Roberto Bolaño (1953-2003) |
Vejam como são as coisas: Mauricio Silva, vulgo o Olho,sempre tentou escapar da violência, mesmo com o risco de ser considerado covarde, mas da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinqüenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende.
O caso do Olho é paradigmático e exemplar, e talvez não seja inútil recordá-lo, sobretudo quando já se passaram tantos anos.
Em janeiro de 1974, quatro meses depois do golpe de Estado, o Olho Silva foi embora do Chile. Primeiro esteve em Buenos Aires, depois os maus ventos que sopravam na república vizinha o levaram para o México, onde morou um par de anos e onde eu o conheci.
Não era como a maioria dos chilenos que, na época, viviam no df¹: não se vangloriava de ter participado de uma resistência mais fantasmática do que real, não frequentava o círculo dos exilados.
Ficamos amigos e costumávamos nos encontrar ao menos uma vez por semana no café La Habana, na Bucareli, ou na minha casa na rua Versalles, onde eu morava com minha mãe e minha irmã. Nos primeiros meses, Olho Silva sobreviveu na base de bicos esporádicos e precários, depois conseguiu trabalho como fotógrafo de um jornal do df. Não me lembro que jornal era, talvez El Sol, se é que um dia existiu no México um jornal com esse nome, talvez El Universal, eu preferiria que fosse El Nacional, cujo suplemento cultural era dirigido pelo velho poeta espanhol Juan Rejano, mas no El Nacional não foi porque trabalhei lá e nunca vi o Olho na redação. Mas ele trabalhou num jornal mexicano, disso não há a menor dúvida, e sua situação econômica melhorou, de início imperceptivelmente, porque o Olho tinha se acostumado a viver de forma espartana, mas se você apurasse o olhar poderia perceber sinais inequívocos que falavam de uma melhoria econômica.
Durante os primeiros meses no df, por exemplo, eu me lembro dele usando um moletom. Nos últimos, já tinha comprado um par de camisas e uma vez até cheguei a vê-lo de gravata, um acessório que a gente, quer dizer, meus amigos poetas e eu, não usávamos nunca. De fato, o único personagem engravatado que alguma vez sentou em nossa mesa no café La Habana foi o Olho.
Naqueles dias, dizia-se que o Olho Silva era homossexual.
Quero dizer: nos círculos de exilados chilenos corria o boato, em parte como manifestação da maledicência, em parte como uma nova fofoca que alimentava a vida bastante chata dos exilados, gente de esquerda que pensava, em todo caso da cintura para baixo, exatamente como a gente de direita que naquele tempo se apoderava do Chile.
Uma vez o Olho foi comer lá em casa. Minha mãe gostava dele e o Olho correspondia ao carinho tirando de vez em quando fotos da família, isto é, da minha mãe, da minha irmã, de alguma amiga da minha mãe e de mim. Todo mundo gosta de ser fotografado, ele me disse uma vez. Para mim tanto fazia, ou era o que eu acreditava, mas quando o Olho disse aquilo fiquei pensando um momento nas suas palavras e acabei lhe dando razão. Só alguns índios não gostam de fotos, ele disse. Minha mãe achou que o Olho estava falando dos mapuches, mas na realidade falava dos naturais da Índia, daquela Índia que ia ser tão importante para ele no futuro.
Uma noite eu o encontrei no café La Habana. Quase não havia fregueses e o Olho estava sentado junto das vidraças que davam para a Bucareli, com um café com leite servido no copo, aqueles copos grandes de vidro grosso que o La Habana tinha e que nunca mais tornei a ver num estabelecimento público. Sentei-me com ele e ficamos um tempo conversando. Parecia translúcido.
Foi essa a impressão que tive. O Olho parecia de cristal, e sua cara e o copo de vidro do seu café com leite pareciam trocar sinais, como se acabassem de se encontrar, dois fenômenos incompreensíveis no vasto universo, e tentaram com mais vontade do que esperança achar uma linguagem comum.
