Continuando a situação de porque os quadrinhos vendem mal, e meio que para compilar todas as muitas partes até aqui, vamos em partes de resumo e de compilação para explicar um dos temas obtusos e que complicam a compreensão da estrutura de quadrinhos que são as pretensas 'eras' (de ouro, prata e etcs).
Basicamente a Era de Ouro é vista na condição da gênese dos quadrinhos de super herói, a partir da Action Comics 1 até mais ou menos 1961 quando se inicia a Era de Prata com o Flash de dois mundos quase simultaneamente a Stan Lee e o Quarteto Fantástico. Sim, é um resumo de um resumo de maneira extremamente simplista, mas a verdade é que é incrivelmente reducionista e errado.
Primeiro porque se essa Era em questão se relaciona a algum metal, com toda a certeza não é o Ouro, mas o Níquel, uma vez que a grande base da produção nesse período é o preço baixo para que os quadrinhos sejam comercializados pelo custo de centavos ou 'cents' de dólar (algo que vai da Action Comics 1 de 10 Cents até boa parte da Era Marvel de Stan Lee em que a diferença de 5 cents de uma revista da Marvel para uma revista de ótima qualidade de Jack Kirby na DC fazia toda a diferença em números de vendas), o que, considerando o contexto histórico (da grande depressão, do intervalo entre duas guerras mundiais e a pressão da lei seca nos Estados Unidos) fazem sentido para a produção de entretenimento barato, de baixo custo e com fins ufanistas para manter os jovens na linha, ainda que seja mais atrelado à realidade norte-americana, ou, mais especificamente, estadunidense (não existem exemplos equivalentes no Canadá ou México no mesmo período), e enquanto boa parte do mundo tem seus primeiros passos e experimentos com quadrinhos, a coisa toda é bem embrionária, com pequenos espaços em jornais aqui e ali.
É claro que a visão de 'Era de Ouro' condiciona a uma noção de que as coisas eram melhores (uma vez que o ouro é tradicionalmente atrelado a condição de destaque no pódio, por exemplo), o que simplesmente não é verdade. Com roteiros simplistas e arte precária (afinal, são quadrinhos produzidos a toque de caixa para comercializar rapidamente de maneira quase descartável) é apenas a gênese da editoração de quadrinhos como uma estrutura que surge nos Estados Unidos que existe na chamada era de Ouro, e nada mais. O que acontece é que a tempestade perfeita se formou, e sem devida concorrência, os quadrinhos triunfaram supremos, até que outras mídias enxergassem ali uma ameaça. No entanto já havia ali a estrutura para a produção que começa a ser copiada pelo restante do mundo (seja Osamu Tezuka no Japão ou Gian Luigi Bonelli na Itália) as revistas em quadrinhos tomavam forma no mundo todo a partir dos anos 1950, não mais apenas nos Estados Unidos.
Com o mercado se estabelecendo em todo o mundo, a partir dos anos 1960 (na chamada 'era de Prata') se inicia uma revolução maior que condiz com o estabelecimento da produção de quadrinhos como um meio em praticamente todo o mundo. As produções norte-americanas são republicadas nos demais países, assim como estes outros países passam a produzir seus próprios quadrinhos (sim, eu percebi depois o excesso de palavras começando com 'p'), e com isso a indústria passa a se reinventar com novas técnicas de impressão e produção, mas mais importante, com novas visões e perspectivas de criação, e, com a popularidade da mídia, houve uma retroalimentação de talentos (como no caso de Stan Lee com a Marvel, mas, a situação é global). Surgem também os movimentos de contracultura (gente como Crumb e Harvey Pekar).
Aqui acho que cabe a maior distinção que faço na interpretação do contexto histórico dos quadrinhos ao vislumbrar não eras mas ondas (até porque após a 'Era de Prata' as versões são conflitantes sobre o que vem a seguir). Até a década de 1960 temos um caldo primordial com algumas marolas tomando forma, e, claro, uma intensa onda que ocorre nos Estados Unidos - e se colapsa em si mesma com as pressões externas do congresso e união de país. Com os anos 1950, ondas pequenas vão criando forma (ainda que não definidas ou sem grande força), mas com os anos 1960 com a "ciência pop" que dá vazão a Vonnegut e a Jornada nas Estrelas, temos também heróis mais científicos como o Flash (com inúmeros conceitos físicos traduzidos nos Fatos Flash) os exploradores do Quarteto Fantástico ou mesmo o Homem Aranha enfrentando vilões com, bem, ao menos lógica científica (como o isolamento para combater Electro, por exemplo).
A década de 1960 com o movimento beat e a contracultura também dá espaço para uma onda concorrente de gente que leu os quadrinhos da fase embrionária ou 'Era de Ouro' e que, bem, não se importa em produzir quadrinhos comerciais e trabalha para elevar a arte e para produzir quadrinhos e usar os quadrinhos como meio para sua arte - assim como os artistas desse momento cultural buscavam suas influências em seus respectivos meios, levando o movimento hippie e a contracultura para o verve da cultura, fossem os Beatles, Kerouac ou, bem, Crumb e Pekar.
