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14 de agosto de 2013

Ato 2 - A crise de identidade (parte 2)


A verdade é que tudo que consigo fazer, depois de meu banho, é acabar cochilando por algum tempo... E, depois desse, não tão breve cochilo, vejo que é um momento tão bom quanto outro para chegar ao telefone, ligar para Fausto e cobrar uma de minhas folgas por direito. Ele acabou não se importando de maneira, e, honestamente achou que estava demorando para que eu cobrasse uma. Ainda mais que, no horário que eu liguei, eles já estavam trabalhando há um bom tempo, e a história do novato chegando com meu carro para o trabalho, e os, assim ditos, sórdidos detalhes da noite anterior, bem, só fizeram com que Fausto me aconselhasse um bom repouso... E, apesar disso me deixar um tanto preocupado, o cansaço só faz com que eu queira ainda mais relaxar um pouco.
E quando chego ao quarto, pela primeira vez em dias vejo Marina acordada.
Fico sem voz... De todas as coisas que aconteceram nas últimas oito ou nove horas, essa é a que certamente menos acredito. Ela sabe, obviamente o que aconteceu, uma vez que minha mãe fez questão de fazer um belo e acalorado discurso sobre como esse mocinho irresponsável se recusa a assumir suas responsabilidades e todo aquele discurso que, eu achava que morresse junto com a adolescência e a vontade de usar camisetas de Che Guevara e iniciar uma revolução contra os quadrados e todas aquelas babaquices da fase. Obviamente eu sempre serei este mocinho irresponsável, não importa o quanto eu tente fazer diferente. Acho que não tem como ser diferente... É a relatividade paradoxal infinitamente reflexiva... Da mesma forma que eu sempre serei o mesmo moleque pra minha mãe, ela sempre será a mãe para este moleque. E, a verdade é que eu mereci a bronca, e ainda acho que mereço. Fui idiota e irresponsável, realmente, e ainda não sei o que diabos aconteceu com meu carro.
De qualquer forma, Marina me olha com uma graça que eu, talvez, nunca notara antes. Ela está serena... Calma como nunca, e, apesar de ainda tendo de ficar em repouso e sob observação constante, e, constantemente em dificuldades para fazer as coisas mais simples. Sorri, como que me perdoando pelo que fiz, enquanto eu com cara de estúpido, mesclado com cachorro arrependido fico ao seu lado e ajudo nas tarefas do dia-a-dia e em seu trabalho.
Agora que já está um pouco melhor, ela trabalha em seu computador portátil, revisando trabalhos, corrigindo algumas imperfeições, e, numa escala quase impossível para a capacidade de processamento da pequena máquina, fazendo e refazendo cálculos e projetos, e, como eu pude vez em seu auge, com a perícia de um grande mestre. Ela começa do zero, se necessário e segue, pincelando aqui e ali, criando uma linha, mudando um formato, copiando um elemento e, em minutos toda uma planta está diante de seus olhos. É a primeira vez que a vejo trabalhando... Quer dizer, eu fui algumas vezes ao seu escritório e, acho que a vi trabalhar por uns... Cinco ou dez minutos enquanto esperava para o almoço ou algo do tipo, mas nada nessa proporção. E é magnífico. Fico vidrado observando seus movimentos, que até chego a esquecer meu cansaço.
Trocamos algumas poucas palavras, e isso parece que a deixa pior, ou ela simplesmente foi se acostumando com alguns e esporádicos monossílabos para expressar o que precisa que seu corpo começou a achar difícil agir diferente. Não importa. Ela sorri por tentar, e por eu estar ali, e, por, afinal de contas, ambos estarmos ali, e tudo estar bem, de uma maneira estranha, é claro, afinal era para eu estar trabalhando e, bem, ela também, e com toda certeza sem nenhum equipamento médico, enfermeira...
_ Está tudo bem com você? – ela pergunta, depois de um breve cochilo meu, quando ela me vê despertando.
_ Não sei. As coisas andam meio estranhas ultimamente... Com toda essa história da incorporação pelo Swann e... Quer dizer... Eu... Eu não sei dizer bem, mas com certeza eu gostaria que as coisas estivessem diferentes, isso eu posso te dizer sem sombra de dúvidas. Gostaria que você estivesse bem, e que pudéssemos curtir mais esse tempo, esse período.
_ Até aí, eu também, ou você acha realmente que estou gostando de ficar aqui em casa, com mínima mobilidade entre cama, escritório e banheiro, constantemente supervisionada por uma ou outra mulher histérica que acha que eu ou meu bebe podemos morrer...
