O Japão, com um passo incrivelmente acelerado para acompanhar as demais superpotências, começa a encontrar o futuro através da ficção dos anos 1950, e nos quadrinhos não existe melhor representante desse admirável mundo novo que com o Astro Boy de Osamu Tezuka, continuando nas décadas a seguir com robôs gigantes combatendo monstros do espaço (de Gatchman de 1972, Gundam de 1979, Robotech de 1985), e não apenas limitados aos quadrinhos e animações. National Kid (1960), Ultraman (1966) e Ultraseven (1967) e, sim, Jet Jaguar (você não acha que eu esqueceria, né?) e outros heróis nipônicos surgiam para mostrar um futuro brilhante e admirável com um Japão como palco de batalhas épicas e heróis lendários.
E esses heróis lendários não se limitavam ao presente ou futuro. Tezuka já trilhava nesse caminho nos anos 1950 com a Princesa e o Cavaleiro (Ribbon no Kishi, 1953 a 1956) e o épico transcendendo gerações de Fênix (Hi no Tori, 1954 a 1988) dividiam espaço com os lendários samurais que ressurgiam com seu código de honra e éticas inabaláveis no cinema de Kurasawa e na obra de Kazuo Koike, Lobo Solitário (Kozure Õkami, 1970-1976), mas parte de um gênero bastante popular e constante do imaginário japonês (que incluem mas não se limitam a Samurai X e Vagabond). Não obstante eles também dividem espaço com outros tantos gêneros como o horror (com o famoso 'A sala de aula flutuante' Hyōryū Kyōshitsu de Kazuo Umezu dos anos 1970) e o pós-apocalíptico antes de Mad Max 'Punho da Estrela do Norte' (Hokuto no Ken, 1983 a 1988) ou os quadrinhos voltados para o público feminino (conhecido como shojo/shoujo) como A Rosa de Versailles (Versailles no Bara 1972) e Sailor Moon (Bishojo Senshi Sera Mun, 1991 a 1997). Isso sem falar nos muitos títulos retratando esportes (sim, desde Captain Tsubasa e Slam Dunk até uma hq sobre o Senna em F no Senkou - Ayrton Senna no Chousen em 1991).
Tudo isso são apenas exemplos para demonstrar algo realmente impressionante sobre o quão diverso o mercado de quadrinhos japonês realmente é, com toda uma enormidade de temas, gêneros e subgêneros, dos quais eu raspei pouco menos que a superfície nesses dois parágrafos. Além disso, é importante destacar que algumas diferenças são de fato bem importantes nessa estrutura diversa ao mesmo tempo que sólida.
Mais até que isso, existe toda uma condição da estrutura macro da produção cultural de não enxergar os quadrinhos de maneira excludente (longe disso, e não apenas pelas cifras que movimentam). A palavra sinergia (que é um constante modismo entre marqueteiros) funciona perfeitamente para definir a facilidade com que singram materiais dos quadrinhos para animações e para o cinema - resultando em toda uma indústria musical (sim, as canções de animês são peça chave dessa integração do material para novas mídias).
Claro que existem elementos culturais que divergem nos hábitos de leitura em geral e que não podemos ignorar também (em uma pesquisa, é verdade que não muito confiável, foi demonstrado que as crianças japonesas leem em média 36 livros por ano), mas existem vários outros elementos divergentes que valem a pena destacar. Um deles está diretamente relacionado à estrutura divergente da formação dos quadrinhos japoneses após a segunda Guerra enquanto a indústria norte-americana se dá antes dela.
No Japão, os quadrinhos foram parte imprescindível para a estrutura do novo pacto social do pós-guerra, na construção de uma sociedade mais moderna que inclusive tem novos heróis e mitos (ainda que fiel e firme em seus valores tradicionais). Nos Estados Unidos, por outro lado, os quadrinhos foram o bode expiatório de uma sociedade violenta (claro, havia a proibição de álcool e a máfia generalizada, mas eram os quadrinhos de super heróis os culpados de seduzir os inocentes), levando a audiências do congresso e à criação de um sistema de autocensura, o famigerado Comic Code.
Eu até já falei sobre ele na parte 1, mas vale ressaltar que esse Comic Code traz toda uma série de antiquadas condições e noções de valores da sociedade estadunidense, nos quais por exemplo um personagem não poderia solicitar um divórcio, mas curiosamente é aceitável fazer um pacto com o demônio (literalmente) para escapar de um casamento. Existe muito mais coisas, e talvez um dia possamos focar somente nesse assunto, mas o que é importante aqui é que o Japão não tem nenhuma condição minimamente próxima disso.
No que eu posso citar inúmeros exemplos francos e fáceis dessa situação nos quadrinhos tanto voltados para o público infantil como jovem em cenários mais violentos (como Seiya cortando a orelha de seu adversário Cassios já na primeira edição de Cavaleiros do Zodíaco) ou até de teor sexual (não só nos quadrinhos eróticos - ou hentai - nem pelos constantes pervertidos como o Mestre Kame ou Sanji, mas os exemplos nítidos de personagens femininas em trajes sumários, em cenas de banho ou inclusive se expondo - geralmente por fins de comédia). E isso sem falar nas imagens perturbadoras (sem links para não deixar ninguém sem dormir e me culpar por isso) das obras de horror. Ou bem, para criar cenas que combinam todos os três como em Berserk.
Isso é interessante porque os quadrinhos japoneses passaram por uma enorme transformação a partir dos anos 1980 e daí, foi a festa do licenciamento. Bonecos, discos, roupas, cadernos, lancheiras... E claro adaptações para as mídias interativas em quase toda geração de videogames desde o Nintendo (Nes) de 1983 até as atuais do Playstation 5 de 2020. E enquanto eu destaquei toda uma gama de quadrinhos de enorme sucesso até o momento, vale lembrar que existem alguns tantos que mesmo pessoas que não conheçam tanto (ou mesmo nada) da cultura japonesa sabem se tratar de quadrinhos japoneses, como Naruto (1997 até 2014, já com um derivado 'Boruto' 2016 até hoje), o muito popular no Brasil, Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya, 1986 a 1990 e inúmeras continuações até os dias de hoje como Lost Canvas 2006 a 2011 e Omega 2012 a 2014), One Piece (1997 até o presente e um dos quadrinhos mais vendidos de todos os tempos) e, claro, Dragon Ball (1984 a 1995, com sucessores GT de 1996 a 1997 e agora Super de 2015 até o presente).
Mas vale destacar, que os quadrinhos japoneses demoraram bastante para chegar ao ocidente (no Brasil a década de 1990 foi importante para essa popularização, mas nos Estados Unidos, ainda que Frank Miller tenha feito bastante nos anos 1980, foi o bloco Toonami do Cartoon Network só a partir de 1997), por mais que nichos, incluindo a distribuição de VHS (sim, fora de ordem é verdade) já fossem abrindo caminhos e possibilidades, trilhando todo um novo mercado.
Parte desses sucessos estão atrelados a uma noção bem diferente do que ocorre nos quadrinhos norte-americanos em termos desse mesmo licenciamento citado. Os criadores de mangás trabalham arduamente com ciclo semanais para produção de novas histórias (além do envolvimento nas animações, filmes e outros produtos), mas, como se pode imaginar, tem nisso tudo uma participação dos lucros, o que é um grande motivador para os criadores (e foi meio que a ideia por trás da criação da Image Comics nos anos 1990 nos EUA, mas é outro assunto). Esse trabalho e esforço resulta em oportunidades e isso retroalimenta a criação de novas séries para resultar em mais trabalho e oportunidades. (Quase parece a condição perfeita do capitalismo do Adam Smith, não?)
Mas tudo isso faz parecer que, bem, no Japão tudo vai muito bem obrigado e, por isso os quadrinhos vendem e continuam a vender muito bem, certo?
Bem, não é bem assim. A Shonen Jump (onde saem semanalmente várias das séries de maior sucessos citadas aqui) já teve alguns sustos nos anos 1990 principalmente com o final de Dragon Ball - ainda que levou bem pouco tempo para dois sucessores gigantescos em Naruto e One Piece (que, só reforçando, é um dos quadrinhos que mais vendeu em todos os tempos e que agora em julho entra em seu arco final depois de 25 anos) vem encontrando quedas sucessivas de venda - ainda que tentem alegar que a pandemia de Covid-19 seja a grande razão para isso, e, por enquanto, vamos deixar por isso mesmo, pelo menos até a próxima parte dessa explicação.
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