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4 de junho de 2023

{Deixa eu te explicar...} A gourmetização do mercado de quadrinhos

Recentemente foi publicada uma hq da Culturama da Disney com a ideia de celebrar a história do Brasil escrita pelo brilhante Eduardo Bueno, chamada Zé Carioca Conta a História do Brasil (capa dura, 112 páginas). O preço de capa? R$149,90. Não foge tanto de materiais como a edição grimório de 1602 (com capa de couro, 576 páginas e preço de capa de R$349,90 e tantas e tantas e tantas edições omnibus ou com encadernações desnecessariamente complicadas - como a versão de Pinóquio em madeira - e em grande parte isso se deve a uma condição de publicação de luxo com visão específica para um nicho de leitores que pode se dispor a pagar esses montantes para um material. 

Não cabe a discussão sobre a qualidade ou falta dela, diga-se de passagem, mas cabe a discussão importante de que isso é entretenimento a um preço bastante elevado. Não porque o preço de uma publicação dessas banca uma ou mais cestas básicas, mas porque mesmo em termos de entretenimento, com o valor de capa da edição da Culturama você mantém por três meses a assinatura mais cara da Netflix (e facilmente mantém várias assinaturas de serviços de streaming, assinaturas de livros ou outros como jogos de videogame - mais baratas por mais tempo).

Agora, dito isso, eu preciso dizer que sinceramente, se você não acha que tem algo de muito errado quando um maço de cigarros (em média R$6,00) custa menos que uma revista em quadrinhos de 48 páginas da Turma da Mônica (R$6,90 - e isso pra não falar de um gibi de super heróis com seus R$19,90 pelas mesmas 48 páginas), o que é absurdo em diversos pontos. Talvez exista aqui uma questão de problemas de tarifação (com poucos impostos sobre o cigarro e muitos sobre o material necessário para o produto final do quadrinho), talvez seja outro problema bem mais complexo (da questão de que se produzem mais cigarros pra reduzir nisso o valor pro unidade e a tiragem dos quadrinhos é muito baixa e o preço acompanha isso).

O problema aqui não é publicação de nicho ou mesmo o status de material de luxo, entenda bem. O problema é que temos aqui uma situação de gourmetização de um material que para todos os fins é de comercialização em massa para as bases e essencialmente popular.

Como eu falei no primeiro post dessa série sobre os quadrinhos venderem mal, a ideia da publicação de quadrinhos em bancas de jornal vem justamente nessa condição de acompanhar algo bastante popular na época (os jornais) e atrair a atenção com preços baixos e acessíveis (dos 10 centavos de dólar de 1938 até uma boa parte de 1976 os quadrinhos norteamericanos traziam em suas capas preços de 25 cents de dólar até 1988 quando chegou ao valor de 1 dólar por edição). O paralelo é mais difícil no Brasil, afinal de 1938 até 1995 o país passou por diversos planos econômicos e moedas mas o grande problema dessa gourmetização se dá já na época do plano real nos dias finais da editora Abril com a chamada linha Premium.

Em 2000, tentando uma reestruturação editorial (desastrosa) a Abril lançou as chamadas linhas Premium, em partes visando se adaptar ao tom do mercado americano (com foco mais em mercado de nicho e livrarias, saindo das bancas de jornal) e com isso usando papel de melhor qualidade, lombada quadrada e melhor acabamento. Existe um enorme problema no raciocínio aqui que o pessoal da Abril não enxergou exatamente do que eles estavam fazendo - que é a parte de material mais acessível para livrarias, que é em grande parte o que o mercado dos EUA vinha fazendo com os encadernados publicados e de fácil republicação, e mais importante, tiragem. A Abril não produziu nada parecido com isso, pois a linha Premium era exatamente uma continuação de seus quadrinhos anteriores (inclusive com a continuação das publicações diretamente dos formatinhos anteriores), sem trazer histórias ou arcos fechados, e com isso, maior possibilidade para tiragens e republicações posteriores. Era só a mesma coisa mas com um verniz diferente. 

Para contexto as revistas que nesse mesmo 2000 custavam R$2,50-R$3,50 no tradicional formatinho que geralmente fica na faixa dos 14 x 20 cm, mudando para o formato americano de17 x 26 cm e com isso turbinaram o preço para o preço de R$9,90 com a versão de melhor qualidade, mas essencialmente não houve uma estrutura de luxo ou nicho (pensando em colocar as revistas em livrarias ou entrar no mercado da internet que vinha surgindo).

Se eles tinham alguma visão de mercado de nicho ou algo do tipo, as linhas premium não chegariam às bancas (e sim às livrarias) continuando as histórias que estavam saindo no formatinho anterior, mas iniciando fases novas (algo bastante possível com o momento de janeiro de 2000 com as primeiras histórias dos Vingadores, o arco de Kevin Smith a frente do Demolidor e o início da saga de Batman, Terra de Ninguém, só pra citar alguns exemplos), mas nem isso apenas, pois o que realmente interessaria ao leitor em um formato desses eram os encadernados de material clássico em um formato melhor do que foi publicado no Brasil até então - como a fase de Frank Miller a frente do Demolidor ou John Byrne a frente do Quarteto Fantástico. Esse material num formato de alta qualidade e com perspectiva para fácil republicação (de novo, o motivo para estar nas livrarias) tinha que ser o foco se esse pessoal tivesse qualquer visão real e não fosse apenas um bando de idiotas desesperados tentando algo igualmente idiota e desesperado (tanto que mal durou um ano e meio) para manter seus empregos ou turbinar uma reestruturação no mercado.

