Olha, eu resolvi numa regra não escrita que eu não comentaria sobre Bebê Rena durante todo o alto da popularidade do seriado ano passado. Não sei se é uma decisão inteligente (talvez porque desde ano passado eu já era uma voz dissonante que não concordava que o material era a combinação de Cristo, Buda e Superman em uma única pessoa), mas eu preferi esperar a poeira baixar para comentar sobre o material e ver onde estaríamos.
E onde estamos? Bem, ninguém mais finge que o seriado foi a melhor coisa produzida depois de Bergman e Kurosawa porque a melhor coisa produzida depois de Bergman e Kurosawa (do momento) é Adolescência, e isso acontecerá até a próxima grande coisa produzida e lançada pela Netflix obscurescendo a anterior até o fim dos tempos (ou da Netflix, o que vier primeiro).
Além de achar esse fenômeno particularmente curioso ao mesmo tempo em que vários projetos muito bons de outros serviços acabam esquecidos e perdidos, eu me esforço ao máximo para manter a imparcialidade ao material principalmente nesse caso em que, e isso é importante, o meu maior problema não é o material. Bizarro, não?
Quer dizer, os atores são muito bons, a direção extremamente competente e o roteiro funciona muito bem. Então qual o problema? Bem, porque isso não é uma mera obra de ficção, isso é baseado em uma história real (que inclusive a pessoa retratada como uma psicopata maluca no seriado entrou com um processo contra a Netflix). Então vamos deixar bem claro, cartas na mesa, o meu maior problema com o material: É uma história de separação narrada por uma das partes de um relacionamento (e baseada em fatos reais).
Não tem como isso ser honesto e objetivo, com isso o material busca apenas validação ao autor e, o grande problema é que sendo subjetivo vai retratar mesmo que inconsciente, uma das partes de maneira mais favorável que a outra, o que acaba criando uma falsa narrativa em que quem escreve a história é a vítima de um relacionamento terrível enquanto a outra parte é um monstro psicótico sem coração.
Isso pode funcionar, e funcionaria perfeitamente bem, se estabelecesse desde o começo que é mera obra de ficção, como tantos outros materiais ficcionais que tem um contexto razoavelmente familiar e real, desde Shogun, The Office, Plantão Médico ou Demolidor (ei, a Cozinha do Inferno é tradicionalmente o lar de irlandeses, e lá estão alguns dos melhores advogados cegos que combatem o crime lutando com ninjas de todos os Estados Unidos). Como é, bem, temos sempre que olhar com um pouco de desconfiança.
Narradores confiáveis dificilmente são confiáveis quando precisam ser francos e honestos para narrar de maneira fidedigna - porque é algo da natureza humana - e principalmente numa situação de conflito é extremamente natural que uma das partes tente pintar a outra como um monstro psicótico e sem coração enquanto pinta a si próprio como uma vítima de sua própria nobreza e escolhas generosas.
E no fim das contas não importa o quanto os atores sejam bons e talentosos, o quanto os diretores competentes e os roteiros bem escritos... Remete ao fato de que os eventos são baseados em fatos reais (ou até que essa é uma história real - e não uma "história real" como Fargo), e não importa muito o quanto você tente ou se esforce para analisar de outra forma porque a realidade é que o filme é parcial e retrata pessoas de maneira parcial.
Parece um pouco com aquela situação de How I Met Your Mother, em que é produzido um filme sobre um dos relacionamentos do protagonista Ted e ele é retratado de maneira, vamos dizer o mínimo, bem pouco favorável. No contexto do show, conhecemos Ted e vemos sua perspectiva da história (mesmo ele narrando a si próprio como o herói) e conseguimos absorver e contextualizar e mesmo recontextualizar que Ted pode exagerar e mentir em vários momentos da história para distorcer fatos.
Tá, eu sei que tem gente virando o nariz porque eu comentei sobre uma comédia (que envelheceu mal pra caramba mesmo enquanto era produzida), mas se você quiser um retrato mais cru e visceral de relacionamento(s) abusivo(s) e tóxico(s), outros materiais já fizeram isso de maneira estelar como I may destroy you de 2020, e, o argumento se mantém de que não é dito em momento algum que é baseado em uma história real (na verdade tem a mesma frase mágica de que qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência).
Bebê Rena não faz isso.
Os eventos são retratados como 'fatos' e isso oferece ao narrador sua voz como verdadeira e o coloca como uma pobre vítima de sua própria nobreza e escolhas generosas enquanto sua ex é um monstro psicótico e sem coração...
Eu prefiro um pouco mais de distanciamento numa ficção para aceitar sua narrativa, senão, pra mim a subjetividade do autor pode nublar escolhas e tornar um mero exercício masturbatório para lustrar o próprio ego.
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