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17 de julho de 2013

Ato 1 - A vida, o universo e tudo mais (parte 4)


A noite começa bem... Quer dizer, de certa forma.
Estamos bebendo e conversando, como sempre. Política, educação superior, e, por alguns momentos literatura. Na verdade, uma forma de tentar ostentar um status de inteligente perante as pessoas ao redor, mesmo que, ninguém estivesse interessado em ouvir. Particularmente, me recordo, de dado momento, quando discutindo literatura, duas moças que estavam à distância de uma mesa começaram a olhar mais interessadas para nossa direção. Vírgilio, como sempre, exibia a maior parte dos comentários inteligentes, enquanto eu só fazia a pose, e complementava com alguma interjeição ou pergunta igualmente insatisfatória.
_ Você entende que a repressão sexual é um dos maiores estímulos da literatura? – uma marca registrada de Vírgilio, fazer uma pergunta que ele mesmo responderá, ou complementará, ou continuará a falar sobre logo depois, independente de haver uma resposta ou algo que o valha, como já sou escolado, somente espero que ele continue - Veja Drácula por exemplo. É TUDO sobre sexo.
Uma das garotas apontou para a outra, que riu, disfarçadamente.
_ Quer dizer... Todas as questões importantes, desde o castelo de Drácula, até, principalmente e o fato mais importante, seu modo de operações, são alusões diretas sobre sexo, que, acabam distraídas no contexto da obra pela alusão ao vampirismo e todo o misticismo que apregoa, apesar de, não haver tanto da alegoria na obra em si, e sim no cinema, fonte de onde a grande maioria das pessoas conhece o conde.
“Pare de falar sobre isso, seu grande idiota” eu dizia durante o monólogo, apenas movendo os lábios, sem soltar uma única palavra, e com a expressão mais fingida de todos os tempos, parecendo legitimamente intrigado pelo ponto de vista, para que, não naquele momento específico enquanto apontava com a cabeça, com as mãos ou, mais reservadamente, com os olhos e a sobrancelha apontando para as garotas, que, apesar de tudo isso continuavam a olhar em nossa direção.
_ Pois veja bem. Durante a visita a Londres, na época a cidade mais importante do mundo, e mandatória das regras e costumes do mundo civilizado, que, entre tantas coisas incluíam o decoro e os bons modos – e toda essa mentalidade ‘católica’ sobre sexo somente para procriação entre outras considerações, o conde envolve-se com duas mulheres, ambas prometidas de casamento, e algo que pela tradição consiste em se dizer, virgens. Após os encontros com o conde, ambas passam a agir ‘estranhamente’, com súbitos desejos e hábitos que são condenáveis pela sociedade.
Oras, fica bem claro que ‘sangue’ o conde ‘sugou’ destas mulheres, não? Que sangue esse que dava ‘poder’ e ‘juventude’ a esse homem bem mais velho? Há! – Outro movimento típico de Vírgilio durante suas pausas, quando, presumivelmente havia concluído parte do ponto a que queria chegar. A interjeição, normalmente dita em tom bem alto, seguido ou não de uma batida na mesa, quando se aproxima do copo de cerveja, e, ou o enche, ou o bebe. Nunca os dois.
Eu, porém, apesar de lembrar boa parte do discurso, não estava, naquele momento prestando tanta atenção ao que ele dizia. Tanto é que, minha memória lembra de poucas das elucubrações que se seguiram a isso. Eu estava concentrado no belo sorriso da garota que viria a se tornar minha ‘em-breve-para-se-tornar-esposa’ e ‘grávida-do-meu-filho’ Marina, e que, no momento em questão era apenas Marina, a moça simpática e agradável que sorria constantemente para mim num bar. E isso foi a primeira coisa que me fez saber que devia ser ela. Aquele movimento tímido de sua bochecha, contorcendo para que um sorriso delicado transformasse completamente sua expressão, e a garantisse uma graça e leveza, que, embora estivesse ali desde o começo, agora transbordavam, principalmente pelo seu olhar. Aquele pequeno e tímido movimento era capaz de fazer com que seus olhos se fechassem na medida exata para que o máximo de luz refletisse e brilhasse através do castanho claro de sua íris, e enchesse o ambiente com tal reflexo.  E esse foi o momento em que eu percebi que eu não poderia perdê-la. Não assim.
