Kubrick tentou por anos (décadas, inclusive) filmar Napoleão. Ele montou a maior biblioteca do mundo sobre o general/imperador francês, ele escreveu um roteiro de 148 páginas (que você pode conferir aqui e é bem detalhado e compreensivo), e, honestamente algo não encaixou para que o filme fosse feito. Ao longo dos anos, após a morte de Kubrick vários diretores tentaram ressucitar o projeto de uma forma ou outra - fosse Spielberg planejando uma mini-série em sete capítulos como Chernobyl, até acabar com Ridley Scott com o filme lançado em 2023.
E puta merda esse filme não deveria existir.
Olha, eu sei que vai ter gente defendendo que existe uma versão do diretor de 4 horas e dez minutos que corrige todos os problemas do filme, mas me desculpe, caro leitor, o problema desse filme não é que existe muita coisa para cobrir em pouco tempo... Quer dizer, existe muita coisa para cobrir em pouco tempo, deixemos isso claro, mas isso seria resolvido com maior foco, atenção a detalhes ou direcionamento estratégico (focando a história em determinado período apenas ou com um foco em um aspecto somente - seja do romance com Josefina, na ascensão ou na queda da empreitada militar).
O problema é que esse é um filme sobre um general francês dirigido por um diretor inglês e onde todos os personagens falam... Inglês (mesmo que durante os eventos do filme, a França estivesse em guerra com a Inglaterra, ponto inclusive da ascensão de Napoleão em sua carreira militar conforme o filme).
Pode parecer bobo ou pequeno, mas esse detalhe faz toda a diferença pois toda a crítica feita à Napoleão, principalmente em momentos que vemos diretamente britânicos caçoarem da origem plebeia do líder francês não parecem de todo isentas e imparciais e sim enviesadas pela cultura britânica (que se extende ao filme em detalhes que anulam elementos da história francesa para facilitar a compreensão ao público anglo-saxão... Assim como todos personagens falando inglês, sai o calendário revolucionário para se mensurar tempo pelo calendário gregoriano), e, francamente nunca fica ao meu ver mais claro de um viés anglo-saxão com todo o tempo dedicado não ao relacionamento de Napoleão e Josefina mas às celeumas conjugais e, mais importante, às indiscrições da esposa (algo que curiosamente assistindo seis temporadas de um seriado sobre a Rainha Elizabeth e a coroa britânica nunca foi o foco - mesmo que implicado em dados momentos).
Mas não é isento. O filme termina com estatísticas das mortes sob o comando de Napoleão (algo que honestamente vendo Barry Lyndon ou Glória Feita de Sangue, com toda a certeza não seria utilizado por Kubrick), e por diversas ocasiões retrata o general como covarde, tolo e aparvalhado - e mesmo quando retrata a mente tática e habilidade militar parece diminuí-lo como se suas táticas fossem sujas e desonestas. Olha, não vamos fingir que ele era um cara legal ou bonzinho, mas, honestamente, alguém nesse período e época de fato era? Acho que cabe ao filme somente relatar os fatos e deixar que o público tire suas próprias conclusões (que dificilmente seriam diferentes de 'ele era um baita escroto').
Dom João fugia do general francês para vir ao Brasil estabelecer Portugal e explorar recursos naturais enquanto matava indígenas e fortalecia o tráfico de escravos da África... Mesmo Lincoln, Hamilton e diversas outras figuras da história norte-americana eram escravocratas... No entanto, curiosamente não imagino o musical sobre Hamilton terminando com estatísticas sobre quanto escravos ele tinha ou quanto do tráfico de escravos ele fortaleceu...
Digo isso porque fica difícil enxergar ou tentar entender os personagens ou sequer tentar compreendê-los, quando fica claro que o diretor denota desprezo e desgosto abjeto por essas figuras. Então uma versão mais longa ajudará a contextualizar melhor o momento histórico e nomes que pouco ou nada significam na versão de quase duas horas e meia disponível?
E, verdade seja dita, mesmo nas quatro horas da versão estendida, resumir esse extremamente conturbado momento histórico de maneira que seja fácil entender e acompanhar para qualquer leigo já é uma tarefa herculea. Mesmo nas sete horas do seriado proposto por Spielberg seria difícil, afinal, a França era apenas mais um dos muitos países e alianças européias em múltiplos conflitos nesse período do final dos 1700 início dos 1800, o cenário era altamente volátil e turbulento, e as guerras napoleônicas seriam facilmente mais que o suficiente para cobrir mais do que quatro foras de filme...
Quer dizer, talvez na versão estendida tenhamos mais duas horas com Joaquin Phoenix assoviando e fazendo outros barulhos estranhos para avisar que engajaria em atividades sexuais com Vanessa Kirby (ambos que são o ponto forte do filme, ainda que talvez o único ponto forte)... De fato tem muito pouco disso no filme...
Só que isso é só a superfície, você ainda tem todo o contexto da situação interna da revolução francesa e o caldeirão de pólvora social em que o país estava com a queda da bastilha e o que se seguiu nos anos posteriores. E ainda tem o conturbado relacionamento, não só de Napoleão com Josefina mas com a sociedade francesa como um todo (afinal, numa sociedade que aboliu a monarquia ele ascende a se tornar um imperador), e, francamente você pode fazer um filme longo com cada parágrafo ou partes de parágrafo aqui sem abordar todos os elementos e fatos principais ou relevantes dessa história.
Isso pra mim explica, e muito, a dificuldade de Kubrick para colocar em prática seu projeto de filme.
Não é uma história fácil e não tem uma narrativa direta e reta (muito pelo contrário é extremamente convoluta e complexa). Muitos aspectos precisam de um didatismo enorme só para que o espectador compreender tangencialmente os fatos (e principalmente se esse espectador se lembrar das aulas de história da revolução francesa), e, qualquer perspectiva por mais cuidadosa e bem trabalhada pode parecer cartunesca, ridícula ou mesmo idiota (vide os assovios para iniciar sexo citados anteriormente).
Mesmo se Ridley Scott estivesse no melhor momento de sua carreira (e ele não está, afinal ele não estaria propondo Gladiador 2 se estivesse em um bom momento de sua carreira), e mesmo que ele tivesse a melhor equipe de roteiristas e escritores disponíveis para produzir o roteiro (e ele não teve, pois o principal autor é o cara que escreveu o roteiro do remake de O Dia em que a Terra parou com o Keanu Reeves), a grande pergunta ou a grande pergunta que não quer calar ao meu ver é "porque fazer esse filme agora?".
Ao contrário de Kubrick, essa não era nenhuma paixão pessoal de Scott ou algo do tipo... Francamente pelo que vemos do diretor ele tem maior fascínio pela ficção científica (e eu acho que o roteirista do filme também). Então a resposta parece vir de um elemento não citado em momento algum até agora, que é a produtora do filme, a Apple.
Porque fazer esse filme agora? Porque a Apple tem um acervo bastante patético de filmes mas quer mostrar que vai bancar as ideias mais idiotas de diretores renomados, inclusive fazer filmes que outros julgavam impossíveis... Porque a Apple pode e porque ela quer mostrar que ela consegue (pelo menos entregar um produto, mesmo que não um bom produto).
Nenhum comentário:
Postar um comentário