A
noite começa bem... Quer dizer, de certa forma.
Estamos
bebendo e conversando, como sempre. Política, educação superior, e, por alguns
momentos literatura. Na verdade, uma forma de tentar ostentar um status de
inteligente perante as pessoas ao redor, mesmo que, ninguém estivesse
interessado em ouvir. Particularmente, me recordo, de dado momento, quando
discutindo literatura, duas moças que estavam à distância de uma mesa começaram
a olhar mais interessadas para nossa direção. Vírgilio, como sempre, exibia a
maior parte dos comentários inteligentes, enquanto eu só fazia a pose, e
complementava com alguma interjeição ou pergunta igualmente insatisfatória.
_
Você entende que a repressão sexual é um dos maiores estímulos da literatura? –
uma marca registrada de Vírgilio, fazer uma pergunta que ele mesmo responderá,
ou complementará, ou continuará a falar sobre logo depois, independente de
haver uma resposta ou algo que o valha, como já sou escolado, somente espero
que ele continue - Veja Drácula por exemplo. É TUDO sobre sexo.
Uma
das garotas apontou para a outra, que riu, disfarçadamente.
_
Quer dizer... Todas as questões importantes, desde o castelo de Drácula, até,
principalmente e o fato mais importante, seu modo de operações, são alusões
diretas sobre sexo, que, acabam distraídas no contexto da obra pela alusão ao
vampirismo e todo o misticismo que apregoa, apesar de, não haver tanto da
alegoria na obra em si, e sim no cinema, fonte de onde a grande maioria das
pessoas conhece o conde.
“Pare
de falar sobre isso, seu grande idiota” eu dizia durante o monólogo, apenas
movendo os lábios, sem soltar uma única palavra, e com a expressão mais fingida
de todos os tempos, parecendo legitimamente intrigado pelo ponto de vista, para
que, não naquele momento específico enquanto apontava com a cabeça, com as mãos
ou, mais reservadamente, com os olhos e a sobrancelha apontando para as
garotas, que, apesar de tudo isso continuavam a olhar em nossa direção.
_
Pois veja bem. Durante a visita a Londres, na época a cidade mais importante do
mundo, e mandatória das regras e costumes do mundo civilizado, que, entre
tantas coisas incluíam o decoro e os bons modos – e toda essa mentalidade
‘católica’ sobre sexo somente para procriação entre outras considerações, o
conde envolve-se com duas mulheres, ambas prometidas de casamento, e algo que
pela tradição consiste em se dizer, virgens. Após os encontros com o conde,
ambas passam a agir ‘estranhamente’, com súbitos desejos e hábitos que são
condenáveis pela sociedade.
Oras,
fica bem claro que ‘sangue’ o conde ‘sugou’ destas mulheres, não? Que sangue
esse que dava ‘poder’ e ‘juventude’ a esse homem bem mais velho? Há! – Outro
movimento típico de Vírgilio durante suas pausas, quando, presumivelmente havia
concluído parte do ponto a que queria chegar. A interjeição, normalmente dita
em tom bem alto, seguido ou não de uma batida na mesa, quando se aproxima do
copo de cerveja, e, ou o enche, ou o bebe. Nunca os dois.
Eu,
porém, apesar de lembrar boa parte do discurso, não estava, naquele momento
prestando tanta atenção ao que ele dizia. Tanto é que, minha memória lembra de
poucas das elucubrações que se seguiram a isso. Eu estava concentrado no belo
sorriso da garota que viria a se tornar minha ‘em-breve-para-se-tornar-esposa’
e ‘grávida-do-meu-filho’ Marina, e que, no momento em questão era apenas
Marina, a moça simpática e agradável que sorria constantemente para mim num
bar. E isso foi a primeira coisa que me fez saber que devia ser ela. Aquele
movimento tímido de sua bochecha, contorcendo para que um sorriso delicado
transformasse completamente sua expressão, e a garantisse uma graça e leveza,
que, embora estivesse ali desde o começo, agora transbordavam, principalmente
pelo seu olhar. Aquele pequeno e tímido movimento era capaz de fazer com que
seus olhos se fechassem na medida exata para que o máximo de luz refletisse e
brilhasse através do castanho claro de sua íris, e enchesse o ambiente com tal
reflexo. E esse foi o momento em que eu
percebi que eu não poderia perdê-la. Não assim.
