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20 de junho de 2020

{Resenhetorial} Os Cavaleiros do Zodíaco no caminho de Swann

Quando eu tinha nove anos, em 1994, eu acredito que ficaria perplexo em saber (ou ao menos ouvir) que num futuro não muito distante eu seria capaz de assistir a minha animação favorita na época a qualquer momento e em qualquer dispositivo (não só na televisão como em telas menores como celulares, tablets ou computadores). E que eu poderia assistir a tudo isso na seqüência, com dublagem original (tanto a original em português quanto a original japonesa), assim como rever outras tantas vezes quanto quisesse...

Em 1994 isso com toda a certeza pareceria loucura. Eu mal tinha digerido tudo o que a série Os Cavaleiros do Zodíaco que a extinta TV Manchete apresentava tinha de diferente em relação a tudo o mais que havia na época. A animação já tinha uns bons 8 anos quando chegou ao Brasil (no Japão foi produzida entre 1986 e 1989 com base no mangá lançado pouco antes em 1985), e foi uma das primeiras grandes animações japonesas a chegar ao país, se não a primeira, trazendo uma linguagem bem diferente do que era o comum de desenhos animados - e mesmo séries - na época.

A saga conta com aproximadamente 73 episódios numa única trama que revolve sobre o Santuário e os Cavaleiros de Ouro - dividida em arcos menores, como a Guerra Galática, os Cavaleiros Negros, os Cavaleiros de Prata e por último a Saga das Doze Casas - mas ainda assim algo bem diferente do que digamos, Scooby Doo, Zé Colméia ou mesmo outras animações de ação como Tartarugas Ninja, He-man ou Thundercats, e não somente pela violência.

Havia contexto e desenvolvimento para os personagens conforme a trama avançava para expandir eventos e tramas secundárias por episódios a fio. Nos primeiros episódios é apresentado o mistério da irmã de Seiya que ele não vê desde criança, e enquanto isso volta a ser citado vez após vez, não é solucionado definitivamente em nenhum dos 114 capítulos da história original (algo que em outros materiais mal passaria de uma temporada).

Isso ainda é algo muito difícil de se ver na animação americanizada, que tem como ideia e contexto episódios individualizados, que, embora possam fazer parte de uma trama maior, tendem a encerrar com um belo laço ao final de cada capítulo. A animação japonesa é bem mais expansiva, como outros casos seriam ainda mais gritantes, como por exemplo de Dragon Ball com os vinte capítulos que se passam em "um minuto" do tempo da série.

Claro, vale destacar que, para mim, era um baque tremendo perto de tudo que eu tinha como contexto do que era animação e do que era possível como animação. Como citei, os Thundercats ou as Tartarugas Ninja jamais decepariam a orelha de um adversário (e isso é algo logo dos momentos iniciais do primeiro capítulo), para ficar em um único detalhe. Mas a animação era bem diferente, com um estilo que destoava de tudo que eu já tinha visto - mais realista e com detalhes que o cartum do Zé Colméia e do Scooby Doo por exemplo, ainda que preservando claros traços de uma animação clássica. Além de uma trilha sonora orquestrada bem diferente do que, bem, tudo o que as demais animações produziam.

Tá, legal. Isso tudo diz que, no contexto de um moleque de nem dez anos a série era algo extraordinário. O que isso quer dizer para esse mesmo moleque hoje aos trinta e cinco?
Bem, primeiro, que muita coisa que era inócua ou normal na época, hoje sob outra ótica ou contexto não soa tão inocente.
Enquanto eu consigo entender a obra sob o contexto da época, e mesmo limitações técnicas (por exemplo a questão do mangá ser feito em preto e branco, e, bem mais branco para reduzir o consumo de nanquim e custos de produção), ainda assim não é possível ignorar que, sob o contexto da época a série é misógina, racista e com alguns pontos bem dúbios e questionáveis na melhor das intenções.

Dúbio e (bem) constrangedor está o principal mote da série revolver sobre um rico japonês adotando crianças órfãs para jogá-las à própria sorte em alguns dos lugares mais perigosos do mundo em busca de 'armaduras sagradas' por submetê-los a treinamentos intensivos (e terríveis). Inclusive, nos é demonstrado claramente logo no início da série que abuso físico não era um impedimento ou algo visto como ruim por este ricaço ou seus empregados (como a cena em que uma criança está amarrada, pendurada de cabeça pra baixo e sendo espancada por uma espada de madeira porque não obedeceu ordens).
E, claro, depois de voltarem do treinamento eles competem um torneio até a morte! Repito, bastante dúbio e constrangedor para dizer o mínimo.

