Voltando ao assunto da venda de quadrinhos, essa semana vamos focar em algo um pouco fora da indústria convencional de quadrinhos e enquadrar o escopo maior geral, e entrar num debate mais sério e complexo: Afinal de contas o que diferencia os quadrinhos de literatura...?
Para alguns literários puristas, a visão de livros e a literatura somente é composta por obras que elevem o espírito humano e a arte de alguma forma são e podem pertencer ao seleto, restrito e restritivo grupo dos escolhidos (enquanto levantam o mindinho para mexer a colher de açúcar de seu chá de hibisco com leite de amêndoas), a verdade é que isso é uma visão bastante limitada e, honestamente, estúpida.
Existe um certo esnobismo com relação aos quadrinhos como uma forma inferior - sabe, tem figuras, por isso é mais simplório e para um público menos intelectualizado - e por conseguinte formou-se assumpções similares para outros gêneros como o infanto-juvenil, de ficção científica e a lista segue. Eu até concordo que biografia (e principalmente as auto-biografias) não sejam exatamente literatura ou tenham valor literário, afinal são na melhor das hipóteses jornalismo, mas é um esnobismo e preconceito da minha parte da mesma forma que de quem enxerga uma literatura clássica e elevada com relação aos quadrinhos e etcs.
Por décadas autores como Will Eisner trabalharam pesado para reverter essa visão e com obras como Um Contrato com Deus, Avenida Dropsie e basicamente do conceito de quadrinhos mais elevados com as graphic novels em 1978 (que a Europa já produzia com Tintim de 1929, Asterix de 1961 e Corto Maltese de 1967, mas, ei, pro mercado americano foi uma forma revolucionária de monetizar) e tirar muito do estigma do gênero e até mesmo elevá-lo ao mesmo status de arte. Outros autores seguiram direta ou indiretamente no mesmo caminho e com o reconhecimento de premiações pelo mundo todo para Alan Moore com seu Watchmen e Neil Gaiman por seu Sandman vários dos estigmas e estereótipos foram caindo por terra com o passar dos anos. Claro, ainda continuamos a ver quadrinhos idiotas do Deadpool caçando ex-presidentes americanos zumbis, mas ao mesmo tempo as portas para autores sérios e com propostas inteligentes também se abriu. Jeff Lemire e seu Condado de Essex ou o Soldador Subaquático, Terry Moore e os Estranhos no Paraíso ou Rachel Rising e claro o espetacular Chris Ware e da ACME Novelty Library e Jimmy Corrigan.
As publicações chegaram às livrarias em capa dura e formatos caprichados, numa tentativa de exalar a mais pura e elevada arte enquanto autores buscam e tentam efetivamente entender o que diabos isso significa.
Até porque nunca existiu uma 'literatura elevada' como se imagina ou supõe, o que acontece é que alguns livros sobreviveram ao teste do tempo - seja porque foram produzidos em massa a partir de Gutenberg ou porque tiveram maior apelo popular e até mesmo ressonância com o passar dos tempos. Droga, não é nem de se duvidar que numa estrutura em que somente fidalgos e pessoas com posses conseguiriam se dedicar à produção literária, que trabalhos vistos como 'menores' (de novo, o esnobismo) não passariam os crivos necessários para as prensas e publicação.
Dom Quixote continua atual mais de quatrocentos anos depois, no entanto algumas obras bem mais recentes envelheceram mal - nem sei se é necessário comentar sobre a transfobia de J K Rowling quando a simples invenção de smartphones torna o mundo de Harry Potter mais difícil de viver e navegar, não é mesmo? - mas francamente, alguns nomes que eram sinônimo de enorme qualidade alguns anos atrás como Jonathan Franzen (do espetacular As Correções) mal são lembrados hoje em dia. Droga, mesmo o recém vencedor do Prêmio Nobel de literatura Kazuo Ishiguro foi desmembrado em críticas de seu livro mais recente (após o prêmio).
Isso é fato porque, e é importante, escritores querem contar histórias acima de qualquer outra coisa. Talvez essas histórias se tornem atemporais (e obviamente é o que todos almejam) e talvez estes autores consigam transcender sua arte e galgar um lugar de honra para mudar os alicerces e fundações de toda a arte. Talvez só recebam um cheque razoavelmente satisfatório e consigam se aposentar com os direitos autorais, e, quem sabe, consigam o direito de adaptação para cinema ou tv (cruze os dedos, quem sabe?). A arte literária tem seu aspecto comercial e enquanto existe uma vertente mais purista que trilha em melhorar o artificie, tem gente que busca ganhar um quinhão com todo clichê disponível na cartilha (ei, John Green é bem mais famoso que Murakami, só dizendo).
