Pesquisar este blog

28 de março de 2013

O tolo na colina


(É um capítulo um pouco mais longo, na verdade o prólogo de "O Mago que Ri", que é a história inicial que vem a desencadear os eventos da história em si).

Os números são minha vida.
Nunca entendi nada além deles. E esse é um resumo bastante sucinto e preciso de minha vida.
Aos três anos eu já era capaz de contar de traz pra frente (e obviamente na ordem crescente) até cem, quando cheguei a conclusão lógica da seqüência numérica, e gradualmente, milhares, milhões e todos os demais não me pareceriam mais qualquer mistério. Aos cinco eu já podia delimitar PI até a vigésima quinta casa decimal, sem qualquer equívoco, sendo capaz de ler casas alternadas, de traz para frente e apenas casas específicas... Enfim, acho que já fica uma imagem clara de que sempre tive uma boa memória para essas belezinhas. Só que não era apenas a memória. Eu já desenvolvia um raciocínio matemático aos sete anos compatível ao de meus pais (com vinte e nove e trinta e dois, minha mãe e pai respectivamente) na época.  Os cálculos elementares já não representavam qualquer desafio, frações eram igualmente elementares, e até os oito anos eu estava concluindo a compreensão de geometria, ângulos, senos, cossenos, tangentes e tudo mais que pudessem oferecer.
Com a noção matemática apurada, minha compreensão de outros assuntos não apresentava quaisquer dificuldades, mas como vários professores vieram por definir também no mínimo sem inspiração. Sabia citar as datas e locais históricos com facilidade. Equacionar uma sentença de forma ordenada e coerente, simplíssimo. De forma semelhante, não tive dificuldade com configurações verbais e qualquer desafio que o ensino fundamental e médio tivessem para oferecer. Quando não estava com números, faltava algum lirismo, faltava compreender a poesia das coisas, e confesso um tanto constrangido que ainda falta um pouco. Minha interação social com outras crianças era, no mínimo desajeitada. Me sentia um alien no pátio da escola, vendo as outras crianças correndo e brincando.
Desde muito pequeno fui sozinho, criado por babás, empregadas e avós. Meus pais eram filhos únicos, portanto não tenho tios, primos ou qualquer parente de minha faixa etária. Cresci num apartamento, em que não conhecia meus vizinhos, e o prédio era bem pequeno. Sem espaço para salão de festas ou qualquer espaço para reuniões (as reuniões de condomínio eram sempre no apartamento do síndico). Com o zelo de meus pais e avós – por ser o único e provavelmente último filho e neto deles – só saia acompanhado.  Nisso posso dizer que meus únicos amigos eram realmente os números.
E no pátio da escola, via aquelas crianças correndo, despreocupadas e livres... Me deixava confuso. Foi quando comecei a ver um psicólogo.
Não, não... estou me adiantando.
Deixe-me lembrar... Ah, Por volta dos sete anos comecei a ver um psicólogo quando, somado a meu estranhamento com os demais garotos de minha idade, eu, por sugestão dos professores logo nas primeiras semanas de que eu pulasse alguns semestres. Com nove anos lá estava eu a começar a sexta serie.
Meus pais e minha psicóloga tinham ávidos debates sobre minha alienação (a palavra psicopata vinha à baila regularmente, ocasionalmente sociopata ou alguma variação, como esquisitão, e rejeitado social).
Passei a fazer mais cursos e atividades extras. Aprendia a tocar piano, jogava tênis, e com onze anos tive meu primeiro ano sabático – caso não o fizesse estaria com meu primeiro diploma antes mesmo da puberdade. Nesse ano viajei bastante entre as casas de meus avós, e com eles. Fui à praia, fui a países vizinhos, fui várias vezes ao cinema, ao teatro e conheci diversos esportes.
Pratiquei futebol, vôlei e peteca. E era péssimo em todos e cada um deles.
Comecei a aprender instrumentos musicais. Minha mãe achava que, uma vez que a música trabalha com uma ordenação matemática,talvez minha alma pudesse encontrar alguma inspiração nas escalas musicais. Estendi meu ano sabático, para me dedicar ao mistério que a música se tornava para mim.