Confesso que não me lembro dos detalhes que me fizeram levantar de minha mesa e partir conversar com ela. Não sei o que disse, não lembro como contornei o nervosismo e a sudorese, e, honestamente, nem sei se falei algo pra Vírgilio ou se esperei que ele ao menos terminasse sua frase antes de me levantar. O que me lembro é que ela ficou sozinha por alguns minutos na mesa, e eu fui pra lá. Conversamos por horas, e passamos boa parte do restante do tempo nos beijando, até que, ela lembrasse que era tarde, e partisse com sua carona.
Trocamos rapidamente telefones para que não atrapalhássemos mais a quem nos esperava, acertamos alguns detalhes, e, em dois dias já nos veríamos novamente, num encontro propriamente dito, sem depender de ninguém mais e seguindo os esquemas básicos de toda a convenção que envolve o inicio de namoro: Cinema e uma refeição.
Aprendi com minha pouca experiência que essa combinação é, se bem planejada, além de uma potente arma para conhecer melhor a possível futura parceira, também é a maneira mais eficaz de evitar constrangimentos para terminar o encontro a qualquer momento. Detectar alguns maneirismos, fatores que possam causar problemas/estresse – como por exemplo, o grau de civilidade e bom senso contido – e, é claro, aproveitar um bom tempo para bolinações, falsos pretextos para intimidade perante estranhos e para sussurrar e ouvir sussurros – que em minha singela opinião, é a forma mais sensual de se dizer qualquer coisa.
E é entre sussurros e beijos trocados no cinema, começamos a noite, tornando-nos cada vez mais à vontade um com o outro. Tanto que, quando saímos da seção, o único momento em que realmente pensei/lembrei que fosse nosso primeiro encontro foi ao final, quando a deixei em sua casa. Uma noite bastante agradável.
Pela primeira vez em todos os encontros que já tive, eu pude ser eu mesmo, sem máscaras, sem demagogias, sem... Somente eu. Vendo pela tranqüilidade e naturalidade de seus atos, concluo que ela também estava sendo ela mesma, mas disso jamais poderei ser juiz, e nem ninguém além dela mesma. E a realidade é que nos divertimos, muito. Foi algo bastante natural e gostoso. Sem pieguices, foi quando percebi que estava me apaixonando.
Na época tanto eu quanto ela tínhamos diversas funções além do serviço (ela, como arquiteta trabalhando em um escritório pequeno e modesto, passava horas retificando projetos e idealizando conceitos para estabelecer alguma estrutura e característica de marca aos trabalhos de sua empresa, enquanto realizava um curso de design de interiores durante dois dias da semana, também fazia uma espécie de terapia de relaxamento/meditação, e, aos sábados, praticava vôlei de areia com uma equipe bastante competente – eu, bem, tinha no banco minha maior ocupação e preocupação, tentava e insistia em fazer cursos e matérias eletivas e matérias como aluno especial para que pudesse, como Virgílio ingressar em uma turma de mestrado mais dia menos dia, além disso havia o futebol sagrado às quintas-feiras e o futebol sagrado televisionado aos domingos, e assistido com cerveja, carne mal-assada e provocações insistentes e persistentes sobre a qualidade dos times adversários), e um segundo encontro, ou, o segundo encontro que merecíamos ter após aquele primeiro, acabou demorando algumas semanas. Nesse ínterim éramos constantemente atrapalhados por amigos, tanto meus quanto dela, que, por motivos que até hoje me escapam, achavam lógico e coerente que sentassem-se conosco, desabassem sua carga emocional sobre nós, ou simplesmente insistisse até dragar um de nós para um caminho escuso e que de nada ajudaria – ou ajudou – no desenvolvimento de clima pra qualquer uma daquelas, graças aos céus, duas ou três noites. Talvez tudo isso se procedesse porque ainda não estávamos namorando sério... Ainda era apenas um caso sem grande importância ou algo do tipo sob o olhar de nossos amigos, então não havia problema em nos interromper.
