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15 de outubro de 2016

{EDITORIAL} E daí que Bob Dylan ganhou um Nobel?

Ouvi uma série de pessoas questionarem a legitimidade do prêmio Nobel de literatura de 2016 para o cantor/compositor/lenda urbana Bob Dylan, e, confesso que não compreendo o assombro em grande parte.
Mas até aí eu sou alguém que gosta do brilhante Blood on the tracks (de 1975, capa ao lado) assim como o genial Highway 61 Revisited (de 1965) e, claro, o Infidels (de 1983, que é o álbum com Jokerman, que, após muita deliberação e análise é minha música favorita dele), e pra quem conhece a bagagem do cantor não é preciso explicações além disso (sério, ouça Jokerman e me diga que está aquém do lirismo de qualquer Neruda!).

Para qualquer pessoa que se chocou, vamos lembrar que não é nem de longe um absurdo como se o premiado fosse um David Lee Roth ou Fred Durst (intragável compositor e vocalista do Limp Bizkit) eu realmente ficaria chocado. Mesmo fora do cenário musical, se a Kéfera ganhasse eu acho que rasgava meu diploma, carteira profissional e partia para um sanatório até nunca mais... Mas Dylan? Dylan revolucionou a música e representa ainda a maior voz do século XX.
Se o choque se dá por achar que ele é só um músico, bem, só é preciso olhar a trajetória dele...

Dylan é uma figura tão complexa e contraditória que para retratar sua vida na cinebiografia "I'm not there" (2007, aqui ficou como 'Não estou lá', tradução literal que omite o fato que o título é um aforismo à música de mesmo nome) foram usados seis atores diferentes (incluindo uma criança negra e uma mulher) para retratar o cantor passando por diversos momentos e fases da carreira, vida e lendas urbanas que envolvem sua persona.
Sim, sua voz esganiçada que nunca foi bonita (nem quando ele tinha seus vinte anos) e que não passaria na primeira fase ou peneira do The Voice ou qualquer outro reality show genérico que escolhe uma nova 'sensação musical', representa em sua imperfeição a primeira grande provocação de seu trabalho.
Dylan questiona o convencional, questiona os padrões e parâmetros, com isso questionando nossa ocasionais músicas natalinas vergonhosas a parte). E francamente? Ele nunca se importou muito em fazer papel de ridículo contanto que fizesse o que achava o melhor. Fosse abandonar as canções folk de protesto e adicionar quantas guitarras distorcidas fosse possível em sua turnê com o Grateful Dead, fosse abandonando a herança judia e se convertendo ao cristianismo no início da década de 80 ou seu período ermitão, ou bem, qualquer outro de sua vida e carreira.
sociedade (de que vale a voz bonita se a canção é vazia?), e o fez de início com suas canções de protesto, expandindo para canções mais complexas e temas mais abrangentes, provocando uma constante evolução e revolução. Dylan inventa e reinventa sua sonoridade e poesia ainda hoje, quando poderia aproveitar sossegadamente e apenas colher os louros de sua longeva e bem sucedida carreira.
Sobre suas canções, bem, ele já foi regravado por praticamente todo mundo... TODO mundo.
De Raul Seixas a Liza Minelli (sim, ela gravou Ring them bells que, particularmente Surfjan Stevens arrasa em sua versão para o filme já mencionado 'I'm not there'), passando por Guns'n'Roses, Jimmi Hendrix e mais dezenas e dezenas de outros.

Dylan sempre foi um compositor brilhante e que deixa no chinelo muito escritor tarimbado que GANHOU o Nobel em ocasiões passadas (Umberto Eco que me desculpe).
Então o choque reside na condição da mídia? Da estrutura e condição da figura narrativa - só é digno aquele que se volta às letras na forma de livros, e, não obstante impressos!
Se esse é o motivo do choque, bem, aí eu vejo uma condição bastante inteligente em encontrar uma solução elegante para o dilema constrito em reconhecer o talento literário, em não restringir o literário à forma e desta maneira abranger maior terreno.
Quem sabe como futuras gerações estarão por se comunicar, e que formas e estruturas terão a narrativa, poesia e o contar de histórias? Então porque limitar a noção de 'literatura' a uma condição estrutural e específica de 'apenas aquilo publicado e constrito sob a forma de um livro'?

A literatura tem mais com a arte que com a forma. Tem mais com a liberdade na condição que com a constrição do meio. Não é química (que curiosamente é uma ciência bem mais maleável se mesclando com física e biologia trazendo uma série de laureados também especialistas nestas áreas).
E verdade seja dita, melhor reconhecer tardiamente um talento único como o de Dylan (algo negado a gênios como Borges ou Casares) e, quiçá assim se permitir a liberdade para futuramente cogitar nomes como de Alan Moore, Neil Gaiman ou outros futuros gurus da indústria dos quadrinhos (que tradicionalmente também não são vistos como 'literatura').

Se qualquer coisa, é um passo no caminho certo, afinal, os tempos estão mudando...

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