Naquela noite me confessou que era homossexual, tal como propagavam os exilados, e que ia embora do México. Por um instante, acreditei entender que partia por ser homossexual. Mas não, um amigo tinha lhe arranjado trabalho numa agência de fotografia de Paris e isso era uma coisa com que ele sempre tinha sonhado. Estava com vontade de falar e eu o escutei. Disse que durante alguns anos tinha exercido — com pesar?, discrição?— sua inclinação sexual, principalmente porque se considerava de esquerda e os companheiros viam com certo preconceito os homossexuais.
Falamos da palavra invertido (hoje em desuso), que atraía como um ímã paisagens desoladas, e do termo veado, que eu escrevia com e, e que o Olho achava que se escrevia com i. Lembro-me que terminamos metendo o pau na esquerda chilena e que a certa altura fiz um brinde aos lutadores chilenos errantes, uma fração numerosa dos lutadores latino-americanos errantes, mítica ficção composta de órfãos que, como o nome indica, erravam pelo vasto mundo oferecendo seus serviços ao melhor proponente, que quase sempre, aliás, era o pior. Mas depois de rirmos, o Olho disse que violência não era com ele. Com você sim, me disse com uma tristeza que então não entendi, mas comigo não. Detesto a violência. Eu lhe garanti que sentia o mesmo. Depois falamos de outras coisas, livros, filmes, e não nos vimos mais.
Um dia soube que o Olho tinha ido embora do México.
Quem me contou foi um ex-colega de jornal dele. Não me pareceu estranho que não tivesse se despedido de mim. O Olho nunca se despedia de ninguém. Eu nunca me despedia de ninguém. Meus amigos mexicanos nunca se despediam de ninguém.
Para minha mãe, entretanto, pareceu uma atitude mal-educada.
Dois ou três anos depois eu também fui embora do México.
Estive em Paris, procurei-o (se bem que não com excessivo afinco), não o encontrei. Com o passar do tempo comecei a me esquecer até do seu rosto, embora sempre tenha persistido na minha memória uma forma de se aproximar, um estar, uma forma de opinar a certa distância e com certa tristeza nada enfática que eu associava ao Olho Silva, um Olho Silva que já não tinha rosto ou que havia adquirido um rosto de sombras, mas que ainda mantinha o essencial, a memória do seu movimento, uma entidade quase abstrata mas na qual não cabia a quietude.
Passaram-se os anos. Muitos anos. Alguns amigos morreram.
Eu me casei, tive um filho, publiquei alguns livros.
Em certa ocasião precisei ir a Berlim. Na última noite, depois de jantar com Heinrich von Berenberg e família, peguei um táxi (embora em geral fosse Heinrich que todas as noites me levava até o hotel) que mandei parar antes porque queria passear um pouco. O taxista (um asiático de certa idade que ouvia Beethoven) me deixou a uns cinco quarteirões do hotel. Não era muito tarde, mas não havia quase ninguém nas ruas. Atravessei uma praça. Sentado num banco, lá estava o Olho. Não o reconheci antes de ele falar comigo. Me chamou pelo nome e me perguntou como eu ia. Então me virei e o fitei por um instante sem saber quem era. O Olho continuava sentado no banco e seus olhos olhavam para mim, depois olhavam para o chão ou para os lados, para as árvores enormes da pracinha berlinense e para as sombras que o envolviam com mais intensidade (foi o que pensei então) do que a mim. Dei uns passos até ele e perguntei
quem era. Sou eu, Mauricio Silva, disse. O Olho Silva, do Chile?, falei. Ele assentiu e só então o vi sorrir.
Naquela noite conversamos até quase amanhecer. O Olho vivia em Berlim fazia alguns anos e sabia encontrar os bares que ficavam abertos a noite toda. Perguntei sobre a sua vida. Fez um esboço das vicissitudes de um fotógrafo freelance. Fixara residência em Paris, em Milão e agora em Berlim, moradias modestas onde guardava os livros e das quais se ausentava por longas temporadas. Só quando entramos no primeiro bar pude notar como tinha mudado. Estava muito mais magro, de cabelos grisalhos e o rosto sulcado de rugas. Notei também que bebia muito mais do que no México. Quis saber coisas de mim. Claro, nosso encontro não havia sido casual. Meu nome tinha aparecido na imprensa, e o Olho tinha lido ou alguém lhe dissera que um compatriota dele faria uma leitura ou uma conferência a que não pudera ir, mas telefonara para a organização e conseguira as coordenadas do meu hotel. Quando o encontrara na praça só estava fazendo hora, disse, e refletindo à espera da minha chegada.