Eu devorava música, em cada um dos segundos de meu tempo acordado, e me dedicava freqüentemente ao piano, violão ou outro instrumento qualquer que passava a se amontoar sobre minha casa. Principalmente porque eu via cada vez mais uma inaptidão que me era incompreensível.
Conseguia explicar matematicamente as divisões e seqüências de oitavas, quartas e variações de velocidade, fosse em Bach ou  num inspirado solo de bateria de Keith Moon.
E por mais que equacionasse e provasse matematicamente possível (como confirmaria submetendo minhas formulações para o instituto de matemática de uma universidade, cujos professores doutores levaram alguns meses para conferir os resultados), era incapaz de reproduzir. Passava horas pressionando as teclas do piano, e meus dedos desajeitadamente errariam uma nota, e logo em seguida eu estaria desesperado e frustrado.
Com treze anos eu volto para a escola, iniciando o ensino médio. A diferença de idade é um pouco menor, mas é sensível. Os outros garotos já têm pelos no rosto, as meninas com seus seios ao menos um pouco desenvoltos, e eu ainda dormia com meu pijama do Mickey Mouse.
Claro, eu estava um pouco mais maduro aos treze anos.
Pelo menos um pouco.
Em minhas dezenas de atividades durante os anos pregressos, conseguia simular conversas muito bem com as outras pessoas. Digo simular porque me era realmente estranho demonstrar o mesmo grau de interesse aos tópicos sugeridos, o que fazia com que continuasse sem amigos.
No colégio tive de me adaptar bastante a isso, e tudo que consegui foi ficar ainda mais isolado. Era motivo de chacota pelos outros garotos, chamado de menino-gênio, Einstein Jr. e coisas semelhantemente idiotas, e as garotas, bem... Essas sequer me notavam. Elas buscavam homens mais velhos, ou ao menos garotos velhos o suficiente para dirigirem.
Ter uma carteira de habilitação – este documento tão banal e estúpido – era o passe para qualquer garota de meu colégio. Observando de longe, eu achava incrivelmente babaca e peculiar ao mesmo tempo, quase me fazia ter algum interesse naquilo tudo como se fosse um experimento social. Eram aulas em período integral, portanto passava muito tempo no colégio, e pela primeira vez experimentava alguma noção de liberdade.
A assiduidade não era pré-requisito, e deixar a sala a qualquer momento – caso desejado – era encorajado pelos professores, para não atrapalhar o desenvolvimento da aula para os demais alunos, e com isso eu matava um bocado de aulas.
Achava confusas as explicações dos professores para a solução de problemas físicos sem o uso de derivadas e preferia tratar das explicações diretamente dos livros, fontes de bibliografia proposta. Ficava na biblioteca boa parte do tempo em que estava matando aulas, mas depois de um tempo passei a retirar os livros e lê-los ao redor do campus, observando a movimentação e atividades de meus colegas. Às vezes rabiscava em um caderno qualquer coisa, quando algo me chamava a atenção. E não obstante era Joana Machado Oliveira que me chamava a atenção.
Ela tinha dezesseis anos, era bastante alta (usava sapatos com solas grandes para parecer ainda mais alta, mas acredito que considerando os diversos fatores de meus cálculos com base primaria de semelhança de triângulos de maneira bem rudimentar, sua altura estivesse entre 1,83 e 1,79), magra para a altura (usava roupas justas, mesmo no inverno, que expunham as curvas dos seios e os contornos das coxas e nádegas; seu corpo era bem formado e enganaria facilmente de que fosse mais velha) e incrivelmente popular. Passeava de lado a outro do campus balançando seus longos e perfeitos cabelos loiros, enquanto conversava com amigas, amigos, professores, diretores, funcionários... Ela parecia conhecer todo mundo. E todo mundo parecia gostar dela.
Como se fosse um oposto a mim.
E isso me fascinava.
Ficava observando de longe aquela menina/mulher que, se soubesse de minha existência, seria com algum comentário maldoso, alguma coisa como as tantas outras crueldades que eu já ouvia pela minha idade inferior a dos demais, ou algo sobre meu constante isolamento.
De repente os hormônios me jogavam na puberdade como um grupo de universitários bêbados ao redor de uma piscina faz com um calouro.
E o mundo nunca mais foi o mesmo.
