Essa é uma pergunta bastante comum (inclusive aparecendo no ótimo seriado do James Gunn, Pacificador), típica e repetida exaustivamente quando alguém, geralmente que não entende muito de quadrinhos ou quer oferecer uma visão mais 'polêmica' e 'realista' (e na verdade 'política', com toques de 'direita', mas mais sobre isso nos próximos parágrafos), e farei meu esforço máximo para explicar, bem, os motivos, começando com...
1) Porque é estúpido
Eu acho que esse é um motivo bastante válido e que basicamente explica a coisa toda, mas, eu só vou deixar como um dos motivos. Mas veja bem, as regras dos universos de quadrinhos - inclusive nos cinemas - são bastante voláteis e abrangentes. Viagens no tempo, clones, atores ou robôs se passando pelas pessoas reais... Isso sem falar daqueles que literalmente voltam da morte a todo e qualquer momento, seja com poderes mágicos ou místicos (aliados por pedras do infinito, esferas do dragão ou worlogogs), pseudociência digna de cientistas ultramalucos (com direito a monstros zumbi) e claro e obviamente retcons e mudanças na continuidade para fingir que foi só um mal entendido (e um tiro na fuça ou ser perfurado no tórax por lâminas que o suspenderam foi algo apenas de raspão).
Droga, eu já perdi as contas de quantos personagens já morreram e voltaram à vida nos quadrinhos das maneiras mais idiotas, convolutas e bizarras - incluindo o anti-herói Justiceiro que é 'urbano e pé-no-chão' mas já foi um anjo (sim) e um monstro de Frankenstein (exato)...
Além disso, vamos ser honestos sobre o aspecto bastante prático disso por um instante somente. O Coringa é um vilão mais popular que algumas editoras dos EUA (tipo a Dark Horse ou a Image), então matar a galinha dos ovos de ouro para uma história...? Você SABE que ele voltaria dali duas semanas como se fosse só um arranhão.
Ou surgiria o 'Novo' Coringa com algum estilo diferenciado e mais "ousado", "alinhado aos novos tempos" e outros clichês de marketing.
2) Porque não é função do Batman
Essa exige um pouco mais de explicação, talvez até destrinchando o que é o Batman, qual sua função e porque ele existe.
E o Batman existe de maneira geral porque um garoto viu seus pais sendo assassinados e isso o traumatizou profundamente e para o resto da vida, levando ele a fazer um juramento que se esforçaria ao máximo para impedir que o que aconteceu com ele (todo esse trauma ocasionado pelo crime) ocorresse com outros.
Isso inclusive é o que o leva a acolher órfãos - geralmente eles próprios que tiveram experiências traumáticas.
O garoto que viu os pais assassinados resolve então agir para garantir que o crime não fosse uma força irrefreável e que a justiça recebesse uma mãozinha para funcionar adequadamente. Surge Batman, o cruzado encapuzado com o propósito de servir a justiça.
Batman não é um cargo ou uma carreira no serviço policial ou judiciário, mas algo como um óleo para garantir que as engrenagens funcionem adequadamente, e é justamente fazendo o sistema funcionar adequadamente - derrubando a máfia em Gotham City, policiais, juízes e outros servidores públicos corruptos da cidade - que o personagem consegue ganhar a confiança dos bons e honestos da cidade, através de James Gordon (com sua ascensão meteórica na organização policial, justamente aliada a atuação do vigilante).
Sua função, de maneira bem geral, é garantir que o sistema funcione adequadamente para que os criminosos paguem pelos seus crimes e os justos possam viver em paz. E deixemos bem claro...
3) Porque o sistema jurídico não funciona assim
Certo, vamos colocar alguns pingos nos is antes que surja alguma confusão por parte de calhordas que fazem dancinhas de cpfs cancelados e coisa do tipo: A polícia não existe para matar bandidos.
Não é a função da polícia - nem nunca foi - mesmo onde existe a pena de morte.
Mesmo nos casos de pena de morte, ela é decretada após um julgamento (ou nos casos de regimes totalitários, definida por líderes com motivações políticas, mas não vamos focar nesse ponto aqui) e NÃO É FUNÇÃO DA POLÍCIA, existe todo um aparato jurídico para a promulgação da pena.
Deixemos claro que o sistema jurídico tende obviamente a ser leniente com policiais cumprindo seu dever - até porque pelo aparato jurídico em virtude da fé pública oferecida aos agentes da lei, eles tem precedente no cumprimento da lei. MESMO que exista (ou ao menos deveria existir) uma contabilidade e fiscalização interna de cada bala disparada.