Nos outros campos, na misoginia e racismo a coisa vai um pouco além e sai da mera dubiedade.
Do que tange o racismo, eu sei que é bem mais complicado, que começa com a questão técnica (já mencionada da do uso de nanquim) mas tem uma longa e extensa questão da própria sociedade japonesa e é bem fácil de notar em outros mangás/animês (vide o sr Popô de Dragon Ball ou mesmo o fato que o general/líder de Full Metal Alchemist é, quem mais, senão o Fürher).

Da questão do nanquim, eu acho que justifica pouco, vale destacar. Enquanto eu entendo que economiza e agiliza produzir páginas em que se precisa pintar menos, você precisa entender que as séries frequentemente trazem personagens com uniformes negros de cima a baixo, ao mesmo tempo que não é difícil encontrar personagens com longos cabelos negros (que, igualmente, levam bastante tempo e trabalho para ilustrar)... E no caso dos Cavaleiros do Zodíaco eles tem os Cavaleiros Negros (com armaduras e roupas escuras que exigem bem mais nanquim que, bem, uma pessoa de pele negra exigiria).

Mas o que, ao meu ver cimenta a situação de que não é mera coincidência, vem quando em toda a Índia o único sujeito loiro de olhos azuis é um cavaleiro de ouro - dito, inclusive, como o mais próximo de Deus. Não tem como olhar para isso e dizer, ok, normal (ou mesmo inofensivo).
De todos os bilhões de indianos, que são normalmente bem mais parecidos com Hasan Minhaj, Aziz Ansari ou Kumail Nanjiani, um sujeito branco de olhos azuis supera a todos os demais...? E isso não tem nenhum teor ou contexto racista...?
E droga, de todos os 88 Cavaleiros de Athena, nenhum é negro. Só tem um outro personagem, bem esquecível por sinal, na fase de Poseidon, mas é isso.

No caso da misógina pelo fato que, bem, em 114 episódios, com 88 Cavaleiros e toda uma gama de personagens coadjuvantes, é bem provável que não existam mais que dez personagens femininas SENDO QUE a série deixa bem claro que no contexto desse universo mulheres não podem ser 'cavaleiras', elas são 'amazonas' que precisam usar máscaras para ocultar seus rostos (isso é mencionado já no primeiro capítulo). Talvez tenham séries mais misóginas (sim, a Mulher Maravilha originalmente na DC foi secretária da Sociedade da Justiça nos anos 1940, enquanto o grupo tinha figuras como o Átomo que era um baixinho com um bocado de força) sob a ótica da época, bem, não muda exatamente o fato.

Com doze cavaleiros de ouro, mais os dez cavaleiros de bronze, mais os marinas e os cavaleiros deuses... Será que não dava pra encaixar uma única personagem mulher?
Afrodite de Peixes mesmo podia facilmente ser uma moça, pra ficar em um exemplo fácil, mas vários outros poderiam ser substituídos sem prejuízo no material (o Cavaleiro de Escorpião é conhecido pelas longas unhas, por exemplo). Assim como a questão da máscara para as amazonas não acrescenta anda na mitologia ou lógica desse universo... Só reduz as personagens a uma condição em que são mais parecidas (com suas armaduras que pouco cobrem o corpo, apesar da máscara cobrindo totalmente o rosto que não lhes dá características) enquanto os personagens masculinos todos tem suas personalidades bem distintas e características marcantes (mesmo para coadjuvantes que pouco ou nada representam na história maior).

É estranho em retrospecto e muda bastante a forma de interpretar o material anos mais tarde... E ver como ele envelhece mal sobrevivendo mais pela nostalgia de fãs que cresceram assistindo e hoje se nublam às críticas e ao que o material fez (e ainda faz) de errado.
Claro, ainda tem coisas legais no meio da coisa toda (a saga do Santuário é bem legal ainda), mas inevitavelmente eu preciso enxergar melhor e de maneira mais crítica a série. Sem o olhar nostálgico, sem a visão de criança fascinada pela novidade.
É curioso, interessante, mas tem (muita) coisa melhor para assistir por aí.

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