***
Minhas notas eram espetaculares. Os professores todos achavam fascinantes meus resultados, mas alguns questionavam a credibilidade de meus testes, e, vez após vez eu era tratado com desconfiança.
Por exemplo, um dos piores professores da escola, que lecionava física (e que rezava a lenda jamais anotara um dez como resultado em qualquer prova), me chamou à sala do diretor logo após o seu primeiro teste para questionar como eu obtivera uma performance tão alta na prova, uma vez que dificilmente freqüentava suas aulas.
Fiquei calado ouvindo as confabulações do frustrado homem, e, quando ele terminou e juntamente com o diretor me lançavam olhares acusadores, eu calmamente disse:
_ Gostaria que eu fizesse outro teste agora?
Ele ficou calado por um tempo, obviamente constrangido, e tremendo por um tempo ficou pensando no que fazer. O diretor tossia nervosamente, e graças a chegada da secretaria com um assunto mais urgente – um dos alunos do último ano destruía uma janela como parte de uma brincadeira de formandos – e com isso fui gentilmente convidado a me retirar.
A prova jamais voltou a aparecer ou ser assunto de discussão, apesar do professor em questão fazer questão de posteriormente ao evento supervisionar minha carteira e estojo antes do início dos testes. Também ficava me encarando com um ar ameaçador durante o tempo em que eu ficasse dentro da sala (normalmente menos que os demais alunos).
Em uma ocasião, inclusive, ele fez questão de fazer minha prova diferente a de todos os outros alunos, com questões mais complexas, e que requeriam métodos mais avançados de resolução. Ainda assim fui o primeiro a deixar a sala ao término da prova.
Minha nota no semestre com ele? Oito e meio.
Sem nunca ver nenhuma das provas, pois eu tinha certeza que não haviam erros – ele só não queria dar a nota máxima. E algo até me diz que ele faria questão de expor erros caso existissem.
Havia uma necessidade quase fisiológica para ele em encontrar algum defeito na correção de meus testes.
Curiosamente, foi esta disciplina que me aproximou de Joana.
Ela estava com dificuldades na matéria, e tinha aulas com o mesmo professor. Sabendo que eu fazia meus testes com um braço nas costas, ela se aproximou de mim um belo dia e pediu – sem que os demais soubessem – que eu a oferecesse tutoria.
Não precisei pensar duas vezes, e logo estávamos conversando sobre o assunto que mais me fascinava, e que causava certo asco na garota.
Ela tinha dificuldades elementares no assunto, e facilmente se perdia nas linhas de raciocínio dos equacionamentos e fórmulas. Tive de ir aprendendo com o progresso de nossos encontros as melhores formas de abordar o tema, e gradativamente ensinando a ela o conteúdo.
Não foi nada fácil.
Para a prova final, para que passasse de ano, ela precisava tirar no mínimo oito e meio, uma nota que nenhum aluno além de mim sequer arranhava. Havia setes e seis e meios, mas mesmo em exercícios com consulta ou trabalhos para entrega, as notas dos demais alunos raramente chegavam ao oito.
Passamos a semana toda revisando a matéria, página por página, cálculo por cálculo e ela fez diversos exercícios junto comigo, e mesmo pouco antes dela entrar na sala para fazer este teste derradeiro, eu estava com ela, repassando a matéria e ajudando para que se tranqüilizasse.
_ Me deseje sorte – disse enquanto me abraçava forte e carinhosamente, e eu pude sentir o cheiro de seu perfume. Não, na verdade era o seu aroma natural que se sobressaia como fragrância, e era doce e delicado como o toque de sua pele. Era a primeira vez em minha vida que uma garota demonstrava qualquer sinal de afeto por mim, ignorando obviamente meus familiares, e talvez minha psicóloga e algumas professoras. Eu não era o tipo que era abraçado, e isso era novo e incrivelmente bom.
Então ela coroou tudo com algo que disparou meu coração a velocidades comparáveis somente de beija-flores, quando me beijou no rosto como sinal de agradecimento, logo após dizendo um “Muito obrigada pela ajuda”.
Sorri, pateticamente, aturdido e sem reação.
Se abraços me eram estranhos, imagine beijos!
