Existe uma grande diferença entre as duas primeiras séries de Black Mirror e o que acontece depois quando a Netflix compra a série. No primeiro momento é uma série com atores britânicos produzida na estrutura bem britânica (com três episódios numa temporada, ainda que episódios mais longos - tipo Sherlock) mas não é nada disso que é importante... A série focava intensamente em cenários terríveis da psique humana numa estrutura geralmente kafkaesca, normalmente envolvendo aspectos da vida moderna exacerbados pela tecnologia.
Pense no casal discutindo uma situação de traição mas que possui um recurso para rever cada momento e memória de suas vidas através de um implante tecnológico, ou um primeiro ministro forçado a transar com uma porca (e transmitido ao vivo para quem quiser ver) para salvar um membro da família real.
Nessas primeiras temporadas a tecnologia não era exatamente o ponto, força motriz mas somente o catalisador e potencializador dos eventos (que poderiam facilmente ocorrer em 1994, 1449 ou qualquer outro ano ainda que sob outras condições menos tecnológicas). No geral eram histórias sobre pessoas em cenários opressivos potencializados pela tecnologia.
Aí vieram os anos da Netflix e tivemos episódios como o da Bryce Dallas Howard e da Miley Cyrus... O foco virou a tecnologia, e não exatamente as pessoas que são e se tornam oprimidas por ela. Mais até, as coisas foram ficando (bem) mais coloridas, com mais e mais astros famosos (saídos diretamente de filmes e seriados de sucesso para figurarem em algum episódio). As pessoas aqui são pouco ou nada importantes (e facilmente substituídas, assim como seus problemas) e o foco é sempre e constantemente a tecnologia do mal do episódio.
Acredito que tenha uma sólida base de fãs e continue agradando a um bocado de gente (ganhou bem mais prêmios nessa fase da Netflix e a sexta temporada já começa com um time altamente estrelado com Salma Hayek puxando o time), mas perdeu em grande parte a essência do que faz a coisa toda funcionar, que é o elemento humano.
Então dito isso, como a sexta temporada se sai? Bem... Mé.
No geral vemos episódios que com 30 (ou até 20) minutos contariam suas histórias sem excessos e sobras, e com histórias que não funcionam direito ou como os escritores/diretores planejavam. E mais até do que isso, algo se perde quando a série cruza o Atlântico.
Enquanto nos episódios britânicos existe a estrutura opressiva e kafkaesca em que as pessoas estão em ou são forçadas em direção de prisões terríveis na condição social (da qual não podem escapar e não são oferecidas saídas ou soluções - de novo, vide o episódio do primeiro ministro) nos episódios estadunidenses há sempre algo diferente, quase camusiano do homem (ou mulher) impossível escapando dos grilhões que os oprimem, vide Joan é terrível.
A comparação inclusive entre O Hino Nacional (da primeira temporada) e Joan é terrível (da sexta) fica muito nítida no quanto o primeiro ministro (e um dos homens mais importantes da Inglaterra) é forçado a agir contra sua vontade e não encontra qualquer alternativa para seu martírio, enquanto Joan é uma pessoa comum oprimida por uma big tech multibilionária e pela marca da metade ou pouco mais do episódio consegue dobrar completamente o sistema criado pela big tech e que a oprimia e controlava (e nem é o único exemplo pois Nosedive - e San Junipero - da terceira temporada já propunha[m] exatamente a mesma situação. Menos opressão kafkaesca mais libertação camusiana.
Melhor ou pior? Bem, os números do IMDB mostram que as pessoas preferem mais os episódios da terceira temporada aos da primeira, então talvez o errado seja eu, não sei, mas pra mim parece perder parte da essência da coisa para aceitar e se tornar mais comercial (e garantir mais temporadas e mais celebridades e etcs). Black Mirror não deveria ser otimista, e mesmo seu humor deveria ser mais seco e sarcástico, pois é justamente o ponto de um 'espelho sombrio', que é retratar os lados mais terríveis e tenebrosos de nossa sociedade (e nós mesmos) que tememos que sejam descobertos e retratados, até porque pra finais felizes, pimpões e contentes já existem diversas outras séries.