Esse movimento da década de 1960 se expande na corrente principal de quadrinhos nos anos 1970 com obras mais experimentais da Marvel espacial de Jim Starlin ao mesmo tempo que refletem nos autores independentes (ou ao menos fora do eixo Marvel/DC) como David Sim com Cerebus ou Wendy e Richard Pini com Elfquest, mas também vai criando forma no resto do mundo. Os anos 1970 são transformadores na Europa também com o surgimento da Heavy Metal e o início da grande transformação no mercado japonês (com alguns grandes clássicos como Lobo Solitário) e claro, aqui no Brasil o maior (se não único) grande caso de sucesso com a Turma da Mônica efetivamente vai tomando forma a partir dos anos 1970 com publicações mensais.
Os anos 1970 também são marcados por expandir a ciência pop para uma filosofia pop (com um enorme viés espacial/futurista). Surfista Prateado e Adam Warlock marcam os celeumas e dicotomias de um messias que sofre pelos nossos pecados enquanto Orion, Scott Free e o Povo do Amanhã discutem o papel da humanidade no futuro em meio a uma ópera espacial complexa que se desfralda sobre o valor da vida e da individualidade. Não são os únicos, é verdade, e exemplos tanto levam os personagens às estrelas (como os X-men e o Cristal M'kraan) quanto trazem os alienígenas para vislumbrar os celeumas terrenos (com o Arqueiro e Lanterna Verdes cruzando os Estados Unidos ao lado de um dos Guardiões da Galáxia).
Tudo isso enquanto fervilhava um caldeirão de descontentamento de artistas com os métodos de pagamentos, acordos e licenças sobre seus trabalhos com figuras como Neal Adams e Will Eisner buscando estruturas e condições para formar uma indústria mais sadia e justa para todos (morreram ambos sem conseguir isso efetivamente, ainda que hoje existam condições muito melhores justamente por sua luta). No Japão na década seguinte (de 1980) os acordos extremamente vantajosos de merchandising (e que viriam a inspirar o restante do mundo) permitiram compensar as penosas jornadas para cumprir os prazos semanais com a perspectiva de royalties altos e retornos com licenciamento, o que resultou em gigantes surgindo e dominando a cultura popular como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, e, em contrapartida, inspirando de volta nos Estados Unidos com acordos similares para as Tartarugas Ninja.
Mas artistas inspirados pela contracultura e filosofia pop da década de 1970 partiam para, bem, filosofia real e a elevação da mídia como uma forma de arte. Gente como Alan Moore, Neil Gaiman, Grant Morrison, Dave Mckean e Bill Sienkiewicz partem para os tradicionais quadrinhos de super heróis para alterar as regras do gênero ao buscar formas novas de produzir arte, explorando os limites do 'conflito na literatura' através dos quadrinhos - o homem contra Deus, contra a ausência de Deus e contra o autor imperam nesse período em obras como Monstro do Pântano e Homem Animal.
Com o que chegamos aos anos 1990, e enquanto os quadrinhos japoneses começam a dominar o mundo (ainda que em pequenos episódios, brigando para transpor a barreira linguística) e os quadrinhos norte-americanos (em momentos questionando o próprio estado da indústria de quadrinhos norte-americanos) chegam a um grau de maturidade ímpar (com o talento de artistas independentes capazes de criar suas histórias com maior liberdade com o selo Vertigo e a nova editora Image), a década é marcada mais pela alta especulação e diversas mudanças para se adequar aos maiores índices de retorno. Mesmo no Japão o esgotamento com as rotinas estafantes leva alguns autores ao limite (ou bem próximo dele) e essa década parece chegar ao fim com o fôlego diminuindo consideravelmente, grandes promessas se desfazendo e muito pouca mudança efetiva com relação ao cenário promissor da década passada. E o movimento japonês de transformar toda (ou quase) obra em uma animação buscando tirar cada centavo possível e imaginável do público encontra seus pontos de estafa, ainda que ao conquistar novos mercados para que o processo reinicie foi possível manter a máquina funcionando por mais tempo, mesmo sem saber até quando se sustentará.
No entanto a década de 1990 termina com um novo potencial de retorno rápido para as franquias com os cinemas, que, com poucos e esparsos filmes de heróis no período, e, encontra nos anos 2000, principalmente após os atentados de 11/09/2001 uma válvula de escape ufanista para os norte-americanos (se você leu qualquer quadrinho do Homem Aranha de antes dos anos 2000, vendo o personagem perseguido e atormentando por tudo e todos a cada painel e no filme de Sam Raimi carregado por figurantes num metrô, bem, é a válvula de escape ufanista de que estou falando). Em algum ponto nesses 20 anos os quadrinhos vão perdendo a importância para suas empresas mãe que enxergam apenas o potencial para grandes franquias multibilionárias.
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