Ri. Reencontrá-lo, pensei, tinha sido um acontecimento feliz. O Olho continuava sendo uma pessoa estranha e, no entanto, acessível, alguém que não impunha a sua presença, alguém a quem você podia dizer tchau a qualquer momento da noite e ele só lhe diria tchau, sem uma censura, sem um insulto, uma espécie de chileno ideal, estóico e amável, um exemplar que nunca havia abundado muito no Chile mas que só lá se podia encontrar.
Releio essas palavras e sei que peco por inexatidão. O Olho nunca teria se permitido essas generalizações. Em todo caso, enquanto estivemos nos bares, sentados diante de um uísque e de uma cerveja sem álcool, nosso diálogo se desenrolou basicamente no terreno das evocações, quer dizer, foi um diálogo informativo
e melancólico. O diálogo, na realidade, o monólogo que de fato me interessa foi o que se produziu quando íamos para o meu hotel, por volta das duas da manhã.
Quis o acaso que ele se pusesse a falar (ou que se lançasse a falar) enquanto atravessávamos a mesma praça onde algumas horas antes tínhamos nos encontrado. Lembro-me de que fazia frio e que de repente ouvi o Olho me dizer que gostaria de me contar algo que nunca havia contado a ninguém. Olhei para ele. O Olho estava com a vista posta na trilha de lajotas que serpenteava pela praça. Perguntei de que se tratava. De uma viagem, respondeu no ato. E o que aconteceu nessa viagem?, indaguei.
Então o Olho parou e por uns instantes pareceu existir somente para contemplar as copas das altas árvores alemãs e os fragmentos de céu e nuvens que se agitavam silenciosamente acima delas.
Uma coisa terrível, disse o Olho. Você se lembra de uma conversa que tivemos no La Habana antes de eu ir embora do México? Sim, respondi. Eu contei que era gay?, perguntou o Olho. Você me disse que era homossexual, falei. Vamos nos sentar, disse o Olho.
Eu juraria que o vi sentar-se no mesmo banco, como se eu ainda não houvesse chegado, nem houvesse começado a atravessar a praça e ele estivesse me esperando e refletindo sobre a sua vida e sobre a história que o destino ou o acaso o obrigava a me contar. Levantou a gola do sobretudo e começou a falar.
Acendi um cigarro e permaneci de pé. A história do Olho transcorria na Índia. Sua profissão e não a curiosidade de turista o havia levado até lá, onde precisava realizar dois trabalhos. O primeiro era a típica reportagem urbana, uma mistura de Marguerite Duras e Herman Hesse, o Olho e eu sorrimos, tem gente assim, disse, gente que quer ver a Índia a meio caminho entre India song e Sidarta, e estamos aí para agradar os editores. De modo que a primeira reportagem consistira em fotos em que se vislumbravam casas coloniais, jardins em ruínas, restaurantes de todo tipo, porém com predomínio do restaurante chinfrim ou do restaurante de famílias que pareciam chinfrins mas que eram apenas indianas, e também fotos da periferia, as zonas verdadeiramente pobres, depois o campo e as vias de comunicação, estradas, entroncamentos ferroviários, ônibus e trens que entravam e saíam da cidade, sem esquecer a natureza em estado latente, uma hibernação alheia ao conceito de hibernação ocidental, árvores distintas das árvores européias, rios e riachos, campos semeados ou secos, o território dos santos, disse o Olho.
A segunda reportagem fotográfica era sobre o bairro das putas de uma cidade da Índia cujo nome nunca saberei.
