuça.
Como conseqüência dessas histórias, a editora estabeleceu que esse seria o ponto mais baixo - na jornada até a Terra de Ninguém - em que, basicamente tudo desse errado e todo mundo desistisse de Gotham. Nenhum plano de reconstrução, o governo federal lava as mãos e diz que a cidade não é mais território dos Estados Unidos (ou de ninguém pelo que consta) e que as pessoas que ficarem na cidade estariam entregues à própria sorte (enquanto as margens/fronteiras seriam monitoradas constantemente pelo exército) mesmo sem nenhum plano de médio ou longo prazo (quer dizer, o governo federal esperaria até que todo mundo morresse ali ou jogaria uma bomba depois de uns meses para então iniciar a reconstrução, ou ficaria para sempre com um território entregue a gangues e criminosos...?).
A ideia é um conceito bem mais absurdo e bem abstrato que outros arcos anteriores (e futuros) do morcego, ainda que o conceito ou tese seja válido. Sem governo ou leis, ainda existe justiça?
Eu acho que essa é uma ideia interessante, com ressalvas. Com tantos meses de publicação, com tantos autores e sem um fio narrativa central (além de que a cidade se divide em territórios controlados por gangues e cabe ao Batman derrotar essas gangues e seus líderes um a um). Em eventos anteriores, ou o número de autores era menor (como com A Queda do Morcego em que Moench e Dixon faziam tabelinha nas principais histórias enquanto Alan Grant compunha histórias secundárias expandindo o conceito principal) ou o escopo era menor (sabe, um terremoto atinge Gotham ou uma ameaça viral - plano da ordem de São Dumas ou de R'as al Ghul).
Mais até que isso, no final do dia, eu realmente não vejo que a essa ideia de que sem governo ou leis exista algum debate sobre a manutenção de justiça, porque para fazer valer a justiça eles precisam enquadrar estruturas de governo e fazer valer leis da mesma forma (que se vão mandar para uma cadeia improvisada mantida por um criminoso sem que a pessoa passe por um julgamento). Se a ideia de que a sociedade se torna mais primitiva e numa estrutura feudal se reestrutura, eu confesso que não vejo nuances ou um trabalho que construa essa narrativa ou a faça funcionar... Tudo o que temos são os feudos e Batman derrubando seus líderes um a um para estabelecer-se como a força motriz de Gotham e é isso.
Mas, sejamos francos, tinha mais na mesa e nos planos. A história marcava também um novo começo (ou recomeço) uma vez que os prólogos da saga marcam a saída de escritores Doug Moench e Alan Grant que vinham trabalhando nas séries do morcego por mais de uma década, e, na visão da chegada do novo século parecia apropriado apresentar novos escritores e planejar novos times criativos para as diversas séries, incluindo propostas novas sobre vilões (como vemos com Greg Rucka trabalhando com o Duas Caras fazendo bem mais juz ao nome como alguém manipulador e mentiroso e não um idiota que depende de uma moeda para decidir se cutuca o nariz ou não), assim como novos personagens (como a nova Batgirl e seu pai, o assassino Caim, e ainda que a Arlequina não fosse exatamente uma nova personagem, pois fora apresentada na série animada do Batman, ela faz sua estreia nos quadrinhos nesse arco). Francamente também falha aqui a condição ao jogar autores novatos, inexperientes ou sejamos bastante sinceros francamente muito ruins (como Larry Hama) enquanto nomes como Ed Brubaker só se juntariam ao time ao final do arco.
Dentre os planos deste recomeço, fica claro que existe uma ideia de integrar mais o universo Batman com o resto do universo DC. Salvo engano, a última vez que Superman apareceu em um título do Batman antes da Terra de Ninguém foi no arco da morte do Robin (de 1988). Essa eu já adianto que, ou não foi bem planejada ou não tiveram exatamente a liberdade para fazer isso direito.
Em vários momentos da série, sem a menor dúvida, outros vilões ou personagens do universo DC funcionariam melhor ou seriam mais interessantes para o contexto. O vilão Exterminador funcionaria muito melhor no papel que é incumbido a Bane, por exemplo (com a exceção se Bane fosse bem usado no final da história, sabe, derrotando o Coringa, salvando o dia e esfregando isso na cara do Batman, mas como ele não faz isso, paciência, o Exterminador funcionaria melhor), e, nas múltiplas vezes que o Senhor Frio aparece, bem, em pelo menos uma delas ele facilmente seria substituído por alguém como o Capitão Frio - e isso só de exemplos simples e fáceis pois não precisariam de muito esforço para encontrar combinações interessantes e inusitadas (ei, o Sombra que James Robinson desenvolve em Starman com toda a certeza passearia por Gotham em busca de livros e quadros raros - que estavam sendo destruídos para gerar energia e calor)... E algumas nem tão inusitadas assim, já que o vilão Arrasa Quarteirão das histórias do Asa Noturna em dados momentos também (colaborando com o Pinguim ou expandindo seu império criminoso para Gotham)... Nisso, inclusive eu acho que as histórias do Asa Noturna em Bludhaven acompanhando o exodo de refugiados de Gotham é uma perspectiva bem mais interessante que quando o personagem se aventura pela cidade devastada (assim como o arco de histórias do Robin em Keystone City ao lado do Flash também é bem mais interessante que suas desventuras em Gotham).