Fiquei me vangloriando diante do espelho com aquela marca rosada perfeita em meu rosto. Aqueles lábios doces... Só podia imaginar sentir o toque deles uma vez mais.
Beijá-los, compulsivamente, tocando aqueles lindos cabelos louros exalando o cheiro da mulher mais linda que eu conhecia. Aquela mulher perfeita.
Este foi um dia muito importante para mim, em muitos sentidos.
Entrando em meus catorze anos, meus hormônios com algum atraso ao restante de meu corpo finalmente amadureciam – assim como outra parte, que passaria a me causar desconfortáveis experiências futuras, ao ‘amadurecer’ repentinamente durante uma aula. Sentia que estava aprendendo o que era a paixão, e de fato estava perdidamente apaixonado.
Mas mais do que isso, havia um ponto vingativo e incrivelmente delicioso.
Ela passara com nota máxima no exame final (nove), e toda vez que eu voltasse a vislumbrar aquele professor, nos anos vindouros, um sorriso maroto e sarcástico surgiria quase espontaneamente em meus lábios.
Não só por ter ensinado toda a matéria a uma garota com uma média terrível – e com qualidade superior a todo o semestre dele, haja vista a evolução após minhas tutorias – mas pela nota máxima em si. Um nove. Seco. Sem a prova para consulta do erro, se existisse.
Uma vitória silenciosa, e saborosa.
***
Minha amizade com Joana terminou rapidamente, assim como seus problemas com notas. Ela não precisava mais de mim, e poderia se focar somente em seus amigos populares, fingindo que o elefante branco não estava ali, e foi bastante difícil lidar com tudo aquilo a princípio.
Eu ficava lembrando do abraço e do beijo, teorizando que havia algo mais ali, que existia um sentido maior, que existia até mesmo alguma forma de sentimento... Sentimento qualquer que fosse, e não essa indiferença tamanha que ela apresentava.
Ela era uma formanda agora, afinal. Saia com seus amigos mais velhos babacas, dirigindo carros e bebendo cerveja.
Ela estava curtindo sua adolescência como toda garota de sua idade deveria, mas eu era um garotinho que não aprendera como lidar com essas coisas, e isso me fez voltar com a terapia (não sei se ficou claro, mas a partir do ano sabático com meus avós, as sessões com psicólogos foram diminuindo até deixarem de existir, em questão de meses, e eu não sentia falta). Foi meu pior ano de desempenho escolar. Conturbado, confuso e acabei entrando em uma profunda depressão. Meu isolamento piorava, meu interesse pela matemática, por música ou por qualquer outra coisa era mínimo.
Constantemente estava indiferente a tudo e ao mundo.
Nada me parecia bem, bom ou suficientemente interessante.
Um ano cinza, enquanto me trancava em meu quarto, entre longas horas de auto-molesto e frustrantes dias de solidão, repetição e lições enfadonhas, pessimamente repetidas em uma ladainha eterna pelos catedráticos.
Ao final do ano recebi um convite de uma universidade, de um professor de literatura que, após um congresso internacional, encontrara minhas formulações sobre música. Doutor Borges, como bem me lembro, com amplos conhecimentos de literatura alemã e russa, em nome do reitor de sua instituição de ensino superior convidava-me a conhecer o Brasil, e sua universidade em nome de um programa para aproximar alunos brilhantes da pesquisa na universidade.
Pouco ou quase nada conhecia do Brasil antes disso. Era uma terra estranha, distante e onde as pessoas falavam diferente. Isso era tudo que sabia, além das datas da guerra do Paraguai e de outros poucos e enfadonhos eventos históricos em que as fronteiras foram atravessadas.
Meus avós me apresentaram a Florianópolis durante nossas viagens, e como vim a descobrir parecia como um país completamente diferente. Como o Uruguai nos era avesso na Buenos Aires onde cresci, mesmo que só bastasse atravessar o rio de La Plata.
Foi em Belo Horizonte que cheguei, longe da badalação de cidades praianas, longe da megalópole da América Latina, São Paulo, e, numa universidade conflitante em busca de uma identidade. Dividiam-se tumultuadas as ciências exatas, humanas e médicas em um campus que parecia mais uma enorme fazenda, afastada da civilização.
