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19 de janeiro de 2020

{Editorial} A ilusão do protagonismo

Depois do passamento de Neil Peart na última sexta-feira dia 10 eu refleti muito sobre, bem, muitas coisas e como elas afetam e moldam o mundo.
Sobre a morte do rock e porque isso ocorre(u) nesses últimos anos e décadas. Se é acaso ou proposital, e uma constante que me pareceu e apareceu quase sempre foi, como o título deste texto a ilusão do protagonismo.

O vocalista que abandona sua banda para lançar carreira solo, a dançarina que deixa o grupo (de outras dançarinas) para alcançar o estrelato, o compositor que se lança como cantor... Histórias de 'protagonistas' que servem em grande parte para suplantar a falsa ideia de que somos responsáveis únicos e exclusivos por nossos caminhos e capazes de moldar os meandros da vida até onde queremos chegar através única e exclusivamente de nossas próprias pernas.

Só não é, curiosamente, o que um protagonista de fato é em quase toda a história da literatura, cinema ou arte em geral.
Gregor Samsa não é um protagonista por escolha (se transforma em uma barata - ou inseto qualquer que seja de acordo com sua visão ou tradução - por mero instrumento do acaso). Tampouco o é Luke Skywalker (que, no primeiro filme de sua história é mero observador, sendo levado de lá para cá por Obi-Wan Kenobi e Han Solo até o momento em que definitivamente é FORÇADO a agir), ou Harry Potter (que vive por quase dez anos de sofrimento sob as escadas da casa dos tios até chegar a uma escola de magia, onde nem de longe é o mais brilhante aluno e somente POR ACASO sabe voar muito bem com sua vassoura). Poderia continuar por mais e mais exemplos, afinal um protagonista raramente se faz a si mesmo, mas é o resultado de assumir a resolução difícil no momento crucial.

E muitas vezes, diga-se de passagem, um protagonista sequer é o personagem mais importante de um livro.
Jonathan Harker é o protagonista de Drácula enquanto é o mostro a figura central por onde toda a história se passa. Jonathan, por muitos motivos, é inclusive o personagem menos interessante da narrativa. Mina (sua esposa) e Van Helsing (sabe, o caçador de vampiros) são muito mais interessantes na narrativa que o protagonista, e o conde das trevas e vilão é a razão de existência dessa história em si. Tal qual Lúcifer em Paraíso Perdido ou, bem, quase todo vilão de filme de terror até a presente data (seja Hannibal Lecter ou o xenomorfo de Alien, ou mesmo Jason de Sexta-Feira 13).

Mas existe essa ilusão de que o protagonismo, que a busca por holofotes, glórias e honrarias é por si, uma busca válida e honrada, e, fomentada por nossa estrutura social moderna (engolfada no próprio umbigo das redes sociais de hoje, mas que são um sintoma da já antiga necessidade humana de, bem, viver através da vida dos outros como as velhas candinhas fofoqueiras já o faziam séculos atrás).

Isso, obviamente, é muito bom para companhias que tratam seus funcionários como lixo e meros números (e notas de rodapé) cobrando deles (e delas) a função de "protagonistas" de suas próprias histórias (desde que, obviamente, abaixem a cabeça para aceitar todo o lixo repugnante que suas empresas lhe imponha sem questionar) num sentido de subverter o real propósito da estrutura corporativa que a direita tanto se baseia e defende da meritocracia como uma ideia de protagonismo, sendo que são sentidos senão opostos, ao menos conflitantes.
Protagonismo por protagonismo é idolatria, é egocentrismo e não competência. 

Talvez nada disso pareça fazer sentido com o primeiro parágrafo sobre Neil Peart e o rock moderno, mas, caro leitor, pense por um instante... Porque não temos nenhum baterista prodigioso e virtuoso como Peart hoje em dia mas temos tantos cantores, vocalistas e músicos em geral tentando conquistar algum ínfimo e limitado espaço através de canais do youtube, programas de talento/shows de talento ou reality shows gerais e demais (quaisquer que sejam) estratégias (e subterfúgios)?
Os exemplos, obviamente não são poucos.
Como dito dos reality shows e programas de calouros facilmente se diria em tantos outros casos.

Mesmo ANTES destes, quantos não são os que chegaram aonde chegaram somente por sorte? Somente por estar no lugar certo na hora certa e encontrar alguém que simpatizasse com ele ou ela? Quantos grandes atletas tiveram suas carreiras encerradas por ficarem em quarto lugar numa prova crucial...? Ou músicos cuja carreira não decolou por uma música demo não chegar ao dono da gravadora?
Ou um currículo que parou nas mãos da pessoa errada no RH (se é que lá chegou)?

Enquanto nos bastidores, no rodapé da história, sem buscar os holofotes, sem buscar agradar fãs além de ser verdadeiro em suas intenções (de SER o melhor músico que pode ser), enquanto trabalhando árdua e pesadamente para que conjunto e não individuo sejam vistos. Sem tentar ofuscar a luz dos outros e sem a arrogância e soberba de se achar (e ver) como mais relevante ou importante que qualquer outro, tentando somente viver um dia de cada vez, fazendo o seu melhor...

E esse segundo grupo, essa leva de gente que genuinamente produz algo verdadeiro e honesto, buscando dividir e compartilhar o que sentem e vivem - sem glamourizar, sem fingimento, sem falsidades típicas de quem vive pelos holofotes - é capaz de fazer algo que se sustenta e, efetivamente, assumir o protagonismo quando a chance lhes é conferida.

São os Saramago, os Peart, os Bergman e tantos e tantos outros cujo artificie é motivo suficiente para suas buscas.
Não as luzes da ribalta, não a ilusão de protagonismo...

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