Confesso
que não me lembro dos detalhes que me fizeram levantar de minha mesa e partir
conversar com ela. Não sei o que disse, não lembro como contornei o nervosismo
e a sudorese, e, honestamente, nem sei se falei algo pra Vírgilio ou se esperei
que ele ao menos terminasse sua frase antes de me levantar. O que me lembro é
que ela ficou sozinha por alguns minutos na mesa, e eu fui pra lá. Conversamos
por horas, e passamos boa parte do restante do tempo nos beijando, até que, ela
lembrasse que era tarde, e partisse com sua carona.
Trocamos
rapidamente telefones para que não atrapalhássemos mais a quem nos esperava,
acertamos alguns detalhes, e, em dois dias já nos veríamos novamente, num
encontro propriamente dito, sem depender de ninguém mais e seguindo os esquemas
básicos de toda a convenção que envolve o inicio de namoro: Cinema e uma
refeição.
Aprendi
com minha pouca experiência que essa combinação é, se bem planejada, além de
uma potente arma para conhecer melhor a possível futura parceira, também é a
maneira mais eficaz de evitar constrangimentos para terminar o encontro a
qualquer momento. Detectar alguns maneirismos, fatores que possam causar
problemas/estresse – como por exemplo, o grau de civilidade e bom senso contido
– e, é claro, aproveitar um bom tempo para bolinações, falsos pretextos para
intimidade perante estranhos e para sussurrar e ouvir sussurros – que em minha
singela opinião, é a forma mais sensual de se dizer qualquer coisa.
E
é entre sussurros e beijos trocados no cinema, começamos a noite, tornando-nos
cada vez mais à vontade um com o outro. Tanto que, quando saímos da seção, o
único momento em que realmente pensei/lembrei que fosse nosso primeiro encontro
foi ao final, quando a deixei em sua casa. Uma noite bastante agradável.
Pela
primeira vez em todos os encontros que já tive, eu pude ser eu mesmo, sem
máscaras, sem demagogias, sem... Somente eu. Vendo pela tranqüilidade e
naturalidade de seus atos, concluo que ela também estava sendo ela mesma, mas
disso jamais poderei ser juiz, e nem ninguém além dela mesma. E a realidade é
que nos divertimos, muito. Foi algo bastante natural e gostoso. Sem pieguices,
foi quando percebi que estava me apaixonando.
Na
época tanto eu quanto ela tínhamos diversas funções além do serviço (ela, como
arquiteta trabalhando em um escritório pequeno e modesto, passava horas
retificando projetos e idealizando conceitos para estabelecer alguma estrutura
e característica de marca aos trabalhos de sua empresa, enquanto realizava um
curso de design de interiores durante dois dias da semana, também fazia uma
espécie de terapia de relaxamento/meditação, e, aos sábados, praticava vôlei de
areia com uma equipe bastante competente – eu, bem, tinha no banco minha maior
ocupação e preocupação, tentava e insistia em fazer cursos e matérias eletivas
e matérias como aluno especial para que pudesse, como Virgílio ingressar em uma
turma de mestrado mais dia menos dia, além disso havia o futebol sagrado às
quintas-feiras e o futebol sagrado televisionado aos domingos, e assistido com
cerveja, carne mal-assada e provocações insistentes e persistentes sobre a
qualidade dos times adversários), e um segundo encontro, ou, o segundo encontro
que merecíamos ter após aquele primeiro, acabou demorando algumas semanas.
Nesse ínterim éramos constantemente atrapalhados por amigos, tanto meus quanto
dela, que, por motivos que até hoje me escapam, achavam lógico e coerente que
sentassem-se conosco, desabassem sua carga emocional sobre nós, ou simplesmente
insistisse até dragar um de nós para um caminho escuso e que de nada ajudaria –
ou ajudou – no desenvolvimento de clima pra qualquer uma daquelas, graças aos
céus, duas ou três noites. Talvez tudo isso se procedesse porque ainda não
estávamos namorando sério... Ainda era apenas um caso sem grande importância ou
algo do tipo sob o olhar de nossos amigos, então não havia problema em nos
interromper.
Por
isso o segundo encontro foi o divisor de águas, que passamos um bom tempo
programando, agendando e definindo cada detalhe e ponto para o encontro
perfeito, para oficializarmos a relação, com um jantar romântico, e, nossa
primeira noite juntos. Não foi bom. Na verdade foi e ainda é nosso pior
encontro, mesmo de todos esses anos. Pela primeira vez desde que nos
conhecemos, estávamos nervosos, tensos pela espera, e, com todo o jantar e a
expectativa que criamos para o ato durante conversas telefônicas, mensagens
eletrônicas trocadas e, bem, tudo mais até aquele momento. O sexo não foi ruim,
não é isso, foi longe de bom, só isso. Foi sistemático, frio, distante... Não
vou buscar justificativas, dizendo que estávamos cansados com a rotina
exaustiva ou algo do tipo. Mas foi frustrante. O tesão dos dias que precederam
aquele encontro, em que, nos sentíamos tão a vontade um com o outro, e, que,
tudo nos fazia crer que seria, bem, no mínimo bom, parecia ter ficado do lado
de fora da porta que adentramos naquele quarto de motel.
Os
dias seguintes foram estranhos... Conversamos pouco. Poucas ligações, pouca
correspondência eletrônica... Ficamos dias inteiros sem trocar um ‘bom dia’ ao
menos, algo que não acontecera antes. Parecia o fim.
Ficamos
neste estado suspenso, trocando palavras desconfortáveis por mais um tempo,
quando um amigo em comum (que, honestamente não sabíamos até o convite que o
tínhamos em comum), nos convidou para uma festa após uma partida de futebol, e,
para que, se quiséssemos assistir à partida junto dele. Foi o que nos fez
voltar a conversar, e, conforme foi se aproximando o dia, a excitação e o
fôlego de antes do segundo encontro nos voltavam. Era quase como se esse
fatídico encontro nunca tivesse ocorrido. Éramos somente nós dois de novo, sem
nervosismo ou máscaras ou falsidade...
Bem,
talvez um pouco de nervosismo quando nos vimos cara a cara de novo pela
primeira vez, e, um pouco desse nervosismo prevaleceu, sim, com certeza, por
algum tempo, mas, conforme encontramos nossos lugares no estádio, isso foi
passando e se reduzindo a pó. Estávamos rindo de novo, brincando um com o
outro, e, sempre buscando pretextos para nos sentirmos. Havia algo em seu olhar,
um brilho cativante e charmoso que, toda vez sem exceção me fazia ficar por um
momento completamente paralisado, tendo de me aproximar, e como única reação
lógica, beijá-la calorosamente. Um mundo inteiro vibrava e pulsava ao nosso
redor, um microcosmo reflexivo e ativo para demonstrar a paixão e emoção sobre
a partida, e não podia importar menos. Mesmo que aquele fosse meu time jogando,
e, aquele fosse um jogo definitivo para o futuro dele na competição... Eu só
precisava de um olhar, e tudo fazia sentido. E tudo mais deixava de existir.
Tudo
que eu precisava ali era ela. E ela estava ali.
Nosso
amigo chegou, quase na metade do jogo, com alguns cortes no braço, e um sério
inchaço na boca. Disse que, só estava ali para nos relatar o ocorrido, que sua festa
estava cancelada, uma vez que teria de resolver ainda algumas coisas, e, que,
seria prudente que saíssemos dali o quanto antes.
Antes
mesmo que os pais dele que também estavam ali, ou de qualquer outro de seus
amigos que estavam por ali, ele veio falar conosco, e por tal motivo, Marina
pediu as satisfações primeiro.
Houve
uma briga de torcidas rivais no caminho do estádio, como sempre, sem motivo
algum, somente porque a camiseta do time de um era diferente da camiseta do
time do outro. Provocações, tumulto, e confusão em um posto de gasolina, onde,
por incrível coincidência, os dois grupos acabaram por parar. E por incrível
acaso do destino, uma das pessoas estava armada (o que levanta a pergunta de
que tipo de excremento possui tal pessoa no lugar de seu cérebro, e como pudera
passar tanto tempo viva assim, afinal, a anatomia e medicina nos ensinam que as
fezes devem encontrar-se no corpo, somente temporariamente, em outra direção,
que não da cabeça). Entre empurrões dum lado, discussões mais acaloradas do
outro, um soco é dado, uma pessoa cai, outra parte pra agressões mais pesadas,
e, é dado início a um dos atos de maior boçalidade da humanidade. Socos,
chutes, rasteiras e cabeçadas usadas com força para ferir pessoas tão somente
por torcerem para um time adversário. O tiro é disparado, e o tempo parece
fluir em outra velocidade, mais lenta, com as pessoas correndo aterrorizadas de
um lado, e um grupelho fugindo aterrorizado de outro. Com exceção óbvia de uma
pessoa, agora inerte após o ocorrido, o pânico generalizado faz com que todos
tomem alguma direção e corram. Rodolfo, vendo seu amigo ali caído, sem saber
como reagir, procurou abrigo, e, voltou para a loja de conveniências. Correu
como um raio até o banheiro, e sentiu uma azia como nunca na vida. Vomitou um
bocado, e perdeu a consciência. Foi nisso que se machucou, efetivamente...
Estava longe de todo o foco da briga, bebendo um refrigerante e comendo alguma
coisinha antes da partida. Teve de ficar no posto até a chegada da polícia,
respondeu algum questionamento rápido, e, foi logo liberado, e veio em direção
ao estádio, como havia dito antes, para nos avisar do ocorrido, antes de voltar
até a delegacia, pretendendo ajudar o quanto pudesse nas investigações e,
enfim, na identificação dos agressores. Mesmo que não tivesse visto o conflito
diretamente... Curiosamente, este amigo também era conhecido, tanto por mim,
quanto por Marina. Ele trabalhava no banco, e, chegamos a fazer algum curso ou
participar de alguma palestra, e, como ambos conhecíamos Rodolfo, já havíamos
conversado algumas vezes e saído pra beber algumas outras vezes. Uma amiga de
Marina havia namorado esse rapaz, não muito tempo atrás (inclusive é a amiga
que estava com ela na noite que nos conhecemos). E agora ele estava morto. Era
uma sensação estranha de saber que esta pessoa que conhecemos, jovem como nós,
e que agora não mais estava aqui. Tão repentino e violento... Tão banal...
Assim
que ouvimos tudo, com menos de vinte minutos para o final, começamos a nos
aprontar para sair, e acabamos levando mais tempo do que gostaríamos para sair.
Muita fila, uma aglomeração em cada direção da saída, e, mesmo saindo mais
cedo, não estávamos livre do perigo. Desde o ocorrido no posto de combustível,
várias pessoas foram se mobilizando de cada torcida e se reunindo ao lado de
fora do estádio. Quando saímos, pedrinhas e provocações eram atiradas de um
lado para o outro, e, não tardou até que pedras maiores, pedaços de madeira e
toda sorte de objeto que pudesse ser utilizado para machucar e ferir ao ser
arremessado. Abracei forte Marina para protegê-la enquanto caminhamos para o
carro, e, acabei sendo atingido algumas vezes por uma pedra ou outra, enquanto
partíamos. Ela estava bastante assustada, com seu rosto encostado ao meu ombro,
tremia e chorava um pouco. Não sei dizer ao certo de onde tirei o que precisava
para chegar ao carro, como consegui me manter calmo, e chegar ao carro. A briga
foi ficando feia, e cada vez pior. Os torcedores iniciaram confronto com o
pelotão de choque da polícia, mesmo que com uma considerável distância entre o
local do confronto e o estacionamento propriamente dito, podíamos ver a fumaça
das cápsulas de efeito moral. Respiramos fundo ao nos ajustarmos no carro. Ela
ainda tremia, assustada, e, eu olhei para ela, tentando oferecer algum tipo de
conforto, segurando firme sua mão, dizendo qualquer coisa para que ela se
sentisse melhor... Mais calma. Ela me abraçou, carinhosa, e me disse, baixinho,
com um sussurro “Me beije”, e ficamos ali, por alguns minutos nos beijando, nos
acariciando, nos sentindo. Ela me olhou, depois, com um desejo... Com uma
expressão de... Saímos dali e paramos no primeiro motel que encontramos. Nosso
nervosismo da primeira vez e tudo o que envolvera aquele encontro cretino
ficara no passado. Não, fora completamente ignorado, deixara de existir. Agora
tudo o que importava era que estávamos a vontade, e quentes um pelo outro.
Havia tanto querer que o quarto foi pouco para nós. O mundo foi pouco para nós
naquela noite. Não havia limites. Nada mais importava. Eu tinha tudo que queria
e precisava no mundo ali, e cada minuto era tão importante como se fosse
último.
Cansados,
fomos cada um para nossas respectivas casas, um tanto relutantes, sem conseguir
parar ou ofertar um último beijo, querendo um pouco mais, querendo continuar e
passar um pouco mais de tempo juntos, mas não havia como. Ambos trabalharíamos
bastante no dia seguinte, e, passarmos a noite seja na casa dela ou na minha
eram opções fora de qualquer cogitação... Ambos ainda morando com os pais na
época... Bem, era família demais. O melhor era curtir um pouco a distância
mesmo, deixar bater aquela saudade, aquela vontade boa de ficar junto, que só
se sente estando separado... E, claro, descansar um pouco, que ambos
precisávamos depois de um dia assim.
Chegando
em casa, descubro, pelo noticiário que, após o final da partida, o confronto
com a polícia continuou por quase uma hora, mais dois torcedores morreram (um
deles pisoteado, após cair durante o tumulto, o outro espancado pela torcida
rival, mas isso parece que foi antes da chegada da polícia, talvez até o motivo
da presença da mesma), e dezenas de outros ficaram gravemente feridos. Vendo
aquelas imagens de selvageria, foi quando decidi não torcer mais para time
algum de futebol. Não fazia sentido... Não mais. As coisas que realmente
importavam mereciam mais atenção e dedicação que um time que sequer se importa
quando um ou mais de seus torcedores morrem, de forma (estúpida e) passional
por seus emblemas.
O
funeral desse rapaz foi alguns dias depois, acho que era uma terça ou
quarta-feira. Mais provável que quarta, pois já era meio de semana, e tiveram
alguns atrasos junto ao médico legista e o fato dele ser doador de órgãos.
Rodolfo estava lá, desde a noite anterior (o que me faz acreditar mais ainda
que fosse quarta). Marina estava lá. Curiosamente não havíamos combinado de
ir... Ambos dissemos que, eventualmente passaríamos por ali, tentar oferecer
algum conforto a família do falecido, e, principalmente nosso amigo, que tivera
sua festa de aniversário arruinada por tal fatalidade. Ela estava linda de
preto, com uma singela beleza que parecia emanar de seu corpo, parecia pulsar
de seu corpo... Algo que jamais consegui explicar direito... Quando vi seus
olhos por baixo dos óculos escuros... Brilhando tão forte, que parecia
realmente ser necessário aquela camada de proteção dos óculos, mas não para
ela, e sim para que ela não nos ofuscasse com tamanha luminescência. Me
aproximei, a beijei carinhosamente, e, passamos juntos o restante do tempo que
ficamos ali, nos abraçando e compartilhando aquele estranho sentimento de culpa
de sobrevivente. Poderíamos ser nós, ela disse baixinho, como sussurrara dias
atrás. E nos abraçamos mais forte, compartilhando aquele sentimento até o
momento derradeiro que partiríamos para encarar um maçante dia de trabalho.
Por
algum tempo, quando nos vimos depois dessa ocasião, parecia que havia algo
errado, principalmente uns dois ou três meses depois, até quase um ano, quando
ela pareceu ‘voltar ao normal’. Não sei exatamente como explicar... Havia algo
estranho cada vez que nos encontrávamos. Ela parecia na defensiva, extremamente
sensível ou incomodada com alguma coisa. Se tentasse obter alguma resposta,
tudo o que conseguia era algo vago, ou acusações que iam de não respeitar seu
espaço e privacidade ao ponto de ser chamado de fascista por fazê-lo. No
período em que não nos víamos, somente conversando por telefone ou por
mensagens, e só assim os ânimos pareciam mais aprazíveis. Confesso que até esse
dia ainda não entendo direito o que se passou. Não vejo como TPM ou alguma
alteração hormonal qualquer, uma vez que levou um bom tempo para passar, e
parece ter passado sozinho, sem que ela tenha feito uso de remédios ou
reposições hormonais de qualquer sorte. Quando ela voltou a seu ‘normal’,
aquela mulher que eu realmente adorava e queria sempre por perto, nós
formalizamos nossa união, passando a morar juntos, em um pequeno apartamento
que mais parecia uma república estudantil... Com estudantes jubilados e que
deveriam perceber que era hora de seguir em frente. Mas era o que o dinheiro
podia pagar, sem que tivéssemos de abrir mão de todo tipo de luxo e eventuais
mimos e presentes.
E,
claro, ainda passávamos boa parte de nossos tempos com nossas famílias, para
muitas refeições, e, obviamente, para lavar e secar a roupa. O apartamento era
muito mais um lugar (ruim) para que pudéssemos nos curtir, sem ter de nos
preocupar em perturbar nossos pais, ou vizinhos (que, num pardieiro daqueles
não era como se a gente se importasse), ou mesmo de nos justificar para
qualquer um. O tempo para nós dois. E foi um tempo fantástico. Voltar para
casa, mesmo aquela droga de casa, com uma infiltração terrível, sem ventilação
alguma para dias quentes, com espaço mínimo na garagem – constantemente usada
como vaga de bicicleta dos filhos mal-educados de meu vizinho direto... Enfim,
voltar para casa todos os dias sabendo que aquela mulher fantástica estaria lá,
me aguardando com um sorriso e um beijo...
Fazia
tudo valer a pena.
***
Antes
de continuar, acho que se faz necessário um breve espaço para falar sobre minha
família. Tenho uma família extensa, devido às origens européias rurais de meus
avós, que o deram a idéia de produzir muitos filhos. E são muitos tanto do lado
de meu pai quanto do de minha mãe. Com a morte de meu pai, o contato com estes
parentes foi diminuindo cada vez mais, até eu não me lembrar a última vez que
conversei com qualquer um deles. Com a morte de minha avó, o mesmo aconteceu
com os parentes do lado de minha mãe. Então, o cerne de minha família, nestes
últimos anos consiste de minha mãe, meu irmão e eu. E, sem querer ser rancoroso
ou algo que o valha, meu irmão nunca significou muito pra mim. Nunca foi um
irmão, como a definição propriamente dita, e mais um estranho que dividia o
mesmo ambiente, e, devido sua personalidade que nunca bateu com a minha, sempre
e continuamente foi difícil me relacionar com ele. De minha mãe, eu nunca me
permiti pensar em coisas ruins sobre ela – mesmo quando pensava, me recriminava
imediatamente – devido a todo o perrengue que ela passou para manter a casa
cuidando de mim e de meu irmão, trabalhando em dobro para que a ausência do pai
fosse menos sentida... Menos importante.
Gosto
muito dela, e, honestamente, de todas as pessoas desse mundo, se algo acontece
com ela eu realmente não sei o que faria... Ela e a casa sempre foram
portos-seguros para mim, lugares de conforto e segurança, e não consigo me ver
num mundo onde ela não estivesse. Nós não somos tão ligados, é verdade...
Existem mais coisas que nos diferenciam do que as que nos unem... Nossos gostos
são diferentes, nosso humor diferente, nossa forma de ver e interpretar o
mundo... E mesmo assim, o laço existente é muito forte pra que qualquer uma
dessas coisas importe. Sempre é preciso fazer uma visita, inventar um pretexto
para vê-la, mesmo que só pra tomar um café e dar um abraço. Mesmo que não
exista algo para se dizer.
Quando
apresentei Marina para minha família... Tive reações diversas. E nenhuma muito
próxima do que eu poderia esperar.
Meu
irmão e sua esposa agiam como se eu nem estivesse ali, perguntando para ela
muitas coisas que eu havia mencionado ou falado pouco antes, e minha mãe estava
simplesmente intragável, bajulando e paparicando tanto Marina... Chegando ao
ponto de durante o jantar perguntar para ela o que via em mim! Ao fim da noite,
ela se aproximou de mim e disse algo como “Não deixe essa escapar, porque você
certamente não encontra coisa melhor – e nem sei se merece exatamente o que
recebeu”, apesar de que não posso garantir pela segunda parte, afinal ela deu
uma pequena tossida, e o que eu ouvi foi um grunhido baixo e contínuo que pode
ser isso, ou qualquer outra coisa. Eu prefiro acreditar nessa frase, que
caracteriza bem o relacionamento que se estabelece entre minha família e
Marina. A cada novo jantar, novo encontro, nova festa, ela foi sendo mais e
mais paparicada e aceita, o que me deixa numa situação um tanto desconfortável,
isolado até.
Quando
o oposto se fez, e eu fui conhecer os pais dela, confesso que a apatia também
se fez. Seus pais se divorciaram a um bom tempo, então conhecemos um de cada
vez, com seus respectivos novos pares, e, nem de longe isso fez com que os
climas fossem mais amigáveis. Na verdade o silêncio quase era palpável,
formando uma parede entre os extremos da mesa. Nas duas situações. O que mostra
que o antigo casal não é tão diferente assim.
Conforme
foi passando o tempo, e passamos a morar juntos, cada vez menos eu vi ou
visitamos a silenciosa família, e cada vez mais checávamos como estavam as
coisas com a minha. Nos últimos doze meses mesmo, acho que só falei uma vez com
minha sogra, no dia de seu aniversário, e somente porque Marina estava com ela
ao telefone. Não por desgostarmos deles, que fique bem claro, mas não fazia
muito sentido ficar naqueles silêncios cada vez mais constrangedores a cada
nova visita.
Minto,
pois a última vez que falei com minha sogra foi para anunciar que um netinho
estava a caminho, e, me deparei com o parabéns mais seco e aparentemente sem
vontade que já recebi, e, acredito que a reação com Marina não foi tão
diferente, uma vez que depois dessa feita, em momento algum houve menção à mãe
dela. Confesso que não sei se Marina ligou para o pai dela... Eu sei que não o
fiz, e nem tenho a pretensão de fazê-lo tão cedo... Se depender de mim, no
próximo feriado vou com Marina para uma visitinha, sem telefonemas.
Com
minha família foi bastante diferente... Uma farra! Um jantar em comemoração e
minha mãe fazendo questão de ligar pra cada um dos meus tios para contar, ela
mesma a notícia, enquanto eu e Marina estávamos em sua casa, e, muitos deles
foram surgindo para nos cumprimentar pessoalmente. Até meu irmão pareceu querer
quebrar o gelo, me dando um abraço e tudo mais... Um tanto estranho, é verdade,
mas... O sorriso de Marina brilhava, a cada novo parabéns, a cada novo abraço,
a cada mimo de meus tios, tias, primos e todos aqueles parentes que há anos eu
não via, e que, acabaram por se reunir para ver a mãe da ‘futura criança da
casa’.
Aquela
imagem dela, ali, sorrindo, e tão sublime... Tão... Me faltam palavras para
descrever... Mas aquela imagem ficará pra sempre comigo...
Aquela
noite em si, ficará pra sempre na memória.
Assim
como o dia em que a radiografia foi feita. Aquele rostinho angelical se
formando em pixels e pixels borrados de tons de azul e amarelo e preto... Eu
fiquei tão orgulhoso com aquilo que carrego uma das fotos em minha carteira.
Deve ser coisa de pai babão, mas para saber com certeza, é preciso que a
criança nasça primeiro...
***
Virgilio
é meu amigo mais antigo, e talvez o único que eu ainda mantenha contato,
revendo de tempos em tempos, e recorrendo a quando surge algum problema, ou
quando preciso realmente falar com alguém de confiança. Nos conhecemos desde o
colégio, acho até que um pouco de antes disso, no ensino básico, uma vez que
estudamos na mesma escola, apesar de que só passamos a conversar e mesmo sermos
cúmplices um do outro quando passamos para o ensino médio, num colégio novo, um
tanto mais longe, que requeria uma viagem diária da qual compartilhávamos todos
os dias. No início eram somente colas, dicas para burlar esse ou aquele
professor, mas foi mudando para coisas mais sérias e maduras, conforme o
colégio foi passando. Garotas, literatura, o futuro... Dinheiro para viver
nesse futuro... Sempre achei bom ter alguém centrado por perto com quem falar,
e, por algum motivo, sem que eu fosse qualquer coisa próxima disso, ele se
sentia confortável em compartilhar comigo também. É modéstia... Falsa modéstia,
de minha parte, com certeza, pois sei que o ajudei a determinar seu ramo para a
faculdade, e, tempo após também (sua família queria que ele fizesse engenharia
para trabalhar no escritório dos pais – que outrora fora dos avós, e,
curiosamente dos bisavós – mas ele preferiu seguir sua própria voz como
filósofo – o que o afastou de sua família – seguindo para a graduação, o mestrado,
e, agora o doutorado que deve ser apresentado em alguns meses, depois da última
revisão e da última incompatibilidade da banca). Ele está bem estabilizado,
como professor de filosofia helenística (ou algo muito parecido com isso) numa
faculdade paga, e substituindo alguns professores de outras escolas
filosóficas.
Sempre
que possível, nos encontramos, ao menos uma vez por semana, atualizar sobre o
que está acontecendo, tomar uma cerveja. Ele foi a primeira pessoa pra quem
falei sobre a gravidez de Marina. Fiz questão de passar em sua sala na
faculdade, levando algumas cervejas em uma caixa térmica. Ele, que normalmente
é bastante prolixo e falador, com teorias e mais teorias (ou, ao menos citações
e mais citações), somente disse “He! Admirável mundo novo”.
Ficamos
sentados por uma boa meia hora, bebendo nossas cervejas e conversando sobre o
admirável mundo novo para o qual estava me encaminhando. Em breve haveria o
casamento, ou melhor, a formalização do mesmo, afinal, o tempo que morávamos
juntos já era mais duradouro que muitos casamentos, e, por tal motivo também
estava a formalizar que gostaria de ter Virgílio como meu padrinho. Dessa vez,
ele ficou sem palavras, e, eu pude perceber o choro que começava a brotar. Nos
conhecemos a tanto tempo, mas mesmo assim não se pode esperar certas coisas.
Fora
isso, ele é um sujeito bastante reservado, solitário e sempre sozinho. Confesso
não saber se ele está com alguém, ou o nome da última mulher que teve em sua
vida. Ou, até mesmo se ele prefere o outro lado (apesar de nunca ter parecido).
Ele
anda um tanto estressado, graças a banca, ao livro que está pesquisando e
coletando material para a eventual publicação da tese, com apêndices e
complementação de fotos, comentários de outros literários e mais um bocado de
coisas que, bem, demandam muito tempo para quem ainda precisa montar aula, se
preparar para eventuais substituições e, bem, todo o restante que lhe ocupava
tempo. Pelo menos é o que ele diz... Parece estranho, é verdade, mas acredito
nele. É meu amigo mais antigo, e merece um voto de confiança.
Nenhum comentário:
Postar um comentário