Meus pais adoraram, logo de princípio. O ar limpo, com aquele típico cheiro de mato que compunha a faculdade em contraste com uma certa badalação de cidade grande, agitada e com um enorme conflito anacrônico com o desenvolvimento e progresso tomando lugar cada vez mais próximo da arquitetura notável de um período histórico do país, num caos que parecia gritar para todos os visitantes, mas tão corriqueiro aos locais. Belo Horizonte era de fato fascinante.
E mesmo antes de conhecer o bom doutor, eu já estava encantado com as perspectivas da nova cidade, nova vida e parecia que o período cinza e estranho do ano anterior não fora mais que um sonho, uma névoa ou qualquer coisa próxima de uma breve recordação.
Motivado, pela primeira vez em algum tempo sentia que havia um sorriso em meu rosto.
Por todo o fim de semana, eu e meus pais desbravamos a capital mineira, nos fartando de pratos típicos, varrendo a cidade de cima a baixo e procurando novos e excitantes pontos para conhecermos. Meu pai inclusive não poderia ficar para o restante da semana, devido a seu trabalho, e aproveitamos o máximo de tempo que tínhamos disponível.
Na segunda, eu e minha mãe partimos, logo cedo para a universidade, para encontrar o professor, algo que o mínimo que posso dizer é que foi uma surpresa.
“Então este é o garoto prodígio” ecoa pela longa sala revestida de livros, teses e papéis de todos os tipos e sortes sobre cada uma das quatro paredes que compõem o espaço, incluindo o lugar onde deveriam estar uma janela e o interruptor. O homem com um cavanhaque acinzentado, assim como seu rabo de cavalo – que faz contraste a sua careca na fronte – permanece sentado em sua cadeira, por detrás de uma mesa que parecia querer rivalizar com as paredes em termos de papel, elevando-se em pilhas e mais pilhas. Ele calmamente pita um cachimbo velho e fedorento, algo que parece incrivelmente perigoso para um ambiente tão inflamável, mas sua segurança e confiança em fazê-lo deixam claro que era um hábito obtido com tanto tempo de prática que lhe era impossível imaginar a possibilidade de acontecer o pior. Apesar do teor de pergunta, não inferia qualquer entonação para essa. Ele falava gozado, como se enrolasse a língua, criasse novas palavras e falasse coisas aleatórias, buscando nelas inferir algum sentido. Segundo ele, havia uma poesia reversa em meu estudo. Um lirismo que eu, provável e obviamente jamais imaginaria, e de fato, a literatura convoluta para ele era o que para mim em breve seriam as teorias quânticas. Não falávamos exatamente a mesma língua e mesmo assim nos entendíamos perfeitamente. Por uma hora e meia, aproximadamente, conversei com o homem, e estava fascinado pelo modo como ele falava, que mal notei que com isso nos atrasávamos à reunião com o reitor, bem menos receptivo, entusiasmado e conversador, em partes pela demora. Borges parecia não se importar, e ao que indicava não era a primeira vez que deixava o homem esperando.
E essa era apenas meu primeiro contato com o mundo universitário, com uma realidade adulta, e que parecia tão igualmente estúpida, mesquinha e ilógica quanto minha vida colegial (talvez mais), quanto as triviais disputas por poder e oligarquias nos pátios, corredores e demais espaços. Havia a diferença, que, neste contexto, como o doutor sempre com seu charuto aceso – indiferente se estava em um ambiente fechado ou se havia uma criança por perto – ele não estava sozinho.
O ensino superior, como um oásis levemente diferenciado do restante do universo palpável e coerente trazia a perspectiva de que, pelo menos uma vez no mundo e universo, era necessário um mínimo de inteligência, e por mais que pessoas inteligentes sejam contra a segregação e quaisquer formas de discriminação, existem e são postas à prova diversas condições para que aos meios universitários um mínimo de coeficiente intelectual seja requerido.
Pude voltar para casa com um sorriso no rosto, uma perspectiva fascinante de voltar ao Brasil para desenvolver uma pesquisa em parceria com a universidade mineira, que despertara algum frenesi em um professor, pós-doutor com um projeto usando fractais para medição de tempo de música (que como Borges definira “o típico projeto teórico que, se muito jamais será proveitoso fora do meio acadêmico”).
