Tá, vamos à resenha então.
Pra mim o grande problema de Sandman reside nas escolhas, e, enquanto eu sei que facilmente EU posso ser visto como tendencioso e favorável aos quadrinhos (afinal, eu os li primeiro, me encantei com eles e admito sem vergonha alguma que das várias vezes que li a série eu me esbugalhei em lágrimas ao final), e de novo enquanto eu entendo que várias dessas escolhas estão além do material em si (afinal envolvem a fusão do conglomerado Warner Bros do qual a DC com a Discovery, que já resultou em algumas baixas como o cancelamento do - já produzido - filme da Batgirl ou do longevo seriado do Flash, só pra citar alguns), mas não se limitam a isso.
Tem o fato que Neil Gaiman teve bastante tempo (e várias ofertas) para adaptar Sandman antes. Em 1990 essa série (e essa aqui mesmo) seria incrível e genial do jeitinho que é. Hoje, com todos os avanços de efeitos especiais e até mais que isso, com toda a normalização de seriados baseados em quadrinhos (e em grande parte o sucesso deles), confesso que o nome tem menos peso do que outrora. Talvez seja o fato que One Piece lançou seu episódio 1000 recentemente e completou 25 anos, assim como Dragon Ball lançando o bastante esperado filme Super Hero (com a ideia de lançar mais episódios ou a continuação do anime Super) que ofusquem o brilho para um material de outra época e outro momento (sim, Sandman é um produto dos anos 1980-1990, e não sei se funcionaria com o público mais jovem hoje em dia justamente por essa concepção e estrutura).
E sei também que isso tem seus motivos. Gaiman não resolveu assinar com a Netflix porque esse é o melhor acordo do mundo e ele não teve melhor oferta antes. É resultado do atual cenário da DC/Warner, e do que aconteceu com Alan Moore e Watchmen (tanto com a série que foi produzida para a HBO - sem a autorização de Moore, sendo um material horroroso e desrespeitoso com o material fonte E AINDA ASSIM GANHANDO PRÊMIOS!!! - mas com as horrorosas outras histórias com os personagens desse universo, incluindo a de Geoff Johns e Tom King). Num intervalo qualquer a Warner/Discovery lança Sonho como o novo integrante da Liga da Justiça lutando ao lado de Ben Affleck contra o Coríntio e fica mais difícil para um material que capture melhor a essência dos quadrinhos.
Ei, é só lembrar que ano passado a Netflix mesma encerrou a sexta temporada (e tomara que última) da série Lúcifer baseada justamente no personagem criado para Sandman (é) e que teve sua série spin-off criada por Mike Cary entre 2000 e 2006. E falando nele, faz sentido da adaptação de Sandman em modificar o personagem para separar o personagem do universo de Sandman do outro personagem que encanta as donas de casa excitadas com sua barriga tanquinho e maxilar quadrado, é uma escolha que, bem, faz sentido. Se funciona ou não é outro problema, mas a diferenciação é lógica e coerente.
O mesmo vale para Johanna Constantine (personagem criada por Neil Gaiman para Sandman como ancestral de John Constantine, criado por Alan Moore - e parte integrante das Lendas do Amanhã e de outros empreendimentos da DC), e a lista segue (a casa dos Segredos e de Mistérios criados na década de 1960 e o Sandman de Jack Kirby que aparecem nos quadrinhos, por exemplo)...
Mas eu tenho que admitir que esse caso particularmente me incomoda um pouco mais que outras coisas na série, e por isso eu vou tecer um pouco mais de comentário sobre isso. É bem estranho o quanto a bastardização com a personagem Lady Johanna (criada por Gaiman) e John Constantine (criado por Moore), e o quão preguiçosa é essa "escolha". Lady Johanna é uma pirata, aventureira e trambiqueira do século XVIII enquanto John Constantine é o mago bastardo, típico vagabundo e trambiqueiro moderno (que teve banda punk nos anos 1980 e foi hippie nos 1960), mas pros fins da série Lady Johanna vira John com toda uma assombrosa camada de histórias de John Constantine, que não foram escritas por Neil Gaiman e que não pertencem ao seu rol porque não fazem parte do universo de Sandman mas das séries Monstro do Pântano e Hellblazer passando por dois escritores Alan Moore - com a ideia do desastre de Newcastle - e Jamie Delano - explicando esse desastre a apresentando a menina Astra que atormentaria os pesadelos de Constantine, e pior ainda roubando também de Garth Ennis com uma mudança pra lá de sem-vergonha com a 'reverenda' Rick. Se ao menos a série trouxesse um 'ei, dedicamos o episódio com amor e admiração a Alan Moore, Jamie Delano e Garth Ennis', eu nem ficaria pistola com isso, mas pô, isso é o Gaiman ou a série da Netflix plagiando/roubando desses caras (e o que é mais assustador, sem a menor necessidade).