Não é a polícia quem deve decidir a pena de morte, e sim o sistema jurídico. Então a verdadeira pergunta é 'Porque os tribunais não condenam o Coringa à pena de Morte?'.
Claro que, de novo, num viés conservador de direita surge aquela resposta/bravata para atacar os juízes liberais de coração mole que aceitariam a justificativa de insanidade (para um sujeito com uma gigantesca ficha corrida), mas isso é porque...
4) Esse é um (pobre) argumento político
Essa pergunta, desde sua estrutura (que ignora que não é função do Batman matar o Coringa ao mesmo tempo que os juízes não condenam o personagem à cadeira elétrica) tem um viés político bastante latente, e, pobre.
Considerando o viés do universo de quadrinhos, além do fato que a narrativa da pergunta ignora a possibilidade de redenção e reabilitação do vilão (ainda que ele seja uma versão mais perversa que qualquer assassino - ou mesmo centenas deles combinados - da história), assim como diversas de outras penas alternativas que um universo fictício facilmente poderia implementar. Desde as prisões de universos alternativos como a Zona Fantasma e miniaturizados, até soluções mágicas e absurdas (como transformar o vilão num objeto inanimado), e isso sem falar em outras vertentes mais criativas e igualmente mais expansivas (prendê-lo a uma máquina de realidade virtual onde realiza suas fantasias sádicas perpetuamente, voltar no tempo antes que ele se torne o vilão, transformá-lo num sapo que só voltaria a ser um homem quando se arrependesse definitivamente de seus crimes).
Então porque matar é uma solução (ou talvez a única solução)?
Porque é um debate pobre como o mesmo que é conduzido na Marvel sobre o anti-herói Justiceiro e o Demolidor. É um debate pobre que tenta justificar que a solução para o crime é um homem armado, que esse homem armado SEMPRE acabará com os negros e latin... desculpe, com os bandidos.
É só coincidência que esses bandidos sejam em sua maioria negros e latinos, não tem nada a ver com racismo e supremacistas brancos idolatrando anti-heróis como o Justiceiro, não, não... COINCIDÊNCIA.
Mas, porque esse debate é pobre, afinal? Não parece lógico que reduzir criminosos reduziria o crime...?
Na verdade parece um argumento redutivo que ignora toda uma sorte de fatos somente para concentrar em elementos que PARECEM coerentes.
E podemos falar sobre como alguns países com leis mais liberais - como a Holanda com legalização de drogas e prostituição, assim como melhor distribuição de renda no geral - tem índices menores de crime que, bem, países com uma polícia geralmente mais violenta que "atira primeiro e faz perguntas depois" e ainda assim prisões superlotadas. Ou que a legalização do aborto e mudanças nas leis de adoção fizeram mais para a redução da criminalidade (fato apontado por pesquisa científica e divulgado no livro Freakonomics) do que, bem, toda a ação policial da história.
Só que é mais simples que isso. O morto não tem como depor, né?
É muito fácil para o "sobrevivente" vender uma narrativa engrandecedora de suas ações para sair como herói ao final enquanto claramente o falecido é o vilão e terrível monstro que mereceu ser abatido para que o restante da população encontre paz (mesmo que semana que vem um novo, e talvez pior monstro surja).
5) E sempre vai haver um bicho-papão...
Sempre tem um bicho-papão claro e fácil para esse tipo de estratagema político, e, curiosamente sempre tem uma solução fácil, né? Seja o jagunço serial killer que surgiu e elevou os gastos policiais em uma corrida desesperada e contra o tempo para silenciá-lo, digo, exterminar sua ameaça terrível, seja o maníaco do parque, ou a constante guerra às drogas.
Sempre existe um bicho-papão e sempre existe uma solução fácil para detê-lo, não? É só puxar o gatilho e o bicho-papão não fará mal para mais ninguém, não é mesmo.
Mas a empresa de seguros precisa vender apólices, o fabricante de armas precisa vender cartuchos e novos artefatos para 'proteger' sua família. Então surgirá um novo bicho-papão. E um outro. E um outro.
Batman mata o Coringa e logo o grande problema é o Duas-Caras. Porque o Batman não mata o Duas-Caras, afinal? Toda vítima futura do Duas-Caras é responsabilidade do Batman!
Batman mata o Duas-Caras e logo o grande problema é o Espantalho. E então Bane. E a Hera Venenosa. E o Homem-Pipa...
E quando finalmente haverá uma solução? Quando Batman se tornará o Bicho Papão que está matando toda essa gente maligna?
Quando ele olhará para o abismo e o abismo olhará de volta?
Nenhum comentário:
Postar um comentário