O que inclusive leva à pergunta, mas afinal, os livros vendem assim tão bem?
E a resposta não é exatamente animadora. Uma reportagem da Veja apontou que em 2021, com um recorde de vendas pelo SNEL (Sindicato Nacional de Editores de Livros), o setor apontou vender 55 milhões de livros naquele ano. Não são números baixos, é verdade, ainda que a informação precise de maior detalhamento e contextualização. Segundo o IBGE o Brasil tem mais de 215 milhões de habitantes, o que, em números brutos, significaria um livro para cada 3,9 pessoa foi vendido em todo o Brasil em 2021 (o que já torna o cenário bastante baixo). Quando levamos em conta que algumas poucas pessoas compraram bem mais exemplares (digamos alguém que comprou um livro por mês por exemplo), essa única pessoa já corresponde a quase CINQUENTA pessoas (tá, 46,8), mas, e aqui talvez entre o ponto mais problemático da informação, não existe nenhum detalhamento dos livros comercializados se neles estão inclusos livros acadêmicos e escolares (o que tornaria os números mais inflados com a literatura e material acadêmico misturado e diluído no mesmo barco).
E vale lembrar, essa estimativa do SNEL não necessariamente exclui os quadrinhos vendidos pela Panini, Pipoca e Nanquim e tantas outras também, tá.
Os quadrinhos, pelas estimativas não oficiais que são divulgadas, vendem entre 10 e 15 mil exemplares por mês, com alguns títulos superando isso (esses são números somente do Brasil, a Diamond aponta para uma média de 60 mil exemplares para Batman que é a linha de referência mais estável). São números menores que os 55 milhões de livros, é verdade, mas são 10 mil cópias de uma edição, enquanto os 55 milhões estão em todos os livros comercializados e tabelados pela SNEL.
Isso mostra que os números de exemplares de livros não são particularmente altos também, o que faz muito sentido quando analisamos a coisa toda de uma perspectiva mais geral.
Um livro ou uma hq são relativamente caros em termos de produção (dependem da gráfica, da impressão e papel, tradução, revisão e etcs), enquanto, digamos uma série ou filme num serviço de streaming, depende somente da qualidade de banda disponível. Os custos estão atrelados à produção (é caro a locação e o cachê dos atores), mas depois de pronto? É possível faturar por décadas com esse material por um preço baixíssimo de manutenção de servidores (que se pagam com serviços de assinatura e pacotes promocionais). Você pode assistir nesse exato momento a E o Vento Levou ou O Mágico de Oz na HBO Max, mas para ler um material ou você compra a cópia física ou torce que esteja disponível em alguma versão virtual - que, inclusive, é algo que as editoras estão queimando toda a pestana para tentar encontrar um caminho para lucrar com isso, mas fica bem claro que quem lucra mais é quem administra os acervos do que quem produz os livros (A Amazon com serviços de assinatura ganha bem com o Kindle, mas a Companhia das Letras ou a DC do que vale? Centavos se alguma coisa... Mas ajuda com publicação de acervo).
Com livros, toda edição terá seus custos base de produção - e, com inflação e preço do papel e não só ele disparando, esses custos aumentam consideravelmente - e não obstante revisões para versões posteriores agregarão custos extras, mesmo que os custos tenham caído exponencialmente com a melhora de processos gráficos do início do século passado e de antes disso. Isso ainda é caro, e, os gestores do mercado sabem que o produto vende pouco para um nicho de clientes.
Por isso é algo produzido com acabamento de luxo numa excessiva gourmetização (sabe, Pinóquio em 'capa de madeira' ou coisa do tipo) que veio tirando o espaço dos livros de bolso e versões mais acessíveis para material em capa dura, com verniz e todo tipo de condição que nada acrescenta ao material além do preço (e o lucro ao fornecedor). Mas se a condição mais otimista que você tem é de que 1 em cada 4 pessoas compraram 1 livro durante um ano inteiro, é visível que o mercado não vai particularmente bem para esse tipo de material.
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