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24 de junho de 2020

{Editorial} Mas... A indústria dos quadrinhos em geral não é racista e conservadora...?

Refletindo mais sobre o tópico iniciado com o tema dos Cavaleiros do Zodíaco (e os quadrinhos japoneses), temos uma análise mais abrangente da mídia como um todo da indústria de quadrinhos como força motora para o conservadorismo.

Parece loucura a uma primeira vista que numa indústria em que os X-men odiados e desprezados por um mundo ao qual juram proteger possam servir como peças de um tabuleiro de conservadorismo e racismo, mas, ainda que a visão generalista de que TODA a indústria de quadrinhos assim o seja, representa uma condição limitante e debilitante, é preciso entender que existem sim mecanismos e ferramentas que impedem uma indústria mais representativa, criativa e com valores melhores para toda uma enorme faixa demográfica, e, com isso inflando uma enorme câmara de eco de pensamentos conservadores (e racistas). Mas esse não é o começo da história.

Podemos discutir limitações gráficas, e, sim, acredito piamente que isso seja um fator dos anos 1930-1950, principalmente considerando que uma boa parte da produção de quadrinhos era pensada e voltada para publicações em jornais (que é ainda mais limitada graficamente com papel de parca qualidade e uma impressão que precisa ser mais veloz que nítida). Só que enquanto isso justifica uma parte da situação, é muita ingenuidade crer que a limitação gráfica é, senão todo o problema, ao menos a parcela maior dele.
A partir do momento que Jack Kirby começa a ilustrar personagens negros nas edições da Marvel e DC e expandir os limites de produção gráfica, essa justificativa se esvai totalmente, e, continuamos vendo exemplos de posturas racistas, chauvinistas e conservadoras nos quadrinhos ainda.

Os quadrinhos não surgem como uma visão conservadora, ainda que surjam em uma sociedade racista. Sim, Tintim no Congo (1932), o parceiro mirim do Spirit (Ébano criado em 1940) e diversos exemplos que perduram em décadas posteriores (como o Egg Fu de 1965 ou a Wakanda e o Pantera Negra em 1966). E isso só falando de racismo... Em se tratando de misognia e machismo os exemplos são tantos outros (como na mesma Fantastic Four 52 em que o Pantera Negra não se dignifica a ver ameaça na integrante feminina do grupo ou o citado exemplo da Mulher Maravilha como mera secretária da Sociedade da Justiça).

Nesse ponto, é mero reflexo da época e sociedade, ao que é fácil entender (não perdoar).
Até porque quando o pensamento vai minimamente além do 'aceitável' nesse contexto é execrado e perseguido pelo Macartismo através da 'Sedução do Inocente' de Fredric Wertham, manipulando dados para se chegar às conclusões necessárias e a conformidade.
Um homem solteiro adotando uma criança órfã (ou seja, exercendo uma função tipicamente vista como feminina ou emasculada à época)? Claramente é um homossexual.
Um mulher independente e...? Lésbica e claramente uma devassa amoral que ameaça a ordem natural das coisas!
Um alienígena de outro planeta que tenta fazer do mundo um lugar melhor? Comunista, óbvio!

É um argumento bem redutivo até para não entrar nos meandros - que são muitos e bem maiores, perseguindo os quadrinhos de horror e violentos, apontando para fatores como redução de capacidade mental dos leitores entre outros argumentos numa caça às bruxas contra a indústria de quadrinhos - mas a ideia central era a de controlar a indústria à vontade do conservadorismo, rendendo-a ao status quo. Nisso morre a EC Comics, nisso propaga-se cada vez mais o conformismo e deriva no renascimento da indústria através de uma visão mais acomodada e conformista.

O policial Barry Allen, o militar Hal Jordan, o capitalista vendedor de armas Tony Stark, o cientista criador de armas Bruce Banner, o retorno nostálgico do Capitão América (grande herói de outra era) e mesmo os X-men que são uma quase metáfora para o racismo, mas denotada sob a conotação de se posicionarem PELO status quo, unindo-se aos Vingadores e combatendo outros supervilões (majoritariamente mutantes) MESMO quando oprimidos pelo sistema de maneira tão grotesca e pungente como com a condição dos Sentinelas.
Você não vê os Vingadores, Quarteto Fantástico ou mesmo o Homem Aranha se posicionando contra os Sentinelas ou criticando abertamente o fato. Na verdade são comentários mais velados do tipo 'Quando será que os homens serão capazes de aceitar as diferenças e blá blá blá'. O argumento das maçãs podres e toda aquela ladainha comum e institucionalizada para controlar, subverter e dispersar o debate.