Com frustração descobri, pouco mais tarde ao conseguir meu diploma do ensino médio, que o convite não mais tinha validade, mas a universidade ainda mantinha suas portas abertas para meu ingresso como aluno, caso aprovado fosse ao processo seletivo. Parecia justo, e a informação chegara tarde, haja feita que as datas para o processo haviam findado.
Sem muita empolgação comecei minhas aulas no ensino superior em Montevidéu, onde logo conseguiria uma bolsa de jovem pesquisador. Pela primeira vez estava morando sozinho, apesar de apenas uma hora de balsa da Buenos Aires de meus pais e avós (que chamavam Montevidéu de a Buenos Aires pobre), e que constantemente estavam por me visitar.
Passei alguns anos morando no Uruguai como pesquisador, e, ao contrário de meu curto tempo como estudante durante o ensino regular, eu trilhava a faculdade lentamente, cursando o mínimo de disciplinas por semestre, fazendo o máximo de trabalhos remunerados de pesquisa que eu pudesse. Levei quase oito anos para concluir minha faculdade, apesar da conclusão de bacharelado em matemática e física simultaneamente, com um caminho escancarado para o titulo de mestre, pendente apenas de uma banca avaliatória e uma ou duas disciplinas que poderia cursar com uma mão atrás das costas.
Não estava exatamente interessado nisso.
Minha vida universitária que agora com um orçamento mais rechonchudo com minhas aulas somando a pesquisa teórica e exposição de trabalhos em congresso, me possibilitava uma vida de festas e pequenas orgias que eu jamais imaginaria em minha tenra adolescência.
Por isso a perspectiva de acabar com isso em meros meses (um ou dois semestres se muito) me parecia aterradora. E me pus a buscar uma oportunidade de ‘complementar’ meu mestrado com um intercâmbio, ou engatilhar uma longa e enfadonha pesquisa de doutorado.
Uma vez aceito pela catedrática de São Paulo (com a exigência de penosos testes de proficiência, e a repetição de disciplinas para me adequar ao currículo por eles oferecido), não pensei duas vezes, e parti novamente ao Brasil, rechaçando minhas parcas economias para me alocar em uma pequena república nos primeiros meses até me habituar às rotinas da nova universidade.
São Paulo era um monstro completamente diferente de tudo que jamais vira em minha vida. Havia uma consciência viva que pulsava pelas ruas da cidade, fosse dia, noite, madrugada ou o que fosse. Mesmo com o tom cinzento e o intragável ar poluído da metrópole, há uma beleza inexpugnável que clama pela atenção do mais distraído passante. São Paulo, com seus contrastes e disparates insanos, com seu barulho infinito e infernal, com suas luzes, seu néon, com os milionários quase dividindo parede com os miseráveis, com o caótico fluxo interminável de veículos, São Paulo pulsava e cintilava vida. São Paulo com seus prédios, história e monumentos a um onanismo cultural, com as empresas, indústrias, o comércio e as casas se engalfinhando por um pequeno espaço de terra contra as escolas, universidades, livrarias e bibliotecas, tudo com um protuberante paraíso pro luxo e glamour que quase se perde em meio ao pó e a sujeira. São Paulo tem alma. São Paulo te chama como um canto de sereia, e crava em teu coração o tesão pela vida, que depois disso, é impossível abandonar.
E eu estava adorando cada minuto.
São Paulo agora era minha vida.
***
Meu doutorado estava andando a pleno vapor, após o sucesso em todos os testes de proficiência, e graças a uma série de favores e indicações, eu lecionava para duas turmas (ganhando bem mais com minhas aulas que com pesquisa no Uruguai), e intercalava com as disciplinas para a obtenção do título. Após uma série de reuniões com meu tutor e orientador, decidimos por eliminar a banca examinatória de mestrado, pleiteando diretamente o título posterior, em vista do desenvolvimento avançado de minha pesquisa.
Estava vivendo bem, considerando-se as circunstâncias. A vida era muito mais cara que podia imaginar quando deixei Montevidéu e dividir o apartamento se tornava uma constante briga de egos, como antes jamais experimentara. As festas vinham diminuindo, por mais que as ofertas para elas só aumentasse. Meus horários pareciam estabelecer um ritmo próprio para reger minhas decisões que aliado ao fato da dificuldade natural de transpor distâncias na cidade, sempre se somava uma boa quantia de tempo ao deslocamento.