Aqui começa a verdadeira história do Olho. Naquele tempo ainda morava em Paris e suas fotos iam ilustrar um texto de um conhecido escritor francês que tinha se especializado no submundo da prostituição. Na verdade, sua reportagem era apenas a primeira de uma série que compreenderia bairros de tolerância
ou zonas de todo o mundo, cada uma fotografada por um fotógrafo diferente, mas todas comentadas pelo mesmo escritor. Não sei a que cidade o Olho chegou, talvez Bombaim, Calcutá, talvez Benares ou Madras, lembro-me que lhe perguntei e que ele ignorou minha pergunta. O caso é que chegou à Índia sozinho, pois o escritor francês já tinha sua crônica escrita, ele devia apenas ilustrá-la, e se dirigiu aos bairros que o texto francês indicava e começou a tirar fotos. Em seus planos — e nos planos dos seus editores — o trabalho e, portanto, a estadia na Índia não deviam se prolongar por mais de uma semana. Hospedou-se num hotel num lugar tranqüilo, um quarto com ar-condicionado e uma janela que dava para um pátio que não pertencia ao hotel e onde havia duas árvores, um chafariz entre as árvores e parte de um terraço onde às vezes apareciam duas mulheres seguidas ou precedidas de várias crianças. As mulheres se vestiam à maneira indiana, ou o que para o Olho eram roupas indianas, mas as crianças ele até as viu uma vez de gravata. De tarde ia à zona, tirava fotos e conversava com as putas, algumas bem mocinhas e muito bonitas, outras um pouco mais velhas ou mais acabadas, com pinta de matronas céticas e pouco loquazes. O cheiro, que no início o incomodava, terminou lhe agradando. Os cafetões (não viu muitos) eram amáveis e procuravam se comportar como cafetões ocidentais, ou talvez (mas só pensou nisso depois, em seu quarto de hotel com ar-condicionado) estes últimos é que tenham adotado o gestual dos cafetões hindus.
Uma tarde o convidaram a ter relação carnal com uma das putas. Negou-se educadamente. O cafetão compreendeu na hora que o Olho era homossexual e na noite seguinte levou-o a um bordel de bichas jovens. Nessa noite o Olho baqueou. Eu já estava dentro da Índia e não tinha me dado conta, disse estudando as sombras do parque berlinense. O que você fez?, perguntei. Nada. Olhei e sorri. E não fiz nada. Então passou pela cabeça de um dos rapazes que o visitante talvez gostasse de visitar outro tipo de estabelecimento. Isso foi o que o Olho deduziu, pois entre si eles não falavam em inglês. De modo que saíram daquela casa e caminharam por ruas estreitas e infectas até chegar a uma casa de fachada pequena mas cujo interior era um labirinto de corredores, quartos minúsculos e sombras de que sobressaía, de tanto em tanto, um altar ou um oratório.
É costume em algumas partes da Índia, me disse o Olho olhando para o chão, oferecer um menino a uma divindade cujo nome não me lembro. Num arroubo infeliz, observei que ele não só não se lembrava do nome da divindade nem tampouco do nome da cidade e de nenhuma pessoa da sua história. O Olho me encarou e sorriu. Procuro esquecer, falou.
Nesse momento temi o pior, sentei-me ao seu lado e por alguns instantes permanecemos com a gola dos nossos sobretudos levantada, e em silêncio. Oferecem um menino a esse deus, retomou sua história depois de escrutar a praça em penumbra, como se temesse a proximidade de um desconhecido, e durante um tempo que não sei medir o menino encarna o deus. Pode ser uma semana, quanto durasse a coisa, um mês, um ano, não sei. É uma festa bárbara, proibida pelas leis da república indiana, mas que continua sendo comemorada. No decorrer da festa, o menino é cumulado de presentes que seus pais recebem com gratidão e felicidade, pois costumam ser pobres. Terminada a festa, o menino é devolvido à sua casa ou ao buraco imundo onde vive, e tudo recomeça um ano depois.
A festa tem a aparência de uma romaria latino-americana, só que talvez mais alegre, mais movimentada e provavelmente a intensidade dos que participam, dos que se sabem participantes, seja maior. Com uma diferença. O menino, dias antes de começar os festejos, é castrado. O deus que se encarna nele durante
a comemoração exige um corpo de homem — apesar de os meninos normalmente não terem mais de sete anos — sem a mácula dos atributos masculinos. Assim, os pais o entregam aos médicos da festa, ou aos barbeiros da festa, ou aos sacerdotes da festa, e estes o emasculam, e, quando o menino se recupera da cirurgia, começa o festejo. Semanas ou meses depois, quanto tudo acabou, o menino volta para casa, mas já é um castrado e os pais o repudiam. O menino então acaba num bordel.
