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19 de janeiro de 2023

{Resenhas de Quinta} O Cavaleiro da (Idade) das Trevas

Além da diferença de 10 anos entre O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e Flex Mentallo de Grant Morrison, as duas séries tem uma enormidade de grandes mudanças no cenário de quadrinhos como um todo mas também se deve entre outras coisas na estrutura e ao ponto em que é bem possível dizer que elas tem mais diferenças que similaridades.

E é verdade. Miller busca um pseudo-realismo com uma realidade crua e visceral num mundo em que o reaça das trevas retorna, digo, Cavaleiro das Trevas retorna depois de uma década aposentado e enfrenta uma sociedade preguiçosa e liberal que espera de mãos beijadas que tudo se resolva sozinho. Morrison não tem qualquer pretensão de crítica social mais abrangente, e sim um foco na indústria dos quadrinhos como um todo e tenta a seu modo ilustrar em cada capítulo uma das pretensas eras dos quadrinhos, enquanto curiosamente produz uma jornada mais pessoal e intimista - e nisso mais crua e visceral.

Enquanto Miller precisa forçar um mundo visceral com crianças se drogando e travestis nazistas assaltando lojas com metralhadoras de uso militar para criar um tom de violência extrema e sem saída em que somente a força do caráter do Batman (ou de alguém como ele) seria capaz de quebrar as barreiras e ser uma influência positiva no mundo, Morrison opera em camadas mais sutis, o que já uma diferença enorme para o trabalho de Miller nesse ponto em sua carreira.

Nesse ponto na carreira de Miller sutileza é uma palavra que parece mais e mais esquecida do autor (o que é bastante curioso quando alguns de seus trabalhos mais singulares como Demolidor A Queda de Murdock ou Batman Ano Um dependem justamente das nuances - mas O Cavaleiro das Trevas vendeu melhor e recebeu maior destaque da mídia, então veio Sin City e um Miller que só fazia esse tipo de história - inclusive quando dirigiu Spirit de Will Einser). E enquanto O Cavaleiro das Trevas é categoricamente superior aos trabalhos seguintes de Miller nas próximas quatro décadas, ele é a gênese da qual todos os demais são derivados, seguindo aquele modelo de uma crítica social que deturpa e exagera as situações para que se chegue às conclusões desejadas - e portanto reforce seu ponto.

A Gotham futurista com gangues de adolescentes mutantes precisa do Batman - da mesma forma que a Gotham não futurista com palhaços maníacos e assassinos deformados com moedas marcadas - e ele é a única saída. Não existe solução de reforma política, policial ou social ou como a obra demonstra em seu curso, sequer alternativa. E, por mais que seja um dos trabalhos de melhor qualidade de Miller - e um do qual o eu de quinze anos delirava ao ler - o material parece exatamente voltado para o garoto de quinze anos que busca respostas fáceis e não um material rico e complexo para ler.

De novo, não existem soluções ou alternativas que a narrativa enxergue. Somente a força de um homem (bilionário e idoso) que vai socar o crime na fuça, no que todo problema existe somente no contexto em que Batman pode ser a solução. O crime é rompante em Gotham, mas qual crime vemos? Corrupção e manipulação do mercado da bolsa de valores? Não, guris que sequestram crianças para usar o dinheiro do resgate para comprar drogas ou cafetões cortando garotas de programa ou bandos de adolescentes ameaçando estuprar idosas... Crimes caricatos ou escalonados e exagerados (geralmente o tipo de coisa que veríamos na Fox News ou aqui no Brasil na Jovem Klan, digo, Jovem Pan) mas crimes que um homem bem posicionado pode prevenir de escalonar, e, mais que isso, punir corporalmente (de forma catártica ao leitor/espectador) os malfeitores.