Ok, mas para comentar mais sobre cada episódio vamos lá (a partir daqui podem ter spoilers, então é por sua conta e risco), do pior para o melhor:
Mazey Day - Facilmente o pior da temporada, mas é possível um dos piores do show. Sem spoilers, só vou dizer que nada funciona. O roteiro é fraco, a forma como esse roteiro é trabalhado não cria tensão ou interesse e os personagens são péssimos, com mínima motivação e menos ainda empatia (mas também não é como se os atores parecessem demonstrar qualquer esforço para criar personagens interessantes). A reviravolta tem mais com terror (?) afinal se trata de um monstro e ponto, ainda que seja uma rasa e sem graça crítica a paparazzi e o culto de celebridade.
Mas eu ainda acho que é melhor que o da Miley Cyrus.
Joan é terrível - Fraco, ainda que eu ache que já gastei bastante falando porque no texto até aqui. Pra mim o pior é a reviravolta no final que torna a coisa ainda mais estúpida - ainda que exista uma fala que literalmente equivale que computação quântica à magia, então dois joinhas pra você. Faltou a pegada de Black Mirror para contar uma história mais kafkaesca porque aqui ficou muito parecido com algo que South Park e os Simpsons já fizeram (e melhor, e em menos de 30 minutos e sem bobagens de computadores mágicos). Mas honestamente, parece bastante bobo ao usar o serviço de streaming (sabe, a "netflix genérica" criada para o seriado) para criticar todo cheio de dedos à própria Netflix (enquanto gasta uma baita grana da própria Netflix para conseguir a vencedora do Oscar Salma Hayek), principalmente quando não existe efetivamente uma crítica sólida ou concreta - ou ao menos nada que South Park não tenha feito quase uma década atrás.
Além Mar - Ou aquele com Aaron Paul e Kate Mara, e que deveria ser o melhor episódio da temporada afinal ele tem elementos interessantes (astronautas, robôs substituindo humanos e uma gangue de hippies puristas querendo destruir a 'impuridade' de robôs substituindo humanos), mas por algum motivo idiota esse episódio queria ser dirigido por Terrence Mallick construindo uma narrativa da forma mais lenta, desinteressante (pois tenta a todo custo ser protoartístico mais que coerente - incluindo nas escolhas para a construção dos fatos) e arrastaaaaaaaaaada. Esse episódio funcionaria em 30 minutos para uma progressão interessante, ou até mesmo com a uma hora e 20 minutos se ele acrescentasse fatos e eventos relevantes.
O que temos é uma boba história de traição (que você já viu feito milhões de vezes - e milhões de vezes melhor) só que aqui envolvendo astronautas e robôs. Nada é particularmente interessante, ao ponto em que o espectador consegue claramente 'prever' os rumos da história com uma facilidade tremenda (inclusive a reviravolta ao final)... Talvez até seja melhor que Loch Henry, mas é tão enfadonho e desinteressante que, sinceramente vendo a Kate Mara na tela tinha momentos que eu estava em dúvida se eu não tinha colocado no Quarteto Fantástico de 2015 por engano...
Loch Henry - Fraco, mas aqui ao menos existe uma ideia muito boa no roteiro - é uma história sobre um assassino serial em uma pequena e pacata cidade da Escócia que matou um policial (que é o pai do protagonista do episódio), e tem mais um elemento fantástico que pra falar sobre, eu teria que revelar um baita spoiler. O grande problema do episódio reside no fato que ele não sabe quando terminar, pois uns dez minutos mais ou menos do final não agregam nada, pelo contrário só diminuem a qualidade do material, e o começo é bem lento para chegar ao que de fato importa (e, honestamente, eu acredito que faltou um pouco de gás no elenco também... Alguns atores são bons até, mas ninguém é espetacular ou se destaca, principalmente os papéis que precisavam se destacar).
Demônio 79 - Um dos melhores da temporada, ainda que seja de novo seja mais sobrenatural que tecnológico (ou, se vamos ser de todo honestos, mais psiquiátrico que qualquer outra coisa). Boas atuações, o roteiro se sustenta muito bem e no geral funciona até mais ou menos no final quando ele tem uma reviravolta (algo que quase todos os episódios tem nessa temporada, e, honestamente, nenhuma delas parece funcionar direito). Talvez funcionaria se o final fosse mais ambíguo ou se concluísse em várias outras direções e até se essa temporada não fosse tão fraca, esse final talvez até funcionaria melhor, como um contraponto para os demais ótimos episódios.
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