Voltava a meus dias de menino pequeno em Buenos Aires, isolado dentro de casa com meus números e contas, passando os finais de semana em casa enfiado entre papéis de relatórios, livros, teses e tantas outras leituras que tão pouco acrescentavam a meu trabalho que todo o resultado que eu conseguia era uma estafa. E uma úlcera.
Sim, com vinte e seis anos eu tinha uma úlcera, algo que meu avô (o mais velho da família) em seus noventa e sete anos, com audição perfeita e visão muito melhor que a minha sequer podia imaginar o que era. E ele que desde muito pequeno, segundo o que nos constava entre os doze e dezesseis anos já trabalhava em uma mina de carvão para ajudar no sustento da casa no sudoeste de Quintilha – ao menos era o que me dizia, nunca imaginei que existissem mineiradoras na região, mas as fotos mostravam vovô ainda garoto com equipamento, em uma pausa com seus demais colegas de trabalho. Lá está ele fumando, como veio a se tornar hábito de todos os seus colegas, algo que na época era comum e legal, e para eles até recomendado pelos representantes da companhia para ‘limpar os pulmões’ depois de inalar carvão durante todo o dia trabalhando. Ele nunca parou, mesmo que tenha diminuído bastante com o tempo, e tem uma saúde de ferro, com pulmões mais saudáveis que de gente mais nova que eu.
E ele que ainda fuma não tem qualquer enfisema, embolia ou outra doença pulmonar. Mesmo seus dentes são sadios e fortes (o homem não usa dentaduras!). Eu com uma úlcera.
Parecia um momento bom como qualquer outro para largar mão do mundo por um momento, deixar minha pesquisa, e sair de casa. Ver a natureza, respirar ar puro, andar descalço e toda aquela bobeiragem new wave. Depois de dois dias bastante comuns, e eu diria até chatos, em meio a tanto verde da Serra da Mantiqueira, voltei para a capital, e procurei a primeira festa disponível que eu pudesse encontrar. Não por nada, mas eu já passei uma vida inteira isolado e sozinho e sofrendo por isso, pra que abandonar um lugar que fervilha gente, que pulsa vida em toda rua e esquina, para ver paisagens bonitas? Até porque numa escolha entre os muitos morros de uma serra e um par delicado de montes de uma moça, desde minha paixonite colegial eu efetivamente preferi o segundo.
Neste restante de semana de folga, eu fui a duas raves, três festas de repúblicas e mais alguns bares e noitadas através da cidade. Acordei bêbado, dormi sem saber como cheguei em casa, e em uma das noites nem cheguei mesmo - acabei por dormir na rua, se bem que dormir não é exatamente o termo apropriado, talvez ‘apagar’. Foram dias de ressaca, enxaquecas e bebedeiras épicas, e algumas histórias igualmente interessantes, como o casal lésbico que me chamou para padrinho de seu futuro casamento, ou encontrar uma aluna sueca de intercâmbio em um bar de jazz e descobrir que mesmo sem falar uma palavra que o outro poderia entender – o inglês dela era bastante enrolado e o meu fracassa vergonhosamente em parecer qualquer coisa de natural até mesmo de ter alguma dicção – que nós acabaríamos dividindo uma cama (até gostaria de contar essa história em detalhes, mas acho que o resumo da semana, com as enxaquecas e ressacas resume o tom). Ou o time de futebol profissional do interior que estava comemorando uma vitória sobre o time da capital, fechando o bar e pagando rodadas pra todo mundo... E tiveram outras. Aconteceu tanta coisa estranha e nova nesse intervalo tão curto que parecia que minha vida estava tentando compensar o tempo perdido.
Na sexta, numa festa de república, eu encontrei uma garota, sem nenhuma qualidade marcante ou que chamasse aos olhos. Não era linda, e mesmo bonita fosse um exagero. Era normal. Não, não é isso... Ela tinha traços lindíssimos que contrastavam com detalhes horríveis, como olheiras escuras, pesadas, quase como um guaxinim, deixando o rosto dela um tanto pesado, inchado, e mesmo assim, seus longos cabelos negros e seus olhos azuis brilhantes ressoavam. Se aproximou de mim pedindo um teco ou algo do tipo.