Funcionaria melhor que Batman expandisse sua rede de auxílio com gente que não tradicionalmente aparece nos outros títulos do morcego - gente como Katana (dos Renegados), o Pantera (da Sociedade da Justiça - e morador de Gotham) ou mesmo a Ave de Rapina Canário Negro... Mas honestamente nada disso melhoraria ou faria o arco minimamente mais interessante.
Isso já é um dos grandes problemas da história (com muitos personagens e tramas concorrentes - mas simultâneas afinal eram publicadas em diversos títulos mensais), o que acaba francamente com personagens sem propósito ou papel na história maior (como o policial Petit ou principalmente a vilã Echo), ou tramas repetidas (como a situação da Caçadora que é muito parecida com o que acontece com a mesma personagem nas páginas da Liga da Justiça) ou pura e simplesmente pontas soltas e tramas que não se desenvolvem ou vão a lugar algum (como na participação de Superman em que se revela que um grupo criminoso está desenvolvendo experimentos secretos na cidade ou na participação da Justiça Jovem que o grupo terrorista Kobra está fazendo o mesmo).
Talvez a melhor opção seria que os policiais tivessem mais espaço e fossem melhor trabalhados (como aconteceria posteriormente com Gotham Central) o que permitiria desenvolver melhor a ideia de reestabelecer a justiça em uma sociedade sem governo ou lei - e que basicamente é o que Greg Rucka faz na Nova Gotham nos meses seguintes (também trabalhando menos com vilões fantasiados e mais mafiosos e gangsters).
Aqui inclusive cabe a ressalva de que por quase 10 meses Gordon e Batman não estão trabalhando juntos (ainda que as histórias apontem que eles colaborem aqui e ali quando tem os mesmos objetivos), e, francamente eu acho que é algo que tinha muito potencial e poderia render bem mais, até porque um dos pontos dessa terra sem lei é a de que às vezes alguns compromissos se fizeram necessários - como Gordon trabalhando com o Duas Caras para ter mais gente o ajudando ou Batman trabalhando com a Hera Venenosa (e inclusive ignorando que ela mata o Cara de Barro com ele como testemunha) porque ela pode alimentar a população da cidade.
Não é exatamente dentro da lei, mas, verdade seja dita, as noções são justas (lendo a história do Cara de Barro, realmente não parece algo ruim que ele acabe morto - sem spoilers, afinal é uma das boas histórias que valem a pena ler - e mesmo nas condições do Duas Caras, não é como se Gordon estivesse errado ali também, situações extremas e o que mais). O problema é que o fato deles não trabalharem juntos não tem nenhuma consequência e sua reunião é apenas protocolar.
Somado a tudo isso existe o fator de que, bem, a história se extende por tempo demais. Um ano depois de um longo período de prólogo (ou a estrada para a saga), enquanto histórias bobas e sem o menor propósito como Azrael enfrentando um assassino serial patinador artístico (isso mesmo que você leu) ou o Coringa lançando candidatura para presidente (sim, é tão estúpido quanto parece) ou, sejamos francos, basicamente todas as histórias com o Coringa nesse arco (o plano final em que ele sequestra crianças e acaba atirando contra a Caçadora e matando a esposa do Gordon é francamente o ponto mais baixo da saga toda - mesmo com um assassino serial patinador artístico e histórias do Larry Hama).
Nisso, reforço que se Gordon e Batman estivessem trabalhando juntos desde o começo e ao final da saga ocorresse a morte da esposa de Gordon - talvez não na história ruim em que acontece mas em algo melhor trabalhado como se Batman tivesse a opção de escolher Sara e o Coringa e salvasse o vilão (mesmo que ela tivesse menos ou nenhumas chances de sobreviver por exemplo), o cenário do conflito entre os dois seria mais interessante e renderia mais caldo, inclusive mudando a dinâmica do morcego com a polícia (algo que Greg Rucka e Ed Brubaker fazem mais tarde ao substituir Gordon pelo Comissário Atkins).
Tudo isso para a reconstrução de Gotham (que sejamos honestos, era o único caminho e conclusão lógico desde o começo) como plano de Luthor para alçar sua agenda política (que francamente eu achei uma boa sacada para o contexto maior do universo DC) e fica um senso de que a editora queria prejudicar e despachar o Gordon deliberadamente. Durante a Nova Gotham, Gordon é baleado e acaba se aposentando de vez (depois de perder a esposa no final de Terra de Ninguém).