Só que isso não faz muito sentido, não é verdade? Como o Batman saberia que tal (ou tais) crime(s) está por ocorrer conforme ele ronda a cidade? Seu "sentido de crime" o avisa? Tudo isso é a grama ideal para o reaça que tenta e se justifica na visão que somente sendo duro ao crime se reduziria a criminalidade. Claro, numa ficção que nos mostra o crime em cada esquina e um idoso fora de forma que ainda assim é capaz de derrotar centenas sozinho em combate e que sempre o mostrará vencendo (e se recuperando), de fato faz sentido. Só é perigoso confundir a falácia e a ficção com qualquer tom de realidade.

Mais até que isso, existe toda a tensão e escalonamento que se coincide - a tensão em Corto Maltese que coincide com a cirurgia de Harvey Dent ou a base militar que tem clientes da Mulher Gato e que está vendendo armas para criminosos ou o retorno do Coringa (que por algum motivo é escalado para um talk show?) - tudo para dar mais visibilidade e palco para o morcegão, e tudo para formar uma experiência catártica em que esse homem, esse grande homem, líder e maior que todos nós possa lutar e vencer sozinho todos os males do mundo.

É quase um western quando encaramos bem. E essa é a questão, no western é sempre necessário um mal pungente e tangível para que o herói (ou em alguns casos - e nesse inclusive - o anti-herói) triunfe.

Morrison produz de certa forma concorrente um western também, mas um western mais ao modo de El
Topo de Jodorowsky, numa condição mais metafísica, desconstruindo essa visão toda do herói supremo que é a única voz coerente num mundo insano.

Flex claramente é incapaz de resolver os problemas do mundo. Droga, ele é incapaz de resolver QUALQUER problema (por mais que seus músculos do mistério possam flexionar e produzir efeitos diversos), mas ele não é de forma alguma o protagonista, por mais que a série tenha seu nome. Ele é um veículo pelo qual a narrativa se conduz, explora e expande se adaptando para o que a história precisa, no momento em que é necessário (mais ou menos como a Gotham de Miller).

Mentallo procura um vilão (que pode ou não existir) enquanto o fim do mundo é iminente, no entanto ele sabe que é um personagem ficcional de uma outra realidade, e seu criador (que é o protagonista e de certa forma o narrador) expõe sua vida e vísceras, conforme ele tenta dar sentido ao mundo enquanto contempla o suicídio (após consumir uma dose cavalar de drogas e pílulas - ou seriam M & Ms?). Wally, o criador e Mentallo e avatar de Grant Morrison (ou ao menos de uma parte de Morrison) expõe ali seus medos, suas frustrações e sua visão de mundo, e ele explica o mundo em que estão, enquanto busca uma lógica para esse mundo através de auto análise, até porque fica bem claro em todo o progresso o quanto dessa realidade é reflexo da vida e experiências do autor.

Entende a diferença agora?

Morrison admite através de seu avatar Wally Sage que o mundo de Flex não é mais ou menos coerente e sim subjetivo e uma expressão da visão do autor para justificar sua narrativa. Por isso é relativo e relativista sobre o que acontece na história e o que o autor quer dizer com ela - e isso é a mesma coisa com Miller em seu Batman, só que com Miller é mais como um brinquedo para justificar as fantasias de sua direita maluca através do veículo ou do brinquedo, enquanto com Morrison, Flex ou Wally não são soluções ou justificativa para coisa alguma, mas veículos para explicar o que se passa na cabeça do autor e como ele se sente e vê o mundo.

Flex Mentallo não enfrenta crime ou não um crime da forma como perceberíamos em Batman. São terroristas da realidade ou monstros com pedras análogas à kryptonita, e Wally Sage não é uma versão ou visão idealista de qualquer coisa. Existem diversos momentos da narrativa que mostra Wally em momentos terríveis de sua vida (se drogando em um banheiro ao lado de uma prostituta - inclusive fazendo menção/alusão a ele próprio se vendendo por alguma dose).

O mundo criado por Morrison é o de uma experiência lisérgica que expande e não tenta se justificar. Só é o que é, e, as conclusões (se existem ou são possíveis) cabem somente ao leitor.

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