Para entender The Boys, tanto em suas virtudes quanto em seus erros e fracassos se faz necessário entender primeiro e mais importante um detalhe bem importante que é o fio motriz por trás de toda a série, sua motivação e sua estrutura: Garth Ennis.
Ennis é o criador da série (assim como Preacher, Hitman, Crossed e mais uma dezena de outras), e ele é um irlandês sentimentalista e desbocado que tem opiniões contundentes sobre uma dezena de coisas. Ele gosta de escrever sobre guerra, e, essencialmente, o valor de uma pessoa - que normalmente se mede por suas ações - e isso se reproduz série após série como um mote comum. E ele é bastante amargurado com o mercado de quadrinhos norte-americano.
Não sei dizer quando isso começa exatamente ou se é algo que se dá por anos sendo ignorado e fracassando em emplacar uma série de sucesso - por melhor que fosse a qualidade de seus quadrinhos - sempre vendendo menos que histórias idiotas do Homem Aranha ou algo do tipo. Ennis de seu início no mercado norte-americano até os dias de hoje trabalhou quase sempre às margens da principal corrente, ainda que não tão pro underground como um Robert Crumb ou Harvey Pekar (nem de longe). Ennis gostava de suas historinhas de guerra e a provação da natureza humana que a situação proporciona, e, mais do que isso nunca tenha visto muito valor na condição super heroica.
Qual o valor de um soldado no dia D correndo por trincheiras quando um maluco com um anel brilhante poderia acabar com a guerra toda em segundos...?
Mas não creio que isso signifique de fato que o autor desgoste de supers, tanto que é dele a melhor história do Superman publicada pela DC desde, pelo menos, 1985, ou ao menos o autor gosta (e bastante) do que o personagem é e representa.
Fora Superman, Ennis realmente despreza e distila o ódio para toda e qualquer forma de personagem super heroica que cruzar o seu caminho (ou de suas histórias). Seja o Justiceiro ridicularizando Homem Aranha e companhia, seja o Constantine mijando nos pés do Vingador Fantasma e fumando um cigarrão enorme de maconha feito do Monstro do Pântano ou seja com as aventuras de uma prostituta super heroica que lida com a ejaculação precoce, taras e outros problemas de personagens 'inspirados' em figuras bastante reconhecíveis.
Em The Boys esse ódio é o grande protagonista, e não Billy Butcher (Bruto nas legendas da Amazon), Hughie ou qualquer outro dos personagens. O ponto da série não é uma grande metáfora sobre a cultura de celebridades (com o viés de super heróis corporativos em contraste com, bem, nossa estrutura de Hollywood e celebridades televisivas) até porque esse ponto se perde muito fácil quando o mundo de The Boys parece não ter qualquer diferença do nosso - exceto que os super heróis são as únicas celebridades... Os heróis estrelam em filmes, seriados e o que mais nesse mundo, e, isso é parte do ponto de Garth Ennis como um paralelo para a indústria de quadrinhos (porque somente ênfase e destaque para super heróis quando existe tanto mais?).
O ódio é a força motriz da história que leva os eventos de 'a' a 'b', assim como a força motriz pelos inúmeros, incontáveis e abissais buracos do tamanho de um cânion que são as falhas lógicas e buracos do roteiro... E ainda que a série da Amazon tenha menos justificativa para manter e preservar esses buracos (afinal a primeira temporada é de 2019 e a primeira edição de The Boys pela Dynamite é de 2009), é preciso entender que nem toda a boa vontade do mundo tornaria o roteiro em algo perfeitamente coerente.
Não se preocupe, eu vou explicar isso mais a fundo na versão com spoilers da resenha, mas, de maneira geral tente só entender que o problema desse discurso de ódio é que ele se retroalimenta e não enxerga os erros óbvios de sua própria narrativa, criando algo nas linhas das mais esdrúxulas fake news, que exigem do leitor a cumplicidade de ignorar toda uma estrutura que não sustenta a condição básica da narrativa.
No entanto, a série consegue trabalhar melhor as dinâmicas entre os personagens, principalmente com as excepcionais performances (com destaque para Anthony Starr como Homelander - ou Capitão Pátria - que realmente é extraordinário com suas nuances e o alcance de sua atuação e merece todos os elogios possíveis e imagináveis, apesar de não ser o único excelente ator no seriado), e, mesmo a estrutura da grande conspiração e a estrutura corporativa da Vought e seus inúmeros braços espalhados pelos mais diversos ramos e indústrias serve como um paralelo bem mais contundente para uma certa empresa de um ratinho que tem basicamente o mesmo tipo de inclinação. Os super heróis são mais uma alegoria complementar.
Só que esse excesso de amargura e ódio cria problemas práticos bastante complexos com a dificuldade enorme que existe em criar personagens empáticos para o espectador. Sim, os vilões são maus, terríveis e extremamente corruptos. Mas e os 'mocinhos'? Billy Butcher é, na grande maioria da primeira temporada, tão ruim quanto seus antagonistas, querendo simplesmente matar pessoas por possuírem super poderes, e esse é um traço compartilhado pelo personagem 'Francês' (que, com isso, mira lucrar matando os super poderosos) e mesmo Hughie que é o mais próximo de um substituto do público, age de maneira pouco escrupulosa, subornando, manipulando e matando pessoas ao final da primeira temporada.
Claro que existem diversos seriados com anti heróis - e mesmo anti-heróis em situações que sejam pouco ou nada cotidianas - mas existe sempre um paralelo lógico e coerente com uma situação humana comum que está extrapolada através de uma analogia... Algo que acaba meio que se perdendo nos argumentos anteriores (do ódio de Ennis para o gênero super heroico).
Vale conferir a pena e ignorar uma série de problemas lógicos (que, pelo que vi da segunda temporada só ficam mais problemáticos), rindo das piadas imaturas enquanto contemplando a violência e nudez pelo valor de diversão. Só não espere nada muito mais profundo.
Nota: 6,0/10
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