Curiosamente, enquanto a DC queria marcar um novo começo/recomeço, parece que o curso que a editora conseguiu foi o de pontuar os passos para o final de uma década extraordinária de histórias do Batman com algo melancólico e pouco inspirado sem oferecer confiança para o que veríamos no futuro (e que justamente por isso passaria por várias mudanças de rumo e direção nos anos seguintes), e inclusive repetindo alguns dos problemas vistos aqui (o Coringa como bala-de-prata surgindo ao final de uma história da qual não teve qualquer relevância, ou uma morte de personagem só pelo impacto de sua morte ou times fracos de autores escrevendo histórias cruciais de tramas maiores).
E aqui é onde eu acho que os problemas talvez sejam tanto de ordem editorial interferindo (para prorrogar quase um ano numa história que deveria NO MÁXIMO durar por três meses - e estaria de ótimo tamanho) ao mesmo passo que talvez os autores seja por inexperiência, seja por querer deixar sua marca no mercado ou seja por interferência editorial (de querer fechar o evento com maior impacto e chave de ouro) que a história termina com o Coringa como uma grande ameaça quando, honestamente nada disso faz sentido com tudo o que veio antes.
Quer dizer, logo no início tem uma história com o Espantalho em que ele se vê inútil e humilhado diante do cenário da Terra de Ninguém (com as pessoas desoladas em meio a um cenário que não possuem comida, habitação ou serviços básicos). Não existe espaço para um bicho papão, e até por isso que o Coringa constantemente é mostrado como idiota e sem propósito com cenários ridículos (sabe, concorrendo para presidente e apanhando do Bane).
Enquanto outros peronsagens se adaptam (seja com os músculos de Crocodilo e Szazz para manter as pessoas na linha em seus feudos ou Duas Caras manipulando e controlando seu grupo ou, bem, Hera Venenosa fornecendo alimentos e o Pinguim controlando o mercado paralelo - e, droga, mesmo o Caça-Ratos usando seus mascotes para caçar comida nos esgotos) e alguns percebem que não tem lugar nesse cenário (como o Charada que se muda de cidade), eu acho que o papel do Coringa aqui tinha que ser o de ser humilhado e perceber que ele não tem papel nesse cenário - e ou voltar com sangue nos olhos na Nova Gotham ou, se eles quisessem realmente subverter o personagem mostrar que ele vendo que é inútil numa cidade desolada colocá-lo realmente tentando ajudar as pesssoas (é).
Isso inclusive permitiria mais espaço para que a conclusão pudesse trabalhar no que realmente é interessante e precisava, que é Batman confrontar Luthor (ainda que tendo de ceder à ajuda dele para finalmente reconstruir a cidade), enquanto alguma história monte o cenário do que efetivamente aconteceria dali para frente.
Quer dizer, no quase um ano de histórias se estabelece que quem ficou para trás ou tinha ficha suja, ou era imigrante ilegal ou não tinha muitas opções, e, bem essas pessoas que ficaram acabam ocupando casas que não eram delas, roubando roupas, materiais e basicamente tudo que foi deixado para trás. Mesmo nos cenários absurdos da história, é importante que se pontue o que aconteceria agora que muitas pessoas voltariam para suas casas? Como a lei se aplicaria nos crimes cometidos durante um período em que a lei não mais existia?
Eu acho que o Greg Rucka trabalha um pouco disso nos meses seguintes com a Nova Gotham, mas é muito tangencial e incidental. Faltou um pouco de desenvolvimento para efetivamente concluir a coisa toda e estabelecer o que aconteceria dali em diante - principalmente porque com a Nova Gotham viriam outros eventos como Batman Assassino e Fugitivo, que basicamente jogam mais e mais para escanteio a ideia das diferenças entre quem ficou em Gotham e quem fugiu durante a Terra de Ninguém ou basicamente todos os dez anos prévios com novos coadjuvantes e cenários para os personagens, como Robin num internato e Asa Noturna como policial em Bludhaven).
E o mesmo vale pro plano do Coringa de matar crianças (sabe, para 'matar a esperança'), que, meu Deus, que coisa sinistra mesmo para um cara que constantemente está constantemente espancando a namorada num cenário que tenta fazer isso parecer uma piada. Podiam passar sem essa (e outras, sejamos honestos) fácil, fácil.
Podiam produzir uma saga - e não um mega-evento devastador durando um ano em múltiplos títulos (que não se conversaram muito na maior parte do tempo) e diversos autores, muitos dos quais estrearam e nunca mais escreveram quadrinhos depois disso.
No fim a história marca um divisor de águas por bem ou por mal muito mais por seus defeitos do que como a cereja do bolo para coroar décadas de trabalho.
Uma pena.
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