Lobo Solitário é um material que raramente precisa de explicações. Publicado entre 1970 e 1976, com várias adaptações tanto para o cinema quanto televisão (já nos anos 1970 mesmo) e republicada no mundo todo, o material é facilmente um dos principais porta-vozes do mangá para o mundo.
Narra a história de Itto Ogami e seu filho Daigoro em suas perambulações pelo Japão feudal em busca de contratos como assassino para executar seu plano de vingança contra o clã Yagyu. No entanto, essa história serve bem mais de pano de fundo para retratar crônicas desse período, tirando a perspectiva ufanista de um passado glorioso (e resgatado alguns anos antes como a visão dos tempos de glória do país na mobilização para a segunda guerra mundial).
Itto Ogami funciona de certa forma como o ideal ufanista do samurai perfeito seguidor do bushido e reconhecido e admirado por todos onde vai pela sua superioridade moral contrastando com o passado real (afinal, outros samurais, incluindo o clã Yagyu são retratados como sórdidos e corruptos, gente que estupraria a própria irmã ou que rouba e mata camponeses indiscriminadamente). Não só isso, com vários episódios retratando algo que passa longe do retrato ufanista perfeito - gente passando fome, as constantes revoltas pelos impostos altos e o tratamento desumano do cidadão comum, com um exemplo que vem muito em mente do lorde gastando os recursos do feudo em um esporte antiquado (de caçar cachorros) enquanto a população camponesa não tem água ou comida. Mas, obviamente não é só isso. O tratamento de mulheres na época (sempre objetificadas e constatemente vítimas de importunação sexual e abusos) demonstra muito de uma cultura longe de respeitosa e, como o código da honra do bushido defende.
Dito isso, ainda temos a história em si de Itto que sofre com uma acusação injusta que causa a destruição de seu clã, a perda de sua reputação e com isso tem de fugir pelo país, não buscando provar sua inocência mas buscando vingança, que significa destruir os Yagyu responsáveis pela sua miséria.
Claro que, e é importante destacar que a história em seus vinte e oito volumes (cada qual com aproximadamente 300 páginas) é uma longa alegoria e não somente uma única e contida história. Vários personagens tem seus momentos, e cada narrativa serve para detalhar e contextualizar os motivos dos personagens principais, e de suas escolhas.
Não digo que tudo funcione (francamente acho que existem ao menos 3 grandes problemas principais para o final, e detalharei mais sobre eles em breve), mas existem dois grandes fatores que estabelecem o cenário da batalha final, e seu resultado (incluindo seu curso).
Um dos pontos principais do confronto final é a teatralidade da batalha de Itto e Retsudo (líder do clã Yagyu), enquanto o outro ponto é a fatalidade da situação toda.
A teatralidade da batalha final de Itto e Retsudo é algo bastante claro quando observamos, inclusive, que ambos esperam por uma audiência para de fato lutarem com toda a determinação, ainda que durante a série esta questão esteja também distilada em pontos diversos. O Bushi e a horna tanto comentadas ao longo da série são relevantes apenas quando outros observam, e mesmo Itto que é retratado como o ideal do samurai honrado não parece se importar em usar da honra contra o adversário (ou ignorá-la para benefício próprio - e num exemplo bem evidente já desde o começo é quando o samurai Itto arremessa sua espada para atacar de surpresa seu adversário, algo que vai contra os códigos de honra justamente pela virtude da espada como extensão do samurai, arremessá-la é abrir mão de um pedaço do próprio corpo).
A batalha final é um enorme palco que Itto vai montando aos poucos, expondo as fraquezas de Retsudo (e dos Yagyu) e justamente nisso partindo para a fatalidade do confronto. Droga, eu diria até que Itto poderia facilmente derrotar seu adversário em qualquer momento de seus confrontos anteriores mas opta por morrer pela sua espada como ato final dessa peça, porque de sobremaneira Itto sabia que não havia vitória para ele ao final daquela batalha.
Não importava de maneira algum que ele derrotasse Retsudo (em qualquer das ocasiões em que se enfrentaram), isso era irrelevante para o Lobo Solitário. Ele já havia destruído o clã Yagyu (eliminado os herdeiros, revelado seus segredos e assim enfraquecendo seu poder - inclusive pela incapacidade de seus mais poderosos soldados lidarem com um único homem - e no ato final exposto sua covardia, ao lutar sem espada e ferido contra Retsudo que usou seus últimos soldados e subterfúgios contra Itto), e, efetivamente ele sabia que vencer essa batalha não lhe traria nada. Não restararia a honra dos Ogami, não devolveria seu cargo como executor do Shogun ou daria qualquer possibilidade de uma vida melhor para seu filho Daigoro. Vencer Retsudo não lhe traria nada, mas perder em desvantagem (de novo, com a espada quebrada, com um ferimento enorme e isso depois de expor os segredos do clã)? Isso destruiria fatalmente seu adversário mais que qualquer coisa que ele pudesse fazer.
