(É um capítulo um pouco mais longo, na verdade o prólogo de "O Mago que Ri", que é a história inicial que vem a desencadear os eventos da história em si).
Os números são minha vida.
Nunca entendi nada além deles. E esse é
um resumo bastante sucinto e preciso de minha vida.
Aos três anos eu já era capaz de contar
de traz pra frente (e obviamente na ordem crescente) até cem, quando cheguei a
conclusão lógica da seqüência numérica, e gradualmente, milhares, milhões e
todos os demais não me pareceriam mais qualquer mistério. Aos cinco eu já podia
delimitar PI até a vigésima quinta casa decimal, sem qualquer equívoco, sendo
capaz de ler casas alternadas, de traz para frente e apenas casas
específicas... Enfim, acho que já fica uma imagem clara de que sempre tive uma
boa memória para essas belezinhas. Só que não era apenas a memória. Eu já
desenvolvia um raciocínio matemático aos sete anos compatível ao de meus pais
(com vinte e nove e trinta e dois, minha mãe e pai respectivamente) na
época. Os cálculos elementares já não
representavam qualquer desafio, frações eram igualmente elementares, e até os
oito anos eu estava concluindo a compreensão de geometria, ângulos, senos,
cossenos, tangentes e tudo mais que pudessem oferecer.
Com a noção matemática apurada, minha
compreensão de outros assuntos não apresentava quaisquer dificuldades, mas como
vários professores vieram por definir também no mínimo sem inspiração. Sabia
citar as datas e locais históricos com facilidade. Equacionar uma sentença de
forma ordenada e coerente, simplíssimo. De forma semelhante, não tive
dificuldade com configurações verbais e qualquer desafio que o ensino
fundamental e médio tivessem para oferecer. Quando não estava com números,
faltava algum lirismo, faltava compreender a poesia das coisas, e confesso um
tanto constrangido que ainda falta um pouco. Minha interação social com outras
crianças era, no mínimo desajeitada. Me sentia um alien no pátio da escola,
vendo as outras crianças correndo e brincando.
Desde muito pequeno fui sozinho, criado
por babás, empregadas e avós. Meus pais eram filhos únicos, portanto não tenho
tios, primos ou qualquer parente de minha faixa etária. Cresci num apartamento,
em que não conhecia meus vizinhos, e o prédio era bem pequeno. Sem espaço para
salão de festas ou qualquer espaço para reuniões (as reuniões de condomínio
eram sempre no apartamento do síndico). Com o zelo de meus pais e avós – por
ser o único e provavelmente último filho e neto deles – só saia
acompanhado. Nisso posso dizer que meus
únicos amigos eram realmente os números.
E no pátio da escola, via aquelas
crianças correndo, despreocupadas e livres... Me deixava confuso. Foi quando
comecei a ver um psicólogo.
Não, não... estou me adiantando.
Deixe-me lembrar... Ah, Por volta dos
sete anos comecei a ver um psicólogo quando, somado a meu estranhamento com os
demais garotos de minha idade, eu, por sugestão dos professores logo nas
primeiras semanas de que eu pulasse alguns semestres. Com nove anos lá estava
eu a começar a sexta serie.
Meus pais e minha psicóloga tinham
ávidos debates sobre minha alienação (a palavra psicopata vinha à baila
regularmente, ocasionalmente sociopata ou alguma variação, como esquisitão, e
rejeitado social).
Passei a fazer mais cursos e atividades
extras. Aprendia a tocar piano, jogava tênis, e com onze anos tive meu primeiro
ano sabático – caso não o fizesse estaria com meu primeiro diploma antes mesmo
da puberdade. Nesse ano viajei bastante entre as casas de meus avós, e com
eles. Fui à praia, fui a países vizinhos, fui várias vezes ao cinema, ao teatro
e conheci diversos esportes.
Pratiquei futebol, vôlei e peteca. E era
péssimo em todos e cada um deles.
Comecei a aprender instrumentos
musicais. Minha mãe achava que, uma vez que a música trabalha com uma ordenação
matemática,talvez minha alma pudesse encontrar alguma inspiração nas escalas
musicais. Estendi meu ano sabático, para me dedicar ao mistério que a música se
tornava para mim.
Eu devorava música, em cada um dos
segundos de meu tempo acordado, e me dedicava freqüentemente ao piano, violão
ou outro instrumento qualquer que passava a se amontoar sobre minha casa.
Principalmente porque eu via cada vez mais uma inaptidão que me era
incompreensível.
Conseguia explicar matematicamente as
divisões e seqüências de oitavas, quartas e variações de velocidade, fosse em
Bach ou num inspirado solo de bateria de
Keith Moon.
E por mais que equacionasse e provasse
matematicamente possível (como confirmaria submetendo minhas formulações para o
instituto de matemática de uma universidade, cujos professores doutores levaram
alguns meses para conferir os resultados), era incapaz de reproduzir. Passava
horas pressionando as teclas do piano, e meus dedos desajeitadamente errariam
uma nota, e logo em seguida eu estaria desesperado e frustrado.
Com treze anos eu volto para a escola,
iniciando o ensino médio. A diferença de idade é um pouco menor, mas é sensível.
Os outros garotos já têm pelos no rosto, as meninas com seus seios ao menos um
pouco desenvoltos, e eu ainda dormia com meu pijama do Mickey Mouse.
Claro, eu estava um pouco mais maduro
aos treze anos.
Pelo menos um pouco.
Em minhas dezenas de atividades durante
os anos pregressos, conseguia simular conversas muito bem com as outras
pessoas. Digo simular porque me era realmente estranho demonstrar o mesmo grau
de interesse aos tópicos sugeridos, o que fazia com que continuasse sem amigos.
No colégio tive de me adaptar bastante a
isