A
verdade é que tudo que consigo fazer, depois de meu banho, é acabar cochilando
por algum tempo... E, depois desse, não tão breve cochilo, vejo que é um
momento tão bom quanto outro para chegar ao telefone, ligar para Fausto e
cobrar uma de minhas folgas por direito. Ele acabou não se importando de
maneira, e, honestamente achou que estava demorando para que eu cobrasse uma.
Ainda mais que, no horário que eu liguei, eles já estavam trabalhando há um bom
tempo, e a história do novato chegando com meu carro para o trabalho, e os,
assim ditos, sórdidos detalhes da noite anterior, bem, só fizeram com que
Fausto me aconselhasse um bom repouso... E, apesar disso me deixar um tanto
preocupado, o cansaço só faz com que eu queira ainda mais relaxar um pouco.
E
quando chego ao quarto, pela primeira vez em dias vejo Marina acordada.
Fico
sem voz... De todas as coisas que aconteceram nas últimas oito ou nove horas,
essa é a que certamente menos acredito. Ela sabe, obviamente o que aconteceu,
uma vez que minha mãe fez questão de fazer um belo e acalorado discurso sobre
como esse mocinho irresponsável se recusa a assumir suas responsabilidades e
todo aquele discurso que, eu achava que morresse junto com a adolescência e a
vontade de usar camisetas de Che Guevara e iniciar uma revolução contra os
quadrados e todas aquelas babaquices da fase. Obviamente eu sempre serei este
mocinho irresponsável, não importa o quanto eu tente fazer diferente. Acho que
não tem como ser diferente... É a relatividade paradoxal infinitamente
reflexiva... Da mesma forma que eu sempre serei o mesmo moleque pra minha mãe,
ela sempre será a mãe para este moleque. E, a verdade é que eu mereci a bronca,
e ainda acho que mereço. Fui idiota e irresponsável, realmente, e ainda não sei
o que diabos aconteceu com meu carro.
De
qualquer forma, Marina me olha com uma graça que eu, talvez, nunca notara
antes. Ela está serena... Calma como nunca, e, apesar de ainda tendo de ficar
em repouso e sob observação constante, e, constantemente em dificuldades para
fazer as coisas mais simples. Sorri, como que me perdoando pelo que fiz,
enquanto eu com cara de estúpido, mesclado com cachorro arrependido fico ao seu
lado e ajudo nas tarefas do dia-a-dia e em seu trabalho.
Agora
que já está um pouco melhor, ela trabalha em seu computador portátil, revisando
trabalhos, corrigindo algumas imperfeições, e, numa escala quase impossível
para a capacidade de processamento da pequena máquina, fazendo e refazendo
cálculos e projetos, e, como eu pude vez em seu auge, com a perícia de um
grande mestre. Ela começa do zero, se necessário e segue, pincelando aqui e
ali, criando uma linha, mudando um formato, copiando um elemento e, em minutos
toda uma planta está diante de seus olhos. É a primeira vez que a vejo
trabalhando... Quer dizer, eu fui algumas vezes ao seu escritório e, acho que a
vi trabalhar por uns... Cinco ou dez minutos enquanto esperava para o almoço ou
algo do tipo, mas nada nessa proporção. E é magnífico. Fico vidrado observando
seus movimentos, que até chego a esquecer meu cansaço.
Trocamos
algumas poucas palavras, e isso parece que a deixa pior, ou ela simplesmente
foi se acostumando com alguns e esporádicos monossílabos para expressar o que
precisa que seu corpo começou a achar difícil agir diferente. Não importa. Ela
sorri por tentar, e por eu estar ali, e, por, afinal de contas, ambos estarmos
ali, e tudo estar bem, de uma maneira estranha, é claro, afinal era para eu
estar trabalhando e, bem, ela também, e com toda certeza sem nenhum equipamento
médico, enfermeira...
_
Está tudo bem com você? – ela pergunta, depois de um breve cochilo meu, quando
ela me vê despertando.
_
Não sei. As coisas andam meio estranhas ultimamente... Com toda essa história
da incorporação pelo Swann e... Quer dizer... Eu... Eu não sei dizer bem, mas
com certeza eu gostaria que as coisas estivessem diferentes, isso eu posso te
dizer sem sombra de dúvidas. Gostaria que você estivesse bem, e que pudéssemos
curtir mais esse tempo, esse período.
_
Até aí, eu também, ou você acha realmente que estou gostando de ficar aqui em
casa, com mínima mobilidade entre cama, escritório e banheiro, constantemente
supervisionada por uma ou outra mulher histérica que acha que eu ou meu bebe
podemos morrer...
_
Eu sei... Enquanto você esteve no hospital e tudo mais, eu estava ao lado das
mulheres histéricas, tentando acalmá-las, e eu contratei as outras duas
enfermeiras histéricas.
_
E eu agradeço isso. E sei que não deve ser nem um pouco fácil lidar com tudo
isso.
_
Não é. Desde a morte de meu pai, eu nunca pensei tantas vezes ou tive tanto
medo sobre o passamento de alguém como nessas últimas semanas.
_
Você teve medo que eu...? – ela chora um pouco, engole em seco enquanto fala e
não consegue terminar a pergunta. Eu fico em silêncio, pensando em como abordar
melhor o assunto, principalmente porque eu fui estúpido em falar sobre mortalidade
na condição que ela se encontra.
_
Por muito tempo, isso não foi uma questão em minha mente. A morte nunca foi uma
preocupação... Não sei dizer... Acho que nunca, por qualquer motivo cheguei a
pensar se um de nós partiria primeiro ou algo do tipo. Acho que até pensei por
algum instante sobre vivermos pra sempre... Esse susto me fez repensar, me fez
pensar sobre como eu tinha que voltar para um apartamento vazio, um quarto
vazio, e, isso não foi nada agradável. Estar aqui sem você, não é a mesma coisa.
Não é a minha vida. – Acho que não fui muito feliz em corrigir meu erro
anterior, e, o silêncio dela e extensão do choro parecem confirmar.
Eu
a abraço, fico ao seu lado por um bom tempo, oferecendo algum conforto, e
permanecemos ali, assim, em silêncio, abraçados. Dois que são apenas um.
Mais
tarde acabo conversando com o novato, e ele me explica o que aconteceu, sobre
como nós decidimos que seria mais aconselhável que, ele bem menos alcoolizado
que eu, levasse meu veículo, assim como os documentos, e, me entregasse de
volta no serviço no dia seguinte. Isso foi por volta das duas da manhã, no
segundo (ou, provavelmente terceiro) bar em que paramos para beber. Ele me
disse que eu segui, caminhando pela noite ao lado de Verônica, sem um rumo
definido, mas cantando a plenos pulmões alguma velha canção de bêbados. Ela
fazia a segunda voz. Provavelmente paramos em mais dois ou três lugares, antes
de terminar a noite em uma praça pública, próxima a uma cafeteria ou padaria,
onde ela me comprou um café amargo. Prejuízo avaliado: Vinte por cento de meu
salário em uma noite. E uma grana que eu realmente não deveria estar gastando
levianamente.
É
o preço a se pagar.
***
Minha
primeira entrada no campus é algo estranho. Um déja vu... Memórias que nunca tive rondam minha mente, enquanto
caminho por corredores, que, apesar de já ter percorrido algumas vezes quando
visitando Virgílio, pela primeira vez vejo-os claramente. O motivo da visita?
Estou aqui para deixar alguns documentos, buscar alguns papéis e termos, formulários
e mais algumas coisinhas que são necessários para encaminhar para meu amigo.
Quando
entro na sala, quase vazia, exceto por um detalhe, de um homem expondo uma
vasta cabeleira e barba, ambas acinzentadas e até bem alinhadas pelo tamanho e
distribuição que possuem. Ele está sentado em uma longa poltrona, almofadada e
confortável pelo que parece, atrás de madeira antiga e bastante surrada, onde
encontra-se um copo de café que parece até gelado, estando há muito tempo
naquela mesa, ao lado do abajur que ilumina parcamente o livro, tentando também
cobrir o restante da sala, mas mal cobrindo o homem, e uma pequena placa onde
se lê ‘Alan Borges Coordenador do Departamento de literatura’. Atrás dele, numa
parede que precisa ser prolongada para acomodar melhor tantos diplomas e
conquistas, posso ler, com grande dificuldade dada a pequena luz, dois títulos
de doutor para literatura, e, sem distinguir plenamente o motivo de duas
nomeações para o mesmo tema, logo noto que existem variações no assunto
(literatura russa e literatura alemã), mas a luz não permite qualquer
detalhamento, e meu conhecimento sobre o mesmo tampouco. Deduzo algumas coisas,
e fico por alguns instantes pensando como abordar algum ou qualquer assunto, ou
mesmo se deveria. Ele parece tão compenetrado em sua leitura, que me pergunto
se seria até prudente interrompê-lo, afinal, sei exatamente o que tenho que
buscar e o que preciso entregar. Sou surpreendido por um som.
Um
“A-han” gutural e claro, se faz ouvir, limpando a garganta do doutor.
Fico
sem reação, assustado, pensando se estou perturbando-o ou algo do tipo, quando
o vejo colocar os óculos, e olhar em minha direção. E ele parece assustado. Ou
como alguém que acabou de acordar, e, honestamente não gostaria que qualquer
outra pessoa percebesse isso.