Enquanto no outro lado da DC não exista esse tipo de situação (da opressão dos povos mutantes), em momento algum da cronologia a ideia da Tropa dos Lanternas Verdes, que são basicamente policiais espaciais, é questionada ou relativizada para uma análise mais profunda. Quem dá o poder (ou autoridade) aos Guardiões do Universo de Oa para estabelecer uma super tropa de choque para apregoar 'justiça' ao universo?
Porque devemos crer que a visão de justiça deles é coerente com a nossa visão? Ou, e aqui é o ponto mais relevante, que exista um sistema de balanços e conferências que permita o acompanhamento e controle tanto de portadores de anéis energéticos como dos ditos Guardiões? E não é como se esse tipo de coisa não acontecesse (Sinestro, os Caçadores Cósmicos, Atrocitus, Relíquia...)

De novo, tudo isso É consequência de editores, autores e companhias tentando evitar chamar atenção do escrutínio popular e evitar encrenca (após décadas de perseguição que levou uma boa parte de companhias à falência) assim como jamais subverter expectativas buscando um produto que reverberasse a opinião e a prática do status quo.
Se uma história vai falar de drogas ou álcool será uma visão clara e maniqueísta sobre os malefícios do uso de substâncias.
Se focar na questão do racismo, destacará como os nobres heróis ousam reconhecer seus erros e buscam melhorar para a criação de um mundo melhor (mesmo que não façam de fato algo efetivo para isso).

Mesmo assim, é importante destacar que a estrutura da construção de quadrinhos a diferencia de outras mídias tanto num passado mais distante como ainda hoje em dia: Uma hq pode facilmente ser construída por um único indivíduo enquanto a ideia de produzir um filme, peça, série ou música individualmente soe insana por diversos motivos.

Mais que isso, no renascimento da Marvel nos anos 1960 Stan Lee e Jack Kirby produziam em conjunto quase uma dezena de títulos mensalmente... Quantos diretores lançam mais de um filme no ano? Ou atores estão em múltiplos filmes (com exceção de pontas ou participações)?
E não foram exceção. Chuck Dixon na década de 1990 e Peter David desde 1980 até hoje em dia são nomes notórios pela proficiência.

Isso facilita o efeito da câmara de eco, em que pela necessidade de poucos profissionais para muitos títulos um editor tende a contratar mais profissionais que reflitam (e reiterem) o que ele já faz e produz, reduzindo a perspectiva de vozes plurais. Em alguns casos até o oposto - como foi com a Marvel por muito tempo em que artistas DEVIAM emular o estilo de Jack Kirby, ou o que ainda hoje ocorre nos quadrinhos de Maurício de Souza.

No entanto, eu devo fazer um parênteses (apesar de parecer bastante óbvio) que eu não conheço o processo seletivo nem nos tempos de hoje e nem há décadas nas empresas de quadrinhos para dizer categoricamente se houve alguma prática racista ou denegatória para coibir a contratação de um bom (ou ótimo) profissional com base na cor de sua pele, mesmo que o número de autores e artistas negros no mercado em geral SEJA bastante baixo, mesmo hoje depois de projetos como a Milestone de Dwayne McDuffie.

De maneira similar, a situação de artistas femininas ou de minorias também padecem desta situação (antes de 1990, seria possível destacar ao menos cinco nomes de artistas de quadrinhos que não fossem brancos heterossexuais...?). Hoje, ao menos, vemos algum progresso (mesmo que tímido).
Seja na representatividade em cargos de autores negros, mulheres e qualquer outra condição, seja na presença cada vez mais comum de personagens negros, mulheres e de qualquer outra condição.

Sem dúvidas não é suficiente ainda, quando ainda enxergamos situações no mínimo constrangedoras  (como o caso que eu repito vez após vez do retrato de Wakanda em Demolidor em 2015) indústria (outras bem mais preocupantes - como no caso recente de Warren Ellis), e, talvez até, eu diria tem a ver com os insucessos e a dificuldade da indústria em ressoar com uma audiência moderna vendo ano após ano os números de vendas cair.

Existe mais para se debater e analisar, sem sombra de dúvidas (como a ótima história do Capitão América negro que a Marvel foi aos poucos jogando para baixo do pano para evitar polêmicas e críticas ao exército americano, pra ficar em apenas um exemplo), mas o texto já se estendeu bastante por hoje.

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