Tem de todo tipo, disse o Olho com um suspiro. Naquela noite, levaram-me ao pior de todos.
Ficamos um momento sem falar. Acendi um cigarro. Depois o Olho me descreveu o bordel, e parecia que estava descrevendo uma igreja. Pátios internos cobertos. Galerias abertas.
Celas onde gente que você não via espiava seus movimentos.
Trouxeram-lhe um jovem castrado que não devia ter mais de dez anos. Parecia uma menina aterrorizada, disse o Olho. Aterrorizada e zombeteira ao mesmo tempo. Entende? Faço uma ideia, respondi. Tornamos a nos calar. Quando por fim pude falar de novo disse que não, que não fazia a menor ideia. Nem eu, disse o Olho. Ninguém pode fazer a menor ideia. Nem a vítima, nem os carrascos, nem os espectadores. Só uma foto.
Você tirou a foto?, perguntei. Pareceu-me que o Olho era sacudido por um calafrio. Peguei minha câmara, falou, e tirei uma foto. Eu sabia que estava me condenando por toda a eternidade, mas tirei.
Ignoro por quanto tempo ficamos em silêncio. Sei que fazia frio, pois a certa altura comecei a tremer. Do meu lado ouvi o Olho soluçar algumas vezes, mas preferi não olhar para ele.
Vi os faróis de um carro que passava por uma das ruas laterais da praça. Através da folhagem vi uma janela se iluminar.
Depois o Olho continuou falando. Disse que o menino havia sorrido e depois escapulido mansamente por um dos corredores daquela casa incompreensível. A certa altura um dos cafetões sugeriu que se não havia nada ali do seu agrado fossem embora. O Olho se negou. Não podia ir embora. Foi assim que disse: ainda não posso ir. E era verdade, se bem que ele desconhecesse o que o impedia de abandonar aquele antro para sempre.
Mas o cafetão entendeu e pediram um chá ou uma bebida desse tipo. O Olho se lembra de que sentaram no chão, sobre umas esteiras ou uns pequenos tapetes arruinados pelo uso. A luz provinha de um par de velas. Pendurado na parede havia um pôster com a efígie do deus. Por um instante o Olho fitou o deus e de início sentiu-se atemorizado, mas depois sentiu algo parecido com raiva, com ódio talvez.
Nunca odiei ninguém, disse acendendo um cigarro e deixando a primeira tragada se perder na noite berlinense.
Em algum momento, enquanto o Olho fitava a efígie do deus, os que o acompanhavam desapareceram. Ele ficou sozinho com uma espécie de puto de uns vinte anos que falava inglês. Pouco depois, ele bateu palmas e o menino reapareceu. Eu estava chorando, ou acreditava que estava chorando, ou o pobre puto acreditava que eu estava chorando, mas nada era verdade.
Eu tentava manter um sorriso no rosto (um rosto que já não me pertencia, um rosto que estava se afastando de mim como uma folha arrastada pelo vento), mas dentro de mim a única coisa que fazia era maquinar. Não um plano, não uma forma de vaga justiça, mas uma vontade.
Depois o Olho, o puto e o menino se levantaram e percorreram um corredor mal iluminado e outro corredor pior iluminado (com o menino ao lado do Olho, olhando para ele, sorrindo para ele, o jovem puto também sorria para ele, o Olho assentia e prodigalizava cegamente as moedas e as notas) até chegar a um quarto onde o médico cochilava e junto dele outro menino com a pele mais escura que a do menino castrado e mais moço que este, talvez de seis anos ou sete, e o Olho ouviu as explicações do médico, ou barbeiro, ou sacerdote, umas explicações prolixas em que se mencionava a tradição, as festas populares, o privilégio, a comunhão, a embriaguez e a santidade, e pôde ver os instrumentos cirúrgicos com que o menino ia ser castrado naquela madrugada ou na seguinte, em todo caso o menino havia chegado, entendeu ele, naquele mesmo dia ao templo ou ao bordel, uma medida preventiva, uma medida higiênica, e tinha comido bem, como se já encarnasse o deus, se bem que o que o Olho viu foi um menino meio adormecido e meio acordado, viu também o olhar meio divertido e meio aterrorizado do menino castrado que não desgrudava dele. Então o Olho se transformou noutra coisa, se bem que a palavra que ele empregou não foi outra coisa e sim mãe.
Disse mãe e suspirou. Por fim. Mãe.
O que aconteceu em seguida, de tão repisado, é vulgar: a violência da qual não podemos escapar. O destino dos latino-americanos nascidos na década de cinqüenta. Claro, o Olho tentou sem grande convicção o diálogo, o suborno, a ameaça. O que é certo é que houve violência e pouco depois ele deixou para trás as ruas daquele bairro como se estivesse sonhando, suando em bicas. Lembra-se com vivacidade da sensação de exaltação que cresceu no seu espírito, cada vez maior, uma alegria que se parecia perigosamente com algo semelhante à lucidez, mas que não era (não podia ser) lucidez. Também: a sombra que seu corpo projetava e as sombras dos dois meninos que levava pela mão nas paredes descascadas. Em qualquer outro lugar teria chamado a atenção. Ali, naquela hora, ninguém ligou para ele. O resto, mais que uma história ou um argumento, é um itinerário.
O Olho voltou ao hotel, enfiou suas coisas na mala e foi embora com os meninos. Primeiro um táxi até uma aldeia ou um bairro dos arredores. Dali, um ônibus até outra aldeia onde pegaram outro ônibus que os levou a outra aldeia. Em algum ponto da sua fuga subiram num trem e viajaram a noite inteira e parte do dia. O Olho se lembrava do rosto dos meninos espiando pela janela uma paisagem que a luz da manhã ia desfiando, como se nunca nada houvesse sido real, salvo aquilo que se oferecia,soberano e humilde, na moldura da janela daquele trem misterioso. Depois pegaram outro ônibus, um táxi, outro ônibus, outro trem, e até pedimos carona, disse o Olho observando a silhueta das árvores berlinenses, mas na realidade observando a silhueta de outras árvores, incontáveis, impossíveis, até que finalmente se detiveram numa aldeia em algum lugar da Índia, alugaram uma casa e descansaram.
Ao fim de dois meses, o Olho não tinha mais dinheiro e foi andando até outra aldeia, de onde mandou uma carta ao amigo que tinha então em Paris. Ao fim de quinze dias recebeu uma ordem de pagamento e teve de ir recebê-la num lugarejo maior, que não era a aldeia da qual havia mandado a carta, muito menos a aldeia em que morava. Os meninos estavam bem. Brincavam com outros meninos, iam à escola e às vezes chegavam em casa com comida, hortaliças que os vizinhos lhes davam. Não o chamavam de pai, como lhes sugerira mais por medida de segurança, para não chamar a atenção dos curiosos, e sim de Olho, tal como nós o chamávamos. Aos aldeões, porém, o Olho dizia que eram seus filhos. Inventou que a mãe, indiana, tinha morrido fazia pouco e ele não queria voltar para a Europa. A história soava verídica. Mas nos pesadelos do Olho aparecia a polícia indiana no meio da noite e o detinham com acusações indignas.
Costumava acordar tremendo. Então se aproximava das esteiras onde os meninos dormiam e a visão deles lhe dava forças para continuar, para dormir, para se levantar.
Tornou-se agricultor. Cultivava uma pequena horta e às vezes trabalhava para os camponeses ricos da aldeia. Os camponeses ricos, claro, na realidade eram pobres, mas menos pobres do que os outros. Dedicava o resto do tempo a ensinar inglês aos meninos, um pouco de matemática e a vê-los brincar. Entre eles, falavam um idioma incompreensível. Às vezes os via parar a brincadeira e andar pelo campo, como se de repente tivessem se tornado sonâmbulos. Chamava-os aos gritos. Às vezes os meninos fingiam não ouvir e continuavam andando até se perder. Outras vezes viravam a cabeça e sorriam para ele.
Quanto tempo você ficou na Índia?, perguntei alarmado.
Um ano e meio, respondeu o Olho, mas com toda certeza não sabia.
Em certa ocasião seu amigo de Paris chegou à aldeia. Ainda gostava de mim, disse o Olho, apesar de, na minha ausência, ter passado a viver com um mecânico argelino da Renault. Riu ao dizer isso. Também ri. Tudo era tão triste, disse o Olho. Seu amigo que chegava à aldeia a bordo de um táxi coberto de poeira avermelhada, os meninos correndo atrás de um inseto, no meio do mato seco, o vento que parecia trazer boas e más notícias.
Apesar das súplicas do francês, não voltou a Paris. Meses depois recebeu uma carta dele em que comunicava que a polícia indiana não o perseguia. Parece que o pessoal do bordel não havia prestado nenhuma queixa. A notícia não impediu que o Olho continuasse tendo pesadelos, só mudou a indumentária dos personagens que o detinham e o mortificavam: em vez de serem policiais, transformaram-se em esbirros da seita do deus castrado. O resultado final era ainda mais horroroso, o Olho me confessou, mas eu já tinha se acostumado com os pesadelos e de alguma forma sempre soube que estava dentro de um sonho, que aquilo não era a realidade.
Depois a doença chegou à aldeia e os meninos morreram.
Eu também queria morrer, disse o Olho, mas não tive essa sorte.
Após convalescer numa cabana que a chuva destroçava a cada dia, o Olho abandonou a aldeia e voltou para a cidade onde havia conhecido seus filhos. Com atenuada surpresa descobriu que não estava tão distante quanto pensava, a fuga havia sido em espiral e o regresso foi relativamente breve. Uma tarde, a tarde em que chegou à cidade, foi visitar o bordel onde castravam os meninos. Os quartos tinham se tornado moradias onde se amontoavam famílias inteiras. Pelos corredores solitários e fúnebres agora pululavam crianças que mal sabiam andar e velhos que não podiam mais se mover e se arrastavam. Pareceu-lhe uma imagem do paraíso.
Naquela noite, quando voltou ao hotel, sem conseguir parar de chorar por seus filhos mortos, pelos meninos castrados que ele não tinha conhecido, por sua juventude perdida, por todos os jovens que já não eram jovens e pelos jovens que morreram jovens, pelos que lutaram por Salvador Allende e pelos que tiveram medo de lutar por Salvador Allende, ligou para seu amigo francês, que agora vivia com um ex-halterofilista búlgaro, e pediu que lhe mandasse uma passagem de avião e dinheiro para pagar o hotel.
Seu amigo francês respondeu que sim, que claro, que mandaria logo, e também perguntou que barulho é esse? você está chorando?, e o Olho respondeu que sim, que não conseguia parar de chorar, que não sabia o que estava acontecendo, que passava horas chorando. Seu amigo francês disse que se acalmasse.
E o Olho riu sem parar de chorar, disse que era isso que faria e desligou o telefone. E continuou chorando sem parar.
¹ - México DF - Cidade do México (Distrito Federal).
Roberto Bolaño, Putas Assassinas (224 páginas, Companhia das Letras, 2008).
Bolaño, R. chileno, prolixo escritor (cronista e poeta), vencedor de diversos prêmios que incluem o National Book Critics Circle Award e o da Revista Time por melhor romance de 2008 (com o livro 2666). Passou quase toda sua vida no México - onde ingressou o movimento estudantil e desenvolveu suas ideias socialistas, mas foi na Espanha onde finalmente encontrou algum reconhecimento por seu talento literário com o prêmio Herralde de 1998 por Os Detetives Selvagens. Sua literatura, comumente, se confunde com sua própria biografia, com personagens fictícios e reais que permeiam e se encontram num rico e peculiar mundo. Vem a falecer em 2003, com cinquenta anos devido a problemas hepáticos, se tornando um dos grandes nomes (se não o maior) da literatura latino-americana moderna.
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