_
Desculpe incomodar, eu...
_
Imagine... Eu é que deveria pedir estas desculpas aqui, não é mesmo? – diz
docilmente o homem, enquanto fecha o livro e afasta-se da mesa – De qualquer
forma, ainda me aguça a curiosidade para entender o que faz aqui, meu rapaz.
Não me parece um de meus colegas professores, ou um de meus alunos, ainda mais
neste período em que somente estou orientando uma meia dúzia de alunos durante
aulas de mestrado e doutorado. Paralelamente, acrescento que a indústria
farmacêutica com toda a certeza deveria investir nesta área – Ele pára de
súbito, roçando sua barba com a mão direita, enquanto segura o queixo com a
esquerda. Uma figura, com toda a certeza peculiar.
_
Realmente não sou seu aluno, professor ou sequer tenho algum vínculo direto com
a universidade. Sou um amigo de um colega professor, Virgilio. Vim buscar uns
documentos para ele, e entregar alguns outros.
_
Ah, realmente. Realmente – diz ele pensativo, com o olhar distante, tentando
entender algo.
Eu
procuro um interruptor por um tempo, tentando escapar daquele breu enquanto meu
interlocutor continua coçando o queixo e roçando a barba e olhando para o
vazio. Sujeito realmente peculiar. Sem ajuda, acabo intercedendo.
_
O senhor pode me dizer onde é o interruptor?
_
Ah, perdão... Quando você mencionara Virgílio não pude deixar de abstrair
algumas de minhas idéias, de seu guia de caminhos profanos, e sua presença me
fez lembrar bastante... E... Bem, não é realmente importante, não é mesmo?
É
bastante nobre de sua parte apoiar alguém nas condições dele, não?
_
Nem tanto. É só a função de um amigo, não é verdade?
_
Claro, claro. Afinal, os amigos são a função e razão das atividades deste
animal social que conhecemos como homem. E quanto ao interruptor, logo ali, ao
lado de “La Commedia” na estante,
próxima à porta.
Sorrio
animado, como muitas vezes em momentos iniciais de minhas conversas com
Virgilio, reconheço o padrão da primeira provocação, do primeiro momento de
reflexão através de um comentário. E ele normalmente é seguido por um segundo,
imediatamente após o primeiro...
_
“Faça-se a luz” disse Javé, e então a luz se fez e Deus viu que era bom – e é
acendendo a luz quando noto realmente que existe uma tremenda falta de espaço
no local. Livros às centenas espalhados por estantes e prateleiras além de
outros tantos amontoados em pilhas ao lado de dois armários fechados – talvez
estes com mais livros ou anotações, molduras escondidas atrás de estantes e
armários e dezenas e dezenas de quadros estampando títulos, nomeações, honrarias
e algumas fotos de momentos importantes, entre as quais, consigo distinguir uma
ao lado de um grande escritor, aparentemente em um congresso, ou algo do tipo.
_
Anteriormente, o senhor disse que...
_
Por favor... Não se deixe intimidar pelas placas, documentos, honrarias e fotos
com grandes nomes e figuras... Conheces Virgilio, edes bem-vindo aqui. Podeis
me chamar por “você”, ou, como preferem.
_
Bem... Você disse que as indústrias farmacêuticas deveriam investir em
pesquisas de mestrado e doutorado... Da área de literatura?
_
Sim, claro, e de muitas outras áreas do conhecimento humano. Se conseguirem
transformar em pílula, a insomnia estará com seus dias contados. – Ele sorri,
chega a gargalhar com a piada, um tanto sem-graça, é verdade, e me fez lembrar
ainda mais uma típica conversa com meu amigo Virgilio. Gracejos toscos
distribuídos a mil, com alguma intenção de ser sarcástico ou cáustico talvez. –
Porém, ainda não creio que eu possa lhe servir de alguma assistência, ou terei
errado?
_
Não sei bem responder... Se pode me ajudar? Bem, ando um tanto confuso
ultimamente... Quase que dividido em dois... Entre decisões e atitudes. Acho
que estou passando por um turbilhão e, acho que toda e qualquer pessoa com quem
eu possa conversar e... Bem, acho que estou falando com uma pessoa que mal
conheço sobre problemas que provavelmente não lhe interessam, estou certo?
_
Em parte. Realmente não o conheço. Você fez questão de omitir até este presente
momento a mítica de tua designação. Mas erras se credes que não me interesso
por problemas de outrem... Obviamente não observastes direito estas pilhas ao
meu redor. Eu sou um apreciador de contos, e o que é a vida, senão um amontoado
de histórias?
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