Por isso o segundo encontro foi o divisor de águas, que passamos um bom tempo programando, agendando e definindo cada detalhe e ponto para o encontro perfeito, para oficializarmos a relação, com um jantar romântico, e, nossa primeira noite juntos. Não foi bom. Na verdade foi e ainda é nosso pior encontro, mesmo de todos esses anos. Pela primeira vez desde que nos conhecemos, estávamos nervosos, tensos pela espera, e, com todo o jantar e a expectativa que criamos para o ato durante conversas telefônicas, mensagens eletrônicas trocadas e, bem, tudo mais até aquele momento. O sexo não foi ruim, não é isso, foi longe de bom, só isso. Foi sistemático, frio, distante... Não vou buscar justificativas, dizendo que estávamos cansados com a rotina exaustiva ou algo do tipo. Mas foi frustrante. O tesão dos dias que precederam aquele encontro, em que, nos sentíamos tão a vontade um com o outro, e, que, tudo nos fazia crer que seria, bem, no mínimo bom, parecia ter ficado do lado de fora da porta que adentramos naquele quarto de motel.
Os dias seguintes foram estranhos... Conversamos pouco. Poucas ligações, pouca correspondência eletrônica... Ficamos dias inteiros sem trocar um ‘bom dia’ ao menos, algo que não acontecera antes. Parecia o fim.
Ficamos neste estado suspenso, trocando palavras desconfortáveis por mais um tempo, quando um amigo em comum (que, honestamente não sabíamos até o convite que o tínhamos em comum), nos convidou para uma festa após uma partida de futebol, e, para que, se quiséssemos assistir à partida junto dele. Foi o que nos fez voltar a conversar, e, conforme foi se aproximando o dia, a excitação e o fôlego de antes do segundo encontro nos voltavam. Era quase como se esse fatídico encontro nunca tivesse ocorrido. Éramos somente nós dois de novo, sem nervosismo ou máscaras ou falsidade...
Bem, talvez um pouco de nervosismo quando nos vimos cara a cara de novo pela primeira vez, e, um pouco desse nervosismo prevaleceu, sim, com certeza, por algum tempo, mas, conforme encontramos nossos lugares no estádio, isso foi passando e se reduzindo a pó. Estávamos rindo de novo, brincando um com o outro, e, sempre buscando pretextos para nos sentirmos. Havia algo em seu olhar, um brilho cativante e charmoso que, toda vez sem exceção me fazia ficar por um momento completamente paralisado, tendo de me aproximar, e como única reação lógica, beijá-la calorosamente. Um mundo inteiro vibrava e pulsava ao nosso redor, um microcosmo reflexivo e ativo para demonstrar a paixão e emoção sobre a partida, e não podia importar menos. Mesmo que aquele fosse meu time jogando, e, aquele fosse um jogo definitivo para o futuro dele na competição... Eu só precisava de um olhar, e tudo fazia sentido. E tudo mais deixava de existir.
Tudo que eu precisava ali era ela. E ela estava ali.
Nosso amigo chegou, quase na metade do jogo, com alguns cortes no braço, e um sério inchaço na boca. Disse que, só estava ali para nos relatar o ocorrido, que sua festa estava cancelada, uma vez que teria de resolver ainda algumas coisas, e, que, seria prudente que saíssemos dali o quanto antes.
Antes mesmo que os pais dele que também estavam ali, ou de qualquer outro de seus amigos que estavam por ali, ele veio falar conosco, e por tal motivo, Marina pediu as satisfações primeiro.