_ Eu sei... Enquanto você esteve no hospital e tudo mais, eu estava ao lado das mulheres histéricas, tentando acalmá-las, e eu contratei as outras duas enfermeiras histéricas.
_ E eu agradeço isso. E sei que não deve ser nem um pouco fácil lidar com tudo isso.
_ Não é. Desde a morte de meu pai, eu nunca pensei tantas vezes ou tive tanto medo sobre o passamento de alguém como nessas últimas semanas.
_ Você teve medo que eu...? – ela chora um pouco, engole em seco enquanto fala e não consegue terminar a pergunta. Eu fico em silêncio, pensando em como abordar melhor o assunto, principalmente porque eu fui estúpido em falar sobre mortalidade na condição que ela se encontra.
_ Por muito tempo, isso não foi uma questão em minha mente. A morte nunca foi uma preocupação... Não sei dizer... Acho que nunca, por qualquer motivo cheguei a pensar se um de nós partiria primeiro ou algo do tipo. Acho que até pensei por algum instante sobre vivermos pra sempre... Esse susto me fez repensar, me fez pensar sobre como eu tinha que voltar para um apartamento vazio, um quarto vazio, e, isso não foi nada agradável. Estar aqui sem você, não é a mesma coisa. Não é a minha vida. – Acho que não fui muito feliz em corrigir meu erro anterior, e, o silêncio dela e extensão do choro parecem confirmar.
Eu a abraço, fico ao seu lado por um bom tempo, oferecendo algum conforto, e permanecemos ali, assim, em silêncio, abraçados. Dois que são apenas um.
Mais tarde acabo conversando com o novato, e ele me explica o que aconteceu, sobre como nós decidimos que seria mais aconselhável que, ele bem menos alcoolizado que eu, levasse meu veículo, assim como os documentos, e, me entregasse de volta no serviço no dia seguinte. Isso foi por volta das duas da manhã, no segundo (ou, provavelmente terceiro) bar em que paramos para beber. Ele me disse que eu segui, caminhando pela noite ao lado de Verônica, sem um rumo definido, mas cantando a plenos pulmões alguma velha canção de bêbados. Ela fazia a segunda voz. Provavelmente paramos em mais dois ou três lugares, antes de terminar a noite em uma praça pública, próxima a uma cafeteria ou padaria, onde ela me comprou um café amargo. Prejuízo avaliado: Vinte por cento de meu salário em uma noite. E uma grana que eu realmente não deveria estar gastando levianamente.
É o preço a se pagar.
***
Minha primeira entrada no campus é algo estranho. Um déja vu... Memórias que nunca tive rondam minha mente, enquanto caminho por corredores, que, apesar de já ter percorrido algumas vezes quando visitando Virgílio, pela primeira vez vejo-os claramente. O motivo da visita? Estou aqui para deixar alguns documentos, buscar alguns papéis e termos, formulários e mais algumas coisinhas que são necessários para encaminhar para meu amigo.
Quando entro na sala, quase vazia, exceto por um detalhe, de um homem expondo uma vasta cabeleira e barba, ambas acinzentadas e até bem alinhadas pelo tamanho e distribuição que possuem. Ele está sentado em uma longa poltrona, almofadada e confortável pelo que parece, atrás de madeira antiga e bastante surrada, onde encontra-se um copo de café que parece até gelado, estando há muito tempo naquela mesa, ao lado do abajur que ilumina parcamente o livro, tentando também cobrir o restante da sala, mas mal cobrindo o homem, e uma pequena placa onde se lê ‘Alan Borges Coordenador do Departamento de literatura’. Atrás dele, numa parede que precisa ser prolongada para acomodar melhor tantos diplomas e conquistas, posso ler, com grande dificuldade dada a pequena luz, dois títulos de doutor para literatura, e, sem distinguir plenamente o motivo de duas nomeações para o mesmo tema, logo noto que existem variações no assunto (literatura russa e literatura alemã), mas a luz não permite qualquer detalhamento, e meu conhecimento sobre o mesmo tampouco. Deduzo algumas coisas, e fico por alguns instantes pensando como abordar algum ou qualquer assunto, ou mesmo se deveria. Ele parece tão compenetrado em sua leitura, que me pergunto se seria até prudente interrompê-lo, afinal, sei exatamente o que tenho que buscar e o que preciso entregar. Sou surpreendido por um som.
Um “A-han” gutural e claro, se faz ouvir, limpando a garganta do doutor.
Fico sem reação, assustado, pensando se estou perturbando-o ou algo do tipo, quando o vejo colocar os óculos, e olhar em minha direção. E ele parece assustado. Ou como alguém que acabou de acordar, e, honestamente não gostaria que qualquer outra pessoa percebesse isso.
_ Desculpe incomodar, eu...
_ Imagine... Eu é que deveria pedir estas desculpas aqui, não é mesmo? – diz docilmente o homem, enquanto fecha o livro e afasta-se da mesa – De qualquer forma, ainda me aguça a curiosidade para entender o que faz aqui, meu rapaz. Não me parece um de meus colegas professores, ou um de meus alunos, ainda mais neste período em que somente estou orientando uma meia dúzia de alunos durante aulas de mestrado e doutorado. Paralelamente, acrescento que a indústria farmacêutica com toda a certeza deveria investir nesta área – Ele pára de súbito, roçando sua barba com a mão direita, enquanto segura o queixo com a esquerda. Uma figura, com toda a certeza peculiar.
_ Realmente não sou seu aluno, professor ou sequer tenho algum vínculo direto com a universidade. Sou um amigo de um colega professor, Virgilio. Vim buscar uns documentos para ele, e entregar alguns outros.
_ Ah, realmente. Realmente – diz ele pensativo, com o olhar distante, tentando entender algo.
Eu procuro um interruptor por um tempo, tentando escapar daquele breu enquanto meu interlocutor continua coçando o queixo e roçando a barba e olhando para o vazio. Sujeito realmente peculiar. Sem ajuda, acabo intercedendo.
_ O senhor pode me dizer onde é o interruptor?
_ Ah, perdão... Quando você mencionara Virgílio não pude deixar de abstrair algumas de minhas idéias, de seu guia de caminhos profanos, e sua presença me fez lembrar bastante... E... Bem, não é realmente importante, não é mesmo?
É bastante nobre de sua parte apoiar alguém nas condições dele, não?
_ Nem tanto. É só a função de um amigo, não é verdade?
_ Claro, claro. Afinal, os amigos são a função e razão das atividades deste animal social que conhecemos como homem. E quanto ao interruptor, logo ali, ao lado de “La Commedia” na estante, próxima à porta.
Sorrio animado, como muitas vezes em momentos iniciais de minhas conversas com Virgilio, reconheço o padrão da primeira provocação, do primeiro momento de reflexão através de um comentário. E ele normalmente é seguido por um segundo, imediatamente após o primeiro...
_ “Faça-se a luz” disse Javé, e então a luz se fez e Deus viu que era bom – e é acendendo a luz quando noto realmente que existe uma tremenda falta de espaço no local. Livros às centenas espalhados por estantes e prateleiras além de outros tantos amontoados em pilhas ao lado de dois armários fechados – talvez estes com mais livros ou anotações, molduras escondidas atrás de estantes e armários e dezenas e dezenas de quadros estampando títulos, nomeações, honrarias e algumas fotos de momentos importantes, entre as quais, consigo distinguir uma ao lado de um grande escritor, aparentemente em um congresso, ou algo do tipo.
_ Anteriormente, o senhor disse que...
_ Por favor... Não se deixe intimidar pelas placas, documentos, honrarias e fotos com grandes nomes e figuras... Conheces Virgilio, edes bem-vindo aqui. Podeis me chamar por “você”, ou, como preferem.
_ Bem... Você disse que as indústrias farmacêuticas deveriam investir em pesquisas de mestrado e doutorado... Da área de literatura?
_ Sim, claro, e de muitas outras áreas do conhecimento humano. Se conseguirem transformar em pílula, a insomnia estará com seus dias contados. – Ele sorri, chega a gargalhar com a piada, um tanto sem-graça, é verdade, e me fez lembrar ainda mais uma típica conversa com meu amigo Virgilio. Gracejos toscos distribuídos a mil, com alguma intenção de ser sarcástico ou cáustico talvez. – Porém, ainda não creio que eu possa lhe servir de alguma assistência, ou terei errado?
_ Não sei bem responder... Se pode me ajudar? Bem, ando um tanto confuso ultimamente... Quase que dividido em dois... Entre decisões e atitudes. Acho que estou passando por um turbilhão e, acho que toda e qualquer pessoa com quem eu possa conversar e... Bem, acho que estou falando com uma pessoa que mal conheço sobre problemas que provavelmente não lhe interessam, estou certo?
_ Em parte. Realmente não o conheço. Você fez questão de omitir até este presente momento a mítica de tua designação. Mas erras se credes que não me interesso por problemas de outrem... Obviamente não observastes direito estas pilhas ao meu redor. Eu sou um apreciador de contos, e o que é a vida, senão um amontoado de histórias?

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