E falava muito. Muito. MUITO.
Acho que devia ter uma necessidade fisiológica para falar incessantemente, como os tubarões que precisam continuar nadando constantemente para manter o organismo funcionando, talvez o sangue dela não chegue ao cérebro a menos que continue constantemente movimentando a mandíbula para cima e para baixo enquanto se esforça para quebrar recordes de palavras por minuto.
Tentei escapar dela algumas vezes, e até me lembro de ficar aliviado em encontrar paz e sossego em uma ida ao banheiro para me aliviar... Sabe como é? República, festa pequena... Mesmo que tenha muito mais gente que poderia se esperar para um ambiente daqueles, ainda é muito difícil se perder de alguém.
Toda vez que eu saia do radar dela, ela me encontrava de novo.
E de novo.
E de novo.
Até que eu simplesmente desisti, e fui o mais próximo possível de alguma fonte de barulho que pudesse conflitar com a voz dela. O rádio não era exatamente potente, mas servia.
Por volta das duas da manhã, o silêncio se fez, e a multidão se esforçou para correr em todas as direções possíveis e disponíveis, quando um idiota bombado entra no recinto gritando e brandindo ordens. Ele faz questão de mostrar seu uniforme e o revólver em seu coldre para qualquer um que imagine questioná-lo. Ninguém o faz.
Leva pouco para estar diante de mim.
“O senhor está se divertindo conversando com minha namorada?”
Por um instante minha cabeça tentou se situar. Os olhos entreabertos, pesarosos, olhavam ao redor, e tudo que conseguia ver era o piscar de luzes vermelhas e azuis vindo da rua. A casa estava deserta, exceto por mim, o policial e a mulher que não parava de falar – que era também namorada do policial. Mesmo minha mente entorpecida pelo álcool sabia que isso não tinha como terminar bem, algo que logo se confirmou quando ele fez questão de acertar um tapa de costa de mão na moça ao primeiro sinal de que ela fosse se ou me defender.
Pensei numa série de coisas que eu poderia dizer. “Até onde sei não estou cometendo nenhum crime” ou alguma outra bravata do tipo, como pedir por um advogado. Meu corpo e minha mente não se entendiam, e tudo que eu queria era terminar a noite sem ferimentos, por isso permaneci calado, deixando que os eventos se desenrolassem. Talvez ele me ignoraria.
E enquanto batia na moça, xingando-a de vadia, cretina e mais algumas outras ofensas que ouvi pela primeira vez naquela noite, eu pensava em deixar a cena de fininho, ao que percebi inútil quando um segundo policial me segurou pelo pescoço, e pressionando meu braço direito contra as costas me empurrou até a viatura. Da mesma forma que eu, não proferiu uma palavra. Fiquei aguardando no veículo por alguns instantes, até que vi o primeiro policial deixando a casa, sozinho, e seguindo na direção do carro onde eu estava. Entrou pelo banco do passageiro, e começou a falar, com um tom sarcástico e cruel para me ameaçar. “Sabe o que aconteceu com o último sujeito que olhou torto pra minha namorada, cabo Matias?” diz com um riso sinistro nos lábios.
Eu não respondia.
Chocado, pela primeira vez em minha vida eu apelei por algum poder supremo, e rezei, baixinho, em pensamentos, eu rezava para escapar dessa enrascada. Afinal, o que eu podia fazer? Bêbado, sem conhecer ninguém que podia me ajudar, sem um advogado, amigo ou o que fosse para me indicar caminho nessa hora de desespero... Só podia torcer por complacência, porque compaixão obviamente ali não haveria.
Pararam o carro, numa região periférica, perto de uma favela. Um deles acendeu um cigarro, e conversaram, quase um murmúrio. Então me mandaram descer.
“Você não é de falar muito, não?”
Estava de costas para eles, enquanto caminhava, seguindo orientações.
Súbito um estampido.
BLAM.
***
Realmente não é o final que eu esperava, é meio súbito, deliberado e se eu tivesse que opinar, diria até que apressado... Mas temos de aceitar o que a vida nos traz. Por mais frustrante que seja às vezes.
***

Nenhum comentário:

Postar um comentário