A Panini em 2002 ainda concorrendo com a Abril tinha suas revistas igualmente gourmets (com um formato maior que o americano - 19 x 27,5 cm), mas já com um preço menor que das premium lançadas um ano e meio antes... Mas a Panini não aguentou manter esse formato maior por muito tempo, e, a partir de 2003 para tentar manter o preço abaixo dos R$8,00, a editora reduziu o tamanho para o formato americano, e, com os anos seguintes foram outras e novas experimentações para tentar manter a condição dos quadrinhos publicados mensalmente (que trazem as primeiras publicações nacionais de material estrangeiro) com preço relativamente mais acessível.

Não quero entrar nos méritos do debate de que essas edições estão hoje mais baratas que o preço do material da Abril ou da Globo (ou mesmo das edições da Panini quando entrou para o mercado editorial em 2001-2002 - e principalmente do pessoal de bem antes do plano real) corrigida a inflação ou mesmo em proporcionalidade com o valor do salário mínimo, até porque isso tira a perspectiva atual da coisa toda. O valor de uma edição de um mangá da Panini hoje é mais caro que a assinatura do Crunchyroll que possibilita um acervo enorme de animês (sem comerciais) e mesmo de alguns mangás para você ler no site, algo que, vinte anos atrás quando a Panini entrou para o mercado, não existia, e, francamente não havia tal métrica. Então se confabulamos que em 2005 a edição de Lobo Solitário chegou às bancas por R$12,90, o que por correção da inflação (pelo IPCA) daria algo entorno de R$35,53 (muito próximo do valor praticado pela própria Panini hoje em dia), nós temos que lembrar ainda que em 2005 não existiam opções como o já citado Crunchyroll ou Netflix ou uma série de outras opções disponíveis hoje em dia. Inclusive, e eu talvez esteja errado, em 2005 não tinham nem smartphones, pelo menos não como conhecemos hoje (o primeiro iPhone chegou ao mercado somente em 2007). 

O que eu quero chegar é que corrigir pela inflação o preço antigo é irrelevante quando o cenário antigo era completamente diferente do atual.

Inclusive um dos motivos pelo qual os quadrinhos custavam menos antigamente não é somente por tiragens enormes mas porque traziam propaganda neles (que ajudavam a compartilhar ao menos parte dos gastos de produção), e essa perspectiva foi minguando até desaparecer completamente que é o cenário atual. Se não vale a pena anunciar em quadrinhos hoje em dia ou se as empresas que trabalham com publicação são ruins para conseguir esse tipo de anúncio é um debate mais complexo (do qual eu possuo pouco ou nenhum conhecimento de causa), e forçando mais desse cenário de nicho no qual estamos hoje.

Enquanto não faço parte do grupo que defende a volta dos formatinhos como solução para baratear as revistas, ainda que material da Mônica custe R$6,90 por 48 páginas quando publicações de super heróis chegam às bancas por R$19,90 pelo mesmo número de páginas não creio que as tiragens sejam as mesmas - ou os custos com impressão/produção, considerando que as revistas da Mônica não exigem tradução e trazem arte menos complexa, inclusive com menos tons e cores, eu confesso que vejo poucas alternativas no mercado atual para baratear custos e produção, porque no geral, parece somente fetiche por papel que outra coisa da parte dos leitores e preguiça das editoras. Mais até que isso, vejo pouco interesse da Panini de mudar alguma ou qualquer dinâmica do mercado, quando suas assinaturas oferecem descontos de 20% do preço de capa das revistas, que não é valor diferente do que sites de vendas de quadrinhos oferece em lançamentos.

Também vale destacar que existe uma questão bastante importante no preço de capa que é a fatia do lucro do revendedor (o dono da banca ou a livraria ou site de vendas), e enquanto fontes diferentes oferecem valores diferentes que variam de 30 a 50% desse valor, e a venda direta (valor que as assinaturas poderiam facilmente abater - assim como a venda direta através do site da própria editora). E mais até reforçando o que disse sobre o pouco interesse da editora, uma forte renegociação destes percentuais como os parceiros e revendedores (porque esse pessoal não oferece descontos ou reduz a sua fração do lucro para vender quantidades maiores), o que por si só conseguiria reduzir facilmente os custos de capa nos 20% das assinaturas e valores comercializados por sites de vendas.

Esse eu acho que é um problema complexo e que se estende por décadas, mas, que honestamente as editoras precisam de pulso firme para mudar esse jogo. Simplesmente não faz sentido que metade do preço de um produto fique nas mãos de quem faz menos no processo produtivo geral, e, talvez funcionasse num ponto em que, bem, custava centavos ou menos de R$5,00 (nós ainda estamos falando das menores cédulas disponíveis nesse ponto, e as frações ainda são pouco significativas), mas com o produto passando dos R$10,00 mantendo essa distribuição de 50% na mão do vendedor, desculpa, mas eu não consigo entender essa lógica.

Ainda mais porque eu compro em bancas desde criança, e, sinceramente, nunca foi uma experiência que justificasse que metade do preço ficasse na mão do dono da banca. Não é como se eles mantivessem edições impecáveis e perfeitamente conservadas ou prestassem um atendimento maravilhoso para seus clientes... Enquanto sei que é algo bem mais pessoal e anedótico que estatístico, não é algo que tem tantos exemplos e casos de sucesso assim, é?

Honestamente, a melhor solução que vejo se dá no mercado digital (kindle e similares) que permite pelo fácil acesso e reduções de custos (não existe mais impressão ou distribuição, são apenas bits e bytes) ao material reduções enormes no preço de publicação, e, talvez seja a melhor tendência ao mercado de abraçar o mundo digital como os jornais já fizeram.

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