Existe uma história que consta nas escrituras sagradas judaicas e cristãs sobre um exorcismo que, mal sucedido, simplesmente espanta os demônios para uma vara de porcos constante em um chiqueiro ali perto, deixando nessa analogia bíblica claro que a carne de porco é perigosa, afinal, pode conter algum demônio que vá atacar o incauto consumidor.
Afinal, a carne de porco contaminada - o que não era de todo absurdo consideradas as práticas de criação e abate de animais - podia conter bactérias, tênias e parasitas das mais diversas categorias levando a diversas doenças como a neurocisticercose, cujos sintomas incluem convulsões, náusea, vômitos, dores de cabeça e, devido a presença de um parasita no cérebro também pode afetar as zonas de fala do cérebro (o que pode parecer que a pessoa afetada está falando bobagens, absurdos ou mesmo em idiomas).
Desconhecendo termos como 'bactérias' e mesmo a possibilidade de que parasitas de um organismo poderiam proliferar em outro, e, como no caso da neurocisticercose causar sérios e severos problemas e a pajelança que se chamava de medicina na época só chegaria até dado ponto. E sejamos francos, sem equipamentos aptos para exames, sem tecnologia e mais importante sem o conhecimento mínimo de anatomia ou biologia requeridos para compreender o que diabos estava acontecendo, é realmente um milagre que os seres humanos foram capazes de sequer entender que os porcos estavam diretamente ligados ao problema.
Como é de se imaginar, não é o único caso de uma doença até então desconhecida que por crendice se acreditava ser algo de natureza mítica. As doenças que afligem a mente, por exemplo, só foram recentemente desbravadas (Freud, o pai da psicanálise nasceu em 1856), e doenças como a depressão eram vistas como pouco mais que frescura mas doenças como a síndrome de Tourette (cujos tiques motores ou vocais poderiam facilmente parecer a ignorantes como uma possessão demoníaca).
O espaço das crendices foi incorporando métodos científicos com a ascensão dos processos e metodologias científicas, principalmente enquanto a imagem de métodos baseados na crendice ficava atrelado a crueldades, erros, abusos e absurdos como a Inquisição. A Igreja Católica passou a moldar métodos para que todo tipo de pajelança fosse confirmada por esse ou aquele método científico (inclusive quando falam de milagres), ao ponto que deixaram de gritar 'demônio' para toda e qualquer sombra.
Primeiro consultam médicos, psicólogos e psiquiatras e só então chamam os frades exorcistas e mesmo assim não se divulgam dados sobre esses eventos em busca de revisão científica que possa (ou não) confirmar que os sintomas apresentados não estivessem ligados a qualquer doença até o momento desconhecida. Ainda que não seja notícia nova (afinal, o filme O Exorcista de 1973 já menciona isso), denota ao menos uma tentativa de legitimar a coisa toda sob um aspecto científico, e, ao não divulgar as informações ao público evitar escárnio caso se confirme a ignorância da pajelança realizada.
Mesmo assim, ainda no século XXI existe um grupo que adora gritar 'demônio' para toda sombra, luz, reflexo ou fenômeno natural já explicado inclusive na Grécia Antiga, e são os 'pastores' evangélicos.
Uso o termo entre parenteses pois sei que é uma generalização e dentre o grupo existe de fato muita gente que acredita no que faz e, cujas congregações não fazem ridículas demonstrações públicas de 'exorcismos' com atores contratados. Existem diversos exemplos. DIVERSOS. Sério, eu conseguiria colocar um link de vídeo para cada letra de 'diversos' e ter imagens de 'exorcismos' perpetrados por pilantras como Edir Macedo e gente da sua laia, mas, porque me dar ao trabalho?
E talvez eu tenha lido muito Constantine em meu tempo para achar que um demônio (caso existisse) não seria tão facilmente convencido a abandonar um hospedeiro humano quanto um pastor calhorda faz parecer em um palco iluminado, talvez eu tenha assistido ao brilhante filme de Steve Martin Fé demais não cheira bem de 1992 sobre os bastidores dos golpes praticados por vários desses 'milagres' praticados por pastores, mas talvez, e só talvez, eu siga o raciocínio lógico e prático e veja que isso é incrivelmente impossível.
Sério.
Pare e pense em quantas vezes a 'igreja' do Macedo faz exorcismos por mês ou por ano - em um palco iluminado, com câmeras e tudo mais - e o negócio nunca deu errado. NUNCA. Nunca, em todos os centenas de exorcismos registrados com câmeras por diversas cidades em todo o Brasil (e outros países onde o 'pastor' Macedo detém seus templos) e o tiro nunca saiu pela culatra.
O ator... digo o 'possuído' nunca pega um objeto cortante ou mesmo usa os dentes e rasga a garganta do 'pastor' no palco... O 'possuído' nunca tenta fugir, nunca provoca o pastor com informações tenebrosas (lembra de Pazuzu provocando Padre Karras e Padre Merrin em O Exorcista? Então)... e o demônio sempre deixa o hospedeiro na mesma hora.
Eu já tive dores de cabeça (ou diarreias se preferir) que levaram mais tempo pra passar do que um pastor da universal leva para remover um demônio (sabe, um ser mítico e altamente poderoso que habita outro plano dimensional e que se hospedou em um ser humano indefeso)...
Isso nos mostra o quanto ainda vivemos em uma era de obscurantismo religioso, com gente que acredita piamente que demônios se apossam do corpo de jovens inocentes, que comer carne na sexta-feira santa é um pecado mas que ao mesmo tempo tem dificuldade para entender que a terra não é plana ou que vacinas são efetivas.
Se seremos capazes de enxergar além das trevas do obscurantismo e das pajelanças... Bem, obviamente não seremos todos (de novo, afinal tem gente tentando ressuscitar o debate da Terra Plana), mas voltarmos todos a uma enorme inquisição espanhola simplesmente por alguns idiotas que enxergam um mundo plenamente habitado por demônios, bem, talvez seja exatamente isso que os demônios iriam querer (se eles existissem).
Sabe, um mundo em que direitos humanos não valem para todos e que tortura é método plenamente legítimo para se obter informação - porque nenhuma inquisição matou ou feriu um único inocente, ou sequer atravancou o progresso.
Talvez a grande questão, e a que assusta aqueles que enxergam demônios em cada sombra é a que não lhes suscita responder, e a de se são eles próprios os monstros tenebrosos dos quais os cidadãos de bem deveriam se esconder.
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