Houve uma briga de torcidas rivais no caminho do estádio, como sempre, sem motivo algum, somente porque a camiseta do time de um era diferente da camiseta do time do outro. Provocações, tumulto, e confusão em um posto de gasolina, onde, por incrível coincidência, os dois grupos acabaram por parar. E por incrível acaso do destino, uma das pessoas estava armada (o que levanta a pergunta de que tipo de excremento possui tal pessoa no lugar de seu cérebro, e como pudera passar tanto tempo viva assim, afinal, a anatomia e medicina nos ensinam que as fezes devem encontrar-se no corpo, somente temporariamente, em outra direção, que não da cabeça). Entre empurrões dum lado, discussões mais acaloradas do outro, um soco é dado, uma pessoa cai, outra parte pra agressões mais pesadas, e, é dado início a um dos atos de maior boçalidade da humanidade. Socos, chutes, rasteiras e cabeçadas usadas com força para ferir pessoas tão somente por torcerem para um time adversário. O tiro é disparado, e o tempo parece fluir em outra velocidade, mais lenta, com as pessoas correndo aterrorizadas de um lado, e um grupelho fugindo aterrorizado de outro. Com exceção óbvia de uma pessoa, agora inerte após o ocorrido, o pânico generalizado faz com que todos tomem alguma direção e corram. Rodolfo, vendo seu amigo ali caído, sem saber como reagir, procurou abrigo, e, voltou para a loja de conveniências. Correu como um raio até o banheiro, e sentiu uma azia como nunca na vida. Vomitou um bocado, e perdeu a consciência. Foi nisso que se machucou, efetivamente... Estava longe de todo o foco da briga, bebendo um refrigerante e comendo alguma coisinha antes da partida. Teve de ficar no posto até a chegada da polícia, respondeu algum questionamento rápido, e, foi logo liberado, e veio em direção ao estádio, como havia dito antes, para nos avisar do ocorrido, antes de voltar até a delegacia, pretendendo ajudar o quanto pudesse nas investigações e, enfim, na identificação dos agressores. Mesmo que não tivesse visto o conflito diretamente... Curiosamente, este amigo também era conhecido, tanto por mim, quanto por Marina. Ele trabalhava no banco, e, chegamos a fazer algum curso ou participar de alguma palestra, e, como ambos conhecíamos Rodolfo, já havíamos conversado algumas vezes e saído pra beber algumas outras vezes. Uma amiga de Marina havia namorado esse rapaz, não muito tempo atrás (inclusive é a amiga que estava com ela na noite que nos conhecemos). E agora ele estava morto. Era uma sensação estranha de saber que esta pessoa que conhecemos, jovem como nós, e que agora não mais estava aqui. Tão repentino e violento... Tão banal...
