Veja bem, eu sei que algumas pessoas tentaram reclamar do filme A Pequena Sereia por escalar uma pessoa negra (por motivos nada racistas, ei, essas pessoas tem amigos negros, então como podem ser racistas?) ou por cancelar o Justiceiro (que, afinal de contas é essa cultura Woke querendo acabar com os verdadeiros heróis tipo John Wayne - sabe o cara que fez Gengis Khan nos cinemas, o que nem de longe é racista - ou o Justiceiro, o cara que matava dezenas de capangas por edição, fez uma cirurgia para mudar o tom de pele, mas curiosamente nunca estava por perto quando o Caveira Vermelha ou uma lista considerável de vilões atacam Nova Iorque, mesmo só os do Homem Aranha/Demolidor como Rei do Crime, Mercenário ou Carnificina). Mas esses não são os problemas da Disney, e, sejamos bem francos, nem de longe os problemas de nossa sociedade.
A Disney cancelar o Justiceiro é muito pouco, tarde demais (o correto seria a editora abraçar o fato que ele é um vilão lunático com uma visão errada de mundo, seja ele empático pela tragédia com sua família ou mesmo em sua motivação de vingança - o mesmo vale para o Senhor Frio do Batman, e, ele continuou sendo vilão - e só mais uma nota nesse assunto, vale lembrar que a Marvel aposentou o 'caçador de terroristas' Solo por volta de 2001, talvez sem nenhum motivo aparente, e voltar mais de uma década e meia depois) e escalar uma atriz extremamente talentosa, e quase o único positivo nessa atrocidade de filme (quando protagonistas negros poderiam e deveriam figurar com enorme facilidade em papéis principais nos quase 80 anos de produções do estúdio, sejam filmes ou animações, simplesmente não existe motivo para justificar tamanha ausência em bem mais filmes), então a companhia não merece nenhum tapinha nas costas e elogio por tomar atitudes razoavelmente certas ainda que muito tarde (e que justamente por isso seus fãs, apoiadores e seguidores enxerguem como atitudes erradas).
O problema central e maior é justamente que por décadas a companhia produziu e criou um gigantesco negócio com base numa estrutura colonialista e, bem, racista e é justamente por isso que eles colocam o anúncio do começo dessa publicação e que eu reproduzi aqui, em suas animações e quadrinhos, o que, honestamente, nem é assim nenhuma novidade. Ariel Dorfman e Armand Mattelart lançaram 'Para Ler o Pato Donald (Comunicação de Massa e Colonialismo)' em 1971 (antes da animação da Pequena Sereia do parágrafo anterior - mas também da primeira aparição do Justiceiro - em 1974).
E enquanto eu não quero resumir o livro (em parte porque eu já falei sobre ele há um bom tempo e em parte porque os autores escreveram um livro excelente que merece ser lido e que é bem curto e de fácil compreensão e explicaria muito mais que eu seria capaz), eu preciso ilustrar de maneira altamente clara o assunto com algo que eu mesmo vi sem a menor dificuldade.
A edição 'Natal nas Montanhas' do Pato Donald reúne histórias de 1947/1948, e enquanto a história que dá nome ao título não traz nada demais, já a segunda história com um retrato nada agradável da América Latina (sabe, vários personagens falando palavras em espanhol com sombreros altamente preguiçosos tirando siestas ao invés de trabalhar), mas é um pouco mais adiante no volume em que vemos o protagonista viajando para a Austrália em que algo realmente bizarro acontece, e, algo tão bizarro que mesmo os editores precisam mencionar.
Sim, existe um espaço ao final da edição em que são feitos pequenos comentários sobre as histórias, geralmente pequenas notas de rodapé e curiosidades, algo que é prática comum na indústria mas que honestamente pouco ou nada agrega à compreensão do material. No caso em questão para falar da história logo de cara já é citado justamente Para Ler o Pato Donald de Ariel Dorfman, como maneira clara de reconhecer o elefante na sala, mas desviar o foco rapidamente e fingir que nada disso é importante.
Qual o problema você me pergunta? Bem, em uma série em que os animais (camundongos, patos e cães) representam pessoas, sendo que ainda existem animas efetivamente (Mickey possui um cachorro, e nesse volume Donald comemora o dia de Ação de Graças com sua família comendo peru, inclusive caçando um), mas não existem humanos nessas histórias e universo. Existem animais antropomorfizados (que tem características humanas) e existem animais genuinamente animais (que agem tão somente como animais).
O que Donald encontra na Austrália? Aborígenes negros da Austrália, e, eles são retratados com traços humanos, mas, isso vai contra a lógica interna deste universo que eu acabei de descrever no parágrafo anterior pois efetivamente não existem humanos nas histórias de Mickey, Donald e companhia. Então o que isso significa...? De maneira bem racista e clara, que estas pessoas, estes aborígenes não são vistos como pessoas mas tão somente animais, e por isso retratados como tal, mesmo que falem ou se comuniquem ou utilizem ferramentas e armas.
E enquanto talvez Carl Barks, Don Rosa e outros artistas e criadores da Disney não necessariamente fossem racistas, e eu nem estou inferindo isso (até porque pareceria que eu passo pano quando menciono gente como Will Eisner ou Hergé de maneira positiva, mas, vale lembrar que são casos bem diferentes, incluindo o fato que Hergé trabalhava em um jornal basicamente nazista quando produzia as primeiras histórias do personagem, e mesmo assim os casos polêmicos são bem mais pontuais), temos que olhar que nos quase 75 anos desde a publicação desta ou outras tantas, tantas, tantas e tantas histórias, não é como se a casa do camundongo tivesse feito qualquer esforço de mudança além de uma nota ridícula, inócua e patética no início de filmes e encadernados. Ou, francamente, aprendido alguma coisa.
E esse é o problema (da) Disney. Fingir remorso somente para conseguir acesso mais rapidamente à sua carteira.
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