Tudo isso faz parte da grande questão sobre adaptações - seja com Lúcifer ou Constantine que foram adaptados não tanto tempo atrás (e que são casos discutíveis sobre sucesso ou fracassos) assim como casos de reais sucesso como a Patrulha do Destino ou não obstante e frequente, as Tartarugas Ninja (sim, de uma série em quadrinhos que era quase um fanzine bastante "inspirada" - leia 'plagiando' - Frank Miller, para se tornar uma animação colorida, voltada para o público infantil e para a produção de brinquedos). Cabem, como não poderia deixar de ser, escolhas aqui. O autor escolhe manter ao máximo o controle criativo para que sua visão - e apenas ela - seja concebível e adaptável ou pode deixar-se levar pelas interpretações e (re)visões que o processo criativo pode trazer.
Isso às vezes agrega boas ideias (como a kryptonita na adaptação do rádio, que não existia nos quadrinhos, ou mesmo o Destruidor como vilão recorrente - uma vez que nos quadrinhos ele morre na primeira edição) ou pode fracassar terrivelmente (e não sei se é necessário listar exemplos a menos que queiramos terminar esse texto ainda esse ano), mas é importante adequar o material ao meio em que está inserido. Faz sentido 'o som de suas asas' nos quadrinhos, pelo impacto e produção de sua estrutura (que é uma edição curta e quase avulsa do material central), mas enquanto capítulo do seriado...? Bem, mesmo a série percebe que o material é mais fino, e acaba dividindo cena com outra história completamente diferente (ainda que tangente no tema, mas, curiosamente, com uma visão oposta e justamente por isso uma mensagem confusa).
E, eu sei também que é um material incrivelmente difícil de adaptar por várias outras condições... Quer dizer, Sandman é mais uma antologia - com cada capítulo ou arco de histórias retratando diferentes protagonistas e personagens que tangenciam-se em algumas tramas enquanto o conjunto de fatores maiores segue pela história toda. Como um seriado isso é mais para Além da Imaginação que Família Soprano. Claro que com o currículo e todos os prêmios que o material já conseguiu, não é exatamente difícil encontrar atores que gostariam de participar, mesmo que talvez seus momentos de glória possam não ver a luz do dia (como Gwendoline Christie que depende do show ser renovado - assim como seu contrato - para sua grande performance em Estação de Brumas - ou Samuel Blenkin para reviver o papel de William Shakespeare nos episódios em que esse papel significará alguma coisa na série - tanto se a série chegar lá quanto se ele que não é um ator tão conhecido teria tal oportunidade - o que, considerando que o papel de Matthew foi dado para Patton Oswald e não para Henderson Wade, sim, pelo Easter Egg que seria mais que qualquer outra coisa).
Aqui acaba a versão sem spoilers (ainda que a opinião geral já esteja expressa). Não creio que o restante do texto mudará muita coisa (ou acrescentará assim tantos spoilers) mas eles estão mais claros daqui para frente pois discutirei pontos da história especificamente.
Cabem outras condições e escolhas que me desagradam em menor ou maior escala mas categoricamente o que me incomoda mais do que qualquer coisa (e pra piorar) logo no começo, no primeiro episódio. Não, não é que o Coríntio é o vilão da temporada (ainda que me incomode porque foge do sentido do personagem), não é que Lucien seja agora Lucienne (e tenha um papel muito maior - e mais irritante quase como o Deadpool da adaptação quebrando a quarta margem para deixar claro para os leitores do material de que ela sabe dos eventos das graphic novels - e fique comentando dos Perpétuos dando uma piscadinha pra câmera, sabe? "Ei, e seus irmãos e irmãs?" pisca, pisca), mas o final do episódio em si.