Assim que ouvimos tudo, com menos de vinte minutos para o final, começamos a nos aprontar para sair, e acabamos levando mais tempo do que gostaríamos para sair. Muita fila, uma aglomeração em cada direção da saída, e, mesmo saindo mais cedo, não estávamos livre do perigo. Desde o ocorrido no posto de combustível, várias pessoas foram se mobilizando de cada torcida e se reunindo ao lado de fora do estádio. Quando saímos, pedrinhas e provocações eram atiradas de um lado para o outro, e, não tardou até que pedras maiores, pedaços de madeira e toda sorte de objeto que pudesse ser utilizado para machucar e ferir ao ser arremessado. Abracei forte Marina para protegê-la enquanto caminhamos para o carro, e, acabei sendo atingido algumas vezes por uma pedra ou outra, enquanto partíamos. Ela estava bastante assustada, com seu rosto encostado ao meu ombro, tremia e chorava um pouco. Não sei dizer ao certo de onde tirei o que precisava para chegar ao carro, como consegui me manter calmo, e chegar ao carro. A briga foi ficando feia, e cada vez pior. Os torcedores iniciaram confronto com o pelotão de choque da polícia, mesmo que com uma considerável distância entre o local do confronto e o estacionamento propriamente dito, podíamos ver a fumaça das cápsulas de efeito moral. Respiramos fundo ao nos ajustarmos no carro. Ela ainda tremia, assustada, e, eu olhei para ela, tentando oferecer algum tipo de conforto, segurando firme sua mão, dizendo qualquer coisa para que ela se sentisse melhor... Mais calma. Ela me abraçou, carinhosa, e me disse, baixinho, com um sussurro “Me beije”, e ficamos ali, por alguns minutos nos beijando, nos acariciando, nos sentindo. Ela me olhou, depois, com um desejo... Com uma expressão de... Saímos dali e paramos no primeiro motel que encontramos. Nosso nervosismo da primeira vez e tudo o que envolvera aquele encontro cretino ficara no passado. Não, fora completamente ignorado, deixara de existir. Agora tudo o que importava era que estávamos a vontade, e quentes um pelo outro. Havia tanto querer que o quarto foi pouco para nós. O mundo foi pouco para nós naquela noite. Não havia limites. Nada mais importava. Eu tinha tudo que queria e precisava no mundo ali, e cada minuto era tão importante como se fosse último.
Cansados, fomos cada um para nossas respectivas casas, um tanto relutantes, sem conseguir parar ou ofertar um último beijo, querendo um pouco mais, querendo continuar e passar um pouco mais de tempo juntos, mas não havia como. Ambos trabalharíamos bastante no dia seguinte, e, passarmos a noite seja na casa dela ou na minha eram opções fora de qualquer cogitação... Ambos ainda morando com os pais na época... Bem, era família demais. O melhor era curtir um pouco a distância mesmo, deixar bater aquela saudade, aquela vontade boa de ficar junto, que só se sente estando separado... E, claro, descansar um pouco, que ambos precisávamos depois de um dia assim.
Chegando em casa, descubro, pelo noticiário que, após o final da partida, o confronto com a polícia continuou por quase uma hora, mais dois torcedores morreram (um deles pisoteado, após cair durante o tumulto, o outro espancado pela torcida rival, mas isso parece que foi antes da chegada da polícia, talvez até o motivo da presença da mesma), e dezenas de outros ficaram gravemente feridos. Vendo aquelas imagens de selvageria, foi quando decidi não torcer mais para time algum de futebol. Não fazia sentido... Não mais. As coisas que realmente importavam mereciam mais atenção e dedicação que um time que sequer se importa quando um ou mais de seus torcedores morrem, de forma (estúpida e) passional por seus emblemas.
O funeral desse rapaz foi alguns dias depois, acho que era uma terça ou quarta-feira. Mais provável que quarta, pois já era meio de semana, e tiveram alguns atrasos junto ao médico legista e o fato dele ser doador de órgãos. Rodolfo estava lá, desde a noite anterior (o que me faz acreditar mais ainda que fosse quarta). Marina estava lá. Curiosamente não havíamos combinado de ir... Ambos dissemos que, eventualmente passaríamos por ali, tentar oferecer algum conforto a família do falecido, e, principalmente nosso amigo, que tivera sua festa de aniversário arruinada por tal fatalidade. Ela estava linda de preto, com uma singela beleza que parecia emanar de seu corpo, parecia pulsar de seu corpo... Algo que jamais consegui explicar direito... Quando vi seus olhos por baixo dos óculos escuros... Brilhando tão forte, que parecia realmente ser necessário aquela camada de proteção dos óculos, mas não para ela, e sim para que ela não nos ofuscasse com tamanha luminescência. Me aproximei, a beijei carinhosamente, e, passamos juntos o restante do tempo que ficamos ali, nos abraçando e compartilhando aquele estranho sentimento de culpa de sobrevivente. Poderíamos ser nós, ela disse baixinho, como sussurrara dias atrás. E nos abraçamos mais forte, compartilhando aquele sentimento até o momento derradeiro que partiríamos para encarar um maçante dia de trabalho.