Esse inclusive é o ponto que Retsudo aceita quando essa fatalidade (após ficar preso pelo shogun, após ver seu clã se dissolvendo e além de qualquer chance de reparação), e, no ato final da série aceita de braços abertos o golpe de Daigoro, e após isso o abraça.
Tudo isso é ótimo, em consonância com a série e são os argumetnos positivos da conclusão. No entanto eu sei que muita gente enxerga esse final de maneira anticlimática e com grande razão, como eu disse existem três grandes problemas para isso.
O primeiro é o final de How I Met Your Mother que foi planejado exatamente ao começo (no primeiro volume já é dito que este seria o resultado - a derrota de Ogami e a quase dissolução dos Yagyu) e não se pensou em alterar conforme a série avançava e expandia. O problema aqui é que mesmo ciente da teatralidade e do plano de Itto relatados acima, fica difícil aceitar essa conclusão como um plano ideal depois de basicamente tudo o que aconteceu. Itto vence todo tipo de obstáculo, enfrenta exércitos e agremiações inteiras de guerreiros e plebeus, derrotando todo ataque que é movido contra ele e de repente seu plano é o de morrer em combate com o Shogun assistindo e chorando. Dizer que é anticlimático é pouco, mas, verdade seja dita, funcionaria melhor se a série tivesse 10 ou 15 volumes apenas.
(Ainda mais com os volumes finais com dois intervalos entre o duelo de Itto e Retsudo, a prisão do segundo, uma enchente e um incêndio atacando Edo e vários capítulos maçantes e desnecessários sobre espiões Yagyu deixando seus postos, e tudo isso sem falar de Abe Tonomo, o provador de comidas do Shogun, que na melhor das hipóteses é um alívio cômico, na pior um desperdício de papel).
Somado a isso, nós temos dois elementos ou armas de Checov que são as cartas na manga de Itto durante a série (a carta dos Yaguy com seus segredos e o dinheiro que ele recebe pelos assassinatos). Ambas situações são igualmente anticlimáticas.
Além do fato que a carta não é usada por Itto (mas pelo alívio cômico/desperdício de papel), e, além do julgamento de Retsudo acabar favorável para o personagem (mesmo que expondo seus segredos enquanto diminuindo seu poder e influência), a verdade é que a série tenta demonstrar por vários capítulos que isso seria a grande arma de Ogami contra os Yaguy, que varreria o clã da face da terra e devastaria Retsudo até não sobrar pedaços, e, ao final é apenas um pequeno e minúsculo peido. Além do fato que o impacto das ações de Itto até aquele momento ser muito mais devastador (matando os herdeiros de Retsudo, por exemplo), o julgamento com o Shogun perdoando Retsudo é, droga, é difícil de engolir, ainda mais pelo que vemos na própria série com gente sendo ordenada a cometer seppuku por ofensas muito menores (como o provador de comida que é condenado porque sua casa - que estava no trajeto do Shogun - pegou fogo).
Do dinheiro temos algo parecido, uma vez que durante a série vai se comentando sobre os planos de restaurar o clã Ogami (através de subornos e etcs), inclusive com propostas feitas a Itto para oportunidades que ajudariam a restaurar seu clã através de favores (usando o dinheiro para construir canais, pontes ou outros projetos que favoreceriam a população). No entanto ao final da série nos é revelado que o dinheiro já estava reservado para a compra de dinamite (claro) que seria a arma do menino Daigoro contra os soldados Yagyu no caso da derrota de Itto no campo de batalha. E aí imediatamente a dinamite é usada para impedir que a água das chuvas destrua Edo... Ou seja, sequer é utilizado para a o propósito previsto.
O último elemento, talvez seja menos importante que os itens destacados aqui mas a ausência de um epílogo para relatar o que aconteceu com Daigoro após o final da batalha entre Itto e Retsudo (no mínimo, mas seria bom ver os desdobramentos do conflito numa escala maior, com o shogunato, com Edo e o restante do Japão também), o que fica ainda mais perceptível quando temos ao menos três capítulos relatando a jornada de espiões de Retsudo, e toda a história bastante dispensável de Abe Tonomo, ou a tempestade e depois o incêndio de Edo, mas não temos a conclusão da história do filhote do Lobo Solitário (do título, né? Lobo Solitário e filhote - Lone Wolf and Cub) que é crucial para a série e seu desenvolvimento.
Faz com que o final pareça abrupto, e deixando em aberto fatos relevantes ao leitor, ainda que exista sim um aceno na cena final de que Retsudo, ao abraçar Daigoro o aceite, e, dessa maneira o adote.
No que repito e reforço, com tantos capítulos que parecem avulsos ou são de fato desinteressantes, no mínimo um capítulo a mais para destacar a história do garoto Daigoro e do que haveria de consequências do confronto entre Retsudo e Itto não seria nada demais.
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