Tá, eu sei que eu quero reclamar mais da Jena Coleman como Johana Constantine (e por favor, porque colocar essa moça que tem aquele olhar de cachorrinho desmamado com um diálogo roubado de um extra de filme do Guy Ritchie - exceto Aladdin, por motivos óbvios? "Oy, wanker!" Ainda mais com todo aquele aparato que parece que ela saiu de uma loja caríssima depois de um salão que nem só ela e a Rainha da Inglaterra conseguiriam acesso de tão exclusivo... E puta merda, eles querem que ela seja tanto a Lady Johana da época da Revolução Francesa - como aparece em outro episódio - quanto Lady John Constantine plagiando histórias de Hellblazer).
Só que eu preciso falar do meu problema com o primeiro episódio. Enquanto ele segue bastante fidedignamente a primeira edição de Sandman (com alguns excessos desnecessários, mas que precisam para esticar a duração e preparar o restante da temporada), só que o final é alterado. Nos quadrinhos, Morpheus, gastando o pouco de seu poder remanescente pune Alex Burgess de maneira cruel e mesquinha (gastando seu pouco poder para se vingar de alguém, mesmo que não seja o culpado de seu martírio), e a cena, tirada diretamente de um filme de terror mostra exatamente o quão cruel e mesquinha a vingança de Morpheus é, nos apresentando essa (importante) faceta do personagem já na primeira edição.
Na série o gesto de Morpheus não é demonstrado - a tortura de Alex não é demonstrada ainda que aparente que ele sofra (o que pode ser por toda uma série de motivos, uma vez que não nos é demonstrado). Parece quase compassivo, e isso é um problema, não apenas por não demonstrar claramente essa faceta cruel e mesquinha do personagem, mas principalmente quando tudo na história até aquele ponto (e principalmente depois, quando ele chega a seu reino destroçado e destituído de toda sua glória apresentada no início do mesmo episódio) evoca simpatia a ele. Foi torturado por quase um século, seu reino destroçado e ele deu sonhos perpétuos a Alex Burges? Droga, nem o Batman é um herói tão nobre!
Só que ele não é. Ele é o sujeito que leva uma amante que o rejeita para passar uma (quase) eternidade no inferno. É um sujeito que faz seu filho sofrer incontáveis indignidades - e, por tabela, resulta no sofrimento da mãe dessa criança - e que por caprichos aceita desafios de seus irmãos e irmãs para brincar com as vidas de mortais sem se importar com as consequências. Esse é o Rei dos Sonhos, mesquinho e cruel (e outras coisas, sempre bastante formal, rígido e em geral, incapaz de aprender com seus erros e escolhas, e por isso mudar - e o motivo de sua queda ao final da história).
E isso é importante: Exibir a falha de caráter do personagem o humaniza, enquanto demonstrá-lo nobre (pois sofreu) o justifica, tornando o personagem não mais humano e sim em um ideal.
E enquanto Morpheus não é humano sob nenhuma perspectiva, isso não muda a condição de estrutura narrativa (Hobbits também não o são e tampouco quaisquer animais antropomorfizados da Disney) mas é através de uma lente que expõe as falhas de caráter de um personagem que podemos vê-los como mais legítimos e nos permitir maior empatia com seus sentimentos. Heróis ideais fracassam em desenvolver esse senso de empatia uma vez que se fazem necessários sempre e constantemente vilões terríveis e insanos para cruzar seus caminhos (o que funciona para super heróis em alguma escala, mas discutiremos mais sobre o assunto na próxima coluna sobre porque os quadrinhos vendem mal), enquanto humanos reais tem problemas muito mais complexos, e portanto, interessantes.
O rei dos sonhos dos quadrinhos não precisa de um monstro desalmado terrível que come o coração (e os olhos) de criancinhas como inimigo, afinal ele já tem a si mesmo. E isso é o que me assusta sobre essa adaptação (da qual o criador de Sandman Neil Gaiman se mostrou tão empolgado), porque parece incapaz de enxergar isso, ou deixar isso evidente.
Sempre existe alguém querendo a queda do Rei dos Sonhos ao que parece que ele é uma vítima de uma terrível conspiração, quando, e é assim muito mais interessante (pelas histórias em quadrinhos ao menos) ele só é uma vítima de suas próprias escolhas.
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