Por algum tempo, quando nos vimos depois dessa ocasião, parecia que havia algo errado, principalmente uns dois ou três meses depois, até quase um ano, quando ela pareceu ‘voltar ao normal’. Não sei exatamente como explicar... Havia algo estranho cada vez que nos encontrávamos. Ela parecia na defensiva, extremamente sensível ou incomodada com alguma coisa. Se tentasse obter alguma resposta, tudo o que conseguia era algo vago, ou acusações que iam de não respeitar seu espaço e privacidade ao ponto de ser chamado de fascista por fazê-lo. No período em que não nos víamos, somente conversando por telefone ou por mensagens, e só assim os ânimos pareciam mais aprazíveis. Confesso que até esse dia ainda não entendo direito o que se passou. Não vejo como TPM ou alguma alteração hormonal qualquer, uma vez que levou um bom tempo para passar, e parece ter passado sozinho, sem que ela tenha feito uso de remédios ou reposições hormonais de qualquer sorte. Quando ela voltou a seu ‘normal’, aquela mulher que eu realmente adorava e queria sempre por perto, nós formalizamos nossa união, passando a morar juntos, em um pequeno apartamento que mais parecia uma república estudantil... Com estudantes jubilados e que deveriam perceber que era hora de seguir em frente. Mas era o que o dinheiro podia pagar, sem que tivéssemos de abrir mão de todo tipo de luxo e eventuais mimos e presentes.
E, claro, ainda passávamos boa parte de nossos tempos com nossas famílias, para muitas refeições, e, obviamente, para lavar e secar a roupa. O apartamento era muito mais um lugar (ruim) para que pudéssemos nos curtir, sem ter de nos preocupar em perturbar nossos pais, ou vizinhos (que, num pardieiro daqueles não era como se a gente se importasse), ou mesmo de nos justificar para qualquer um. O tempo para nós dois. E foi um tempo fantástico. Voltar para casa, mesmo aquela droga de casa, com uma infiltração terrível, sem ventilação alguma para dias quentes, com espaço mínimo na garagem – constantemente usada como vaga de bicicleta dos filhos mal-educados de meu vizinho direto... Enfim, voltar para casa todos os dias sabendo que aquela mulher fantástica estaria lá, me aguardando com um sorriso e um beijo...
Fazia tudo valer a pena.
***
Antes de continuar, acho que se faz necessário um breve espaço para falar sobre minha família. Tenho uma família extensa, devido às origens européias rurais de meus avós, que o deram a idéia de produzir muitos filhos. E são muitos tanto do lado de meu pai quanto do de minha mãe. Com a morte de meu pai, o contato com estes parentes foi diminuindo cada vez mais, até eu não me lembrar a última vez que conversei com qualquer um deles. Com a morte de minha avó, o mesmo aconteceu com os parentes do lado de minha mãe. Então, o cerne de minha família, nestes últimos anos consiste de minha mãe, meu irmão e eu. E, sem querer ser rancoroso ou algo que o valha, meu irmão nunca significou muito pra mim. Nunca foi um irmão, como a definição propriamente dita, e mais um estranho que dividia o mesmo ambiente, e, devido sua personalidade que nunca bateu com a minha, sempre e continuamente foi difícil me relacionar com ele. De minha mãe, eu nunca me permiti pensar em coisas ruins sobre ela – mesmo quando pensava, me recriminava imediatamente – devido a todo o perrengue que ela passou para manter a casa cuidando de mim e de meu irmão, trabalhando em dobro para que a ausência do pai fosse menos sentida... Menos importante.
Gosto muito dela, e, honestamente, de todas as pessoas desse mundo, se algo acontece com ela eu realmente não sei o que faria... Ela e a casa sempre foram portos-seguros para mim, lugares de conforto e segurança, e não consigo me ver num mundo onde ela não estivesse. Nós não somos tão ligados, é verdade... Existem mais coisas que nos diferenciam do que as que nos unem... Nossos gostos são diferentes, nosso humor diferente, nossa forma de ver e interpretar o mundo... E mesmo assim, o laço existente é muito forte pra que qualquer uma dessas coisas importe. Sempre é preciso fazer uma visita, inventar um pretexto para vê-la, mesmo que só pra tomar um café e dar um abraço. Mesmo que não exista algo para se dizer.
Quando apresentei Marina para minha família... Tive reações diversas. E nenhuma muito próxima do que eu poderia esperar.
Meu irmão e sua esposa agiam como se eu nem estivesse ali, perguntando para ela muitas coisas que eu havia mencionado ou falado pouco antes, e minha mãe estava simplesmente intragável, bajulando e paparicando tanto Marina... Chegando ao ponto de durante o jantar perguntar para ela o que via em mim! Ao fim da noite, ela se aproximou de mim e disse algo como “Não deixe essa escapar, porque você certamente não encontra coisa melhor – e nem sei se merece exatamente o que recebeu”, apesar de que não posso garantir pela segunda parte, afinal ela deu uma pequena tossida, e o que eu ouvi foi um grunhido baixo e contínuo que pode ser isso, ou qualquer outra coisa. Eu prefiro acreditar nessa frase, que caracteriza bem o relacionamento que se estabelece entre minha família e Marina. A cada novo jantar, novo encontro, nova festa, ela foi sendo mais e mais paparicada e aceita, o que me deixa numa situação um tanto desconfortável, isolado até.
Quando o oposto se fez, e eu fui conhecer os pais dela, confesso que a apatia também se fez. Seus pais se divorciaram a um bom tempo, então conhecemos um de cada vez, com seus respectivos novos pares, e, nem de longe isso fez com que os climas fossem mais amigáveis. Na verdade o silêncio quase era palpável, formando uma parede entre os extremos da mesa. Nas duas situações. O que mostra que o antigo casal não é tão diferente assim.
Conforme foi passando o tempo, e passamos a morar juntos, cada vez menos eu vi ou visitamos a silenciosa família, e cada vez mais checávamos como estavam as coisas com a minha. Nos últimos doze meses mesmo, acho que só falei uma vez com minha sogra, no dia de seu aniversário, e somente porque Marina estava com ela ao telefone. Não por desgostarmos deles, que fique bem claro, mas não fazia muito sentido ficar naqueles silêncios cada vez mais constrangedores a cada nova visita.
Minto, pois a última vez que falei com minha sogra foi para anunciar que um netinho estava a caminho, e, me deparei com o parabéns mais seco e aparentemente sem vontade que já recebi, e, acredito que a reação com Marina não foi tão diferente, uma vez que depois dessa feita, em momento algum houve menção à mãe dela. Confesso que não sei se Marina ligou para o pai dela... Eu sei que não o fiz, e nem tenho a pretensão de fazê-lo tão cedo... Se depender de mim, no próximo feriado vou com Marina para uma visitinha, sem telefonemas.
Com minha família foi bastante diferente... Uma farra! Um jantar em comemoração e minha mãe fazendo questão de ligar pra cada um dos meus tios para contar, ela mesma a notícia, enquanto eu e Marina estávamos em sua casa, e, muitos deles foram surgindo para nos cumprimentar pessoalmente. Até meu irmão pareceu querer quebrar o gelo, me dando um abraço e tudo mais... Um tanto estranho, é verdade, mas... O sorriso de Marina brilhava, a cada novo parabéns, a cada novo abraço, a cada mimo de meus tios, tias, primos e todos aqueles parentes que há anos eu não via, e que, acabaram por se reunir para ver a mãe da ‘futura criança da casa’.
Aquela imagem dela, ali, sorrindo, e tão sublime... Tão... Me faltam palavras para descrever... Mas aquela imagem ficará pra sempre comigo...
Aquela noite em si, ficará pra sempre na memória.
Assim como o dia em que a radiografia foi feita. Aquele rostinho angelical se formando em pixels e pixels borrados de tons de azul e amarelo e preto... Eu fiquei tão orgulhoso com aquilo que carrego uma das fotos em minha carteira. Deve ser coisa de pai babão, mas para saber com certeza, é preciso que a criança nasça primeiro...
***
Virgilio é meu amigo mais antigo, e talvez o único que eu ainda mantenha contato, revendo de tempos em tempos, e recorrendo a quando surge algum problema, ou quando preciso realmente falar com alguém de confiança. Nos conhecemos desde o colégio, acho até que um pouco de antes disso, no ensino básico, uma vez que estudamos na mesma escola, apesar de que só passamos a conversar e mesmo sermos cúmplices um do outro quando passamos para o ensino médio, num colégio novo, um tanto mais longe, que requeria uma viagem diária da qual compartilhávamos todos os dias. No início eram somente colas, dicas para burlar esse ou aquele professor, mas foi mudando para coisas mais sérias e maduras, conforme o colégio foi passando. Garotas, literatura, o futuro... Dinheiro para viver nesse futuro... Sempre achei bom ter alguém centrado por perto com quem falar, e, por algum motivo, sem que eu fosse qualquer coisa próxima disso, ele se sentia confortável em compartilhar comigo também. É modéstia... Falsa modéstia, de minha parte, com certeza, pois sei que o ajudei a determinar seu ramo para a faculdade, e, tempo após também (sua família queria que ele fizesse engenharia para trabalhar no escritório dos pais – que outrora fora dos avós, e, curiosamente dos bisavós – mas ele preferiu seguir sua própria voz como filósofo – o que o afastou de sua família – seguindo para a graduação, o mestrado, e, agora o doutorado que deve ser apresentado em alguns meses, depois da última revisão e da última incompatibilidade da banca). Ele está bem estabilizado, como professor de filosofia helenística (ou algo muito parecido com isso) numa faculdade paga, e substituindo alguns professores de outras escolas filosóficas.
Sempre que possível, nos encontramos, ao menos uma vez por semana, atualizar sobre o que está acontecendo, tomar uma cerveja. Ele foi a primeira pessoa pra quem falei sobre a gravidez de Marina. Fiz questão de passar em sua sala na faculdade, levando algumas cervejas em uma caixa térmica. Ele, que normalmente é bastante prolixo e falador, com teorias e mais teorias (ou, ao menos citações e mais citações), somente disse “He! Admirável mundo novo”.
Ficamos sentados por uma boa meia hora, bebendo nossas cervejas e conversando sobre o admirável mundo novo para o qual estava me encaminhando. Em breve haveria o casamento, ou melhor, a formalização do mesmo, afinal, o tempo que morávamos juntos já era mais duradouro que muitos casamentos, e, por tal motivo também estava a formalizar que gostaria de ter Virgílio como meu padrinho. Dessa vez, ele ficou sem palavras, e, eu pude perceber o choro que começava a brotar. Nos conhecemos a tanto tempo, mas mesmo assim não se pode esperar certas coisas.
Fora isso, ele é um sujeito bastante reservado, solitário e sempre sozinho. Confesso não saber se ele está com alguém, ou o nome da última mulher que teve em sua vida. Ou, até mesmo se ele prefere o outro lado (apesar de nunca ter parecido).
Ele anda um tanto estressado, graças a banca, ao livro que está pesquisando e coletando material para a eventual publicação da tese, com apêndices e complementação de fotos, comentários de outros literários e mais um bocado de coisas que, bem, demandam muito tempo para quem ainda precisa montar aula, se preparar para eventuais substituições e, bem, todo o restante que lhe ocupava tempo. Pelo menos é o que ele diz... Parece estranho, é verdade, mas acredito nele. É meu amigo mais antigo, e merece um voto de confiança.

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