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6 de agosto de 2015

{RESENHAS DE QUINTA} Apocalypse The Line of Darkness - Três resenhas em um!

Essa resenha serve para dois outros propósitos além de ser uma resenha, e é importante destacá-los aqui:
1) Para inequivocamente expor minha opinião (e o bom senso comum) sobre a questão de que é possível uma adaptação ser melhor que o original - ou como tanto se perpetua 'que o livro é sempre melhor'. É muito fácil complementar argumentos nesse território com livros de Stephen King (que são uma droga enquanto os filmes tendem a ser ótimos), mas essa resenha permite um passo além ao oferecer ainda um terceiro paralelo com os videogames mostrando mais uma camada e com isso proporcionado o tópico 2;
2) Provar que videogames são um meio de arte de qualidade, ao mostrar, não apenas que o jogo é MAIS complexo que seus predecessores, puxando os limites da proposta com suas liberdades estruturais. Claro, existem outros games com igual prospecto (já citei aqui Bioshock e Mass Effect), mas eles não partilham dessa mesma estrutura - adaptar algo já existente, e, ir além.
Sem mais delongas:

Nota 7,5/10
Publicado em 1902, o romance 'O Coração das Trevas', ou no original 'Heart of Darkness' é a obra-prima do autor britânico Joseph Conrad, que retrata da condição humana de sua a natureza com o mal e sua relação com a sociedade.
O autor trabalha com a teoria de que as regras sociais controlam e mitigam o mal que existe dentro de todos nós através de uma estrutura que define o papel ordenado de cada cidadão no controle e vigilância do mal de seus semelhantes. Quando isso se ausenta, o caos se instaura e bam; A anarquia e o horror, o horror!

É nesse cenário de anarquia além da sociedade que o diretor Francis Ford Coppola atualiza a trama para o Vietnam em guerra em seu Apocalypse Now de 1979, e, mais recentemente em 2012 se passando em uma desolada Dubai após uma tempestade de terríveis proporções em Spec Ops: The Line.

Enquanto os três trabalhos tratam da mesma história em linhas gerais, a narrativa toma tonalidades diferentes conforme cada um tenta abordar aspectos diferentes - a obra de Conrad não tem exatamente um ponto de vista pacifista, uma vez que determina que os 'selvagens' povos não colonizados estão aquém da condição da sociedade, e portanto vivem num terrível mundo de caos, anarquia e horror, enquanto tanto Coppola quanto a 2Kgames partem duma visão mais clara que a guerra é a verdadeira anarquia e horror.

Então o que muda entre cada versão?

Bem, começando pelo original: Ele sofre de alguns problemas de sua condição histórica.
Quer dizer, ele saiu num período do declínio mais vertiginoso do antes grandioso império britânico, que via a África como seu quintal particular para fazer todo tipo de acordos escusos imagináveis e possíveis. Talvez parte do ponto de Conrad seja uma crítica a essa visão grandiloquente da poderosa Britânia (sendo os filhos de sua terra os verdadeiros monstros a levar o horror para o mundo), mas ainda assim não muda a perspectiva que Conrad faz dos nativos africanos como basicamente o 'selvagem bonzinho' (que aqui é basicamente um cãozinho esperando seu dono para dar ordens).
Os nativos não tem identidade, não tem caráter, não tem capacidade e complexidade mental.
São lacaios e meramente estúpidos a ponto de precisarem e esperarem a chegada de um homem branco para lhes dar ordens.
E, sejamos honestos, não tem como isso envelhecer bem.

Nem estou sendo politicamente correto ou algo do tipo, e não acho que a mensagem se perca por isso.
Mas a mensagem é datada e preconceituosa por isso, e a isso tira um tanto do brilho.
Mais ainda quando outras obras (inclusive mais antigas) fazem a mesma reflexão sobre o mal inerente ao ser humano sem depender desse tipo de estrutura preconceituosa, com grande destaque às brilhantes obras de Dostoievski como Crime e Castigo (com as fantásticas reflexões de Raskólnikov sobre cometer crimes para se tornar um homem superior - e toda a complexa estrutura e reflexão sobre a execução e ato) e principalmente os Irmãos Karamazov (com grande destaque a seu 'O Grande Inquisidor').

Nota: 9,5/10
Mudando o foco para a obra de Coppola, ele consegue atualizar bem a história, contextualizar melhor seus personagens e trazer uma reviravolta interessante sobre a moral geral da trama.
Sem dúvida é uma versão mais universal da história, mesmo que foque num período específico da história. É fácil substituir a guerra em questão e o país invasor com qualquer outro, em qualquer guerra, afinal esse é o ponto de Coppola. A guerra é o "Horror, o horror". A guerra torna os homens em selvagens. A guerra representa o verdadeiro coração das trevas.
E isso é o suficiente para colocar a obra do diretor bem acima do original.
Seus personagens são melhor construídos, sua ambientação é mais tridimensional e até atemporal de um ambiente hostil, perigoso e assustador. Aqui há um propósito para as matas densas, os rios e toda a natureza ao buscar uma imagem dessa natureza selvagem do ser humano.
Essa criatura feral que nos colocou no topo da cadeia alimentar, mas que ainda é sobretudo uma criatura e reside no interior de cada um de nós.
Brando sem se esforçar em atuar (na verdade bem o contrário) rouba o show com tranquilidade, mas isso é realidade mesmo em seus piores papéis! Droga, ele é brilhante mesmo no péssimo "A ilha do Dr Moreau"!
Coppola é um gênio cinematográfico e sua obra transmite isso de maneira inequívoca. Sua direção é espetacular, a fotografia é brilhante, a estrutura narrativa flui perfeitamente... É uma obra incrível.
Só que indo direto ao ponto, não podemos esquecer que não é a melhor obra de Coppola, também diretor de todos os "O Poderoso Chefão" (dos quais parte 1 e 2 são alvo de debate constante sobre qual é melhor).
É um espetacular filme de guerra e um ótimo filme. Mas, no que tange a obras similares ou abordando o mesmo tema, como ignorar a genial peça de Kubrick "Glória feita de Sangue"? Mais contido, mais direto ao ponto, e com um roteiro tão poderoso no questionamento do valor da vida humana e da natureza da guerra que, mesmo sendo um dos filmes quase sempre esquecidos de Kubrick é uma obra prima.
Mas eu preciso enfatizar o que eu acho que é o grande problema do filme - que é corrigido no game - o protagonista.
Por mais que Martin Sheen seja um bom ator... Esse não é seu papel mais memorável (até porque por boa parte das filmagens o ator teve de lidar com doenças e complicações graças às locações)... Enquanto no game, bem, Walker (o protagonista) é mero condutor da trama para que o jogador veja e conduza a jornada através do inferno da guerra.

Nota 10/10
E dessas, é na versão interativa pros consoles onde a abordagem mais ousada se faz.
Veja bem, jogos de tiro e de guerra são o gênero mais popular de games desde que o primeiro jogo dessa natureza foi desenvolvido. Desde os anos 90 com Doom a popularidade desse particular gênero de jogos cresceu de tamanha natureza que existem convenções anuais (e bastante lotadas!) para o gênero! Criticar e provocar questionamentos sobre a moralidade do assassinato abjeto de centenas após centenas de 'inimigos' dentro deste formato com as ferramentas e mecanismos (e clichês) existentes em volta dessa glamourização da violência e guerra através das ações do Capitão Walker - mas não apenas dele, uma vez que, ao contrário dos outros meios, o espectador tem maior domínio e escopo sobre o resultado final. Spec Ops é um chute violento nos bagos dos jogos de tiro ao mostrar a imoralidade disso, e não apenas mostrar como esfregar em nossa cara.
Desde o começo com uma bandeira dos Estados Unidos pendurada de cabeça para baixo (expondo um claro ponto sobre a inversão de valores da natureza da guerra ainda mais com a trilha de Jimmy Hendrix tocando o hino americano - uma forma do guitarrista de protestar contra o Vietnam),

Claro que é a versão mais recente e por isso tem tempo para se atualizar e beber de várias fontes para se inspirar (com grande ênfase no filme de Coppola que serve como uma fonte de inspiração bem maior que o livro em si), corrigir imperfeições das versões anteriores e melhora-las, mas a questão é que para os videogames, Spec Ops The Line é o equivalente a Watchmen nos quadrinhos, desconstruindo o gênero mais popular enquanto expões com uma lente de aumento seus defeitos.

Ao protagonista cabe o papel de lidar com o bizarro cenário, mas em meio a um conflito onde 'mocinhos' e 'bandidos' não parecem se aplicar (ao contrário vão se misturando conforme a trama avança), ainda resta a difícil missão de descender cada vez mais fundo num caminho sem volta. Suas decisões morais são difíceis e sua racionalização para os horrores (que ele ajuda perpetrar como o massacre com morteiros no capítulo 8 do qual ele é responsável) ainda mais complexas, e a história caminha com isso transportando personagem e jogador numa espiral sem volta para a loucura.

Talvez seja a versão mais fraca do Capitão Kurtz (em sua melhor versão a de Brando), mas nenhuma tem um protagonista tão poderoso, tão bem construído, e diferentemente dos outros, o espectador é também cúmplice nessa jornada, puxando o gatilho, mas mais que isso, impotente em impedir os atos criminosos de Walker, mas, e aqui é onde entra a verdadeira genialidade: Tão no automático pelos outros jogos similares, os jogadores jamais TENTARIAM impedir os atos criminosos de Walker.
As provocações que o jogo faz ao jogador durante as telas de carregamento ("Quantos soldados você já matou hoje?" ou "Você ainda é uma boa pessoa") são com certeza a cereja do bolo e mostram o talento e dedicação do time responsável por esse produto, principalmente com minha favorita: "Já se sente como um herói?" que como as outras frases saem de maneira randômica, mas para mim apareceu após a cena do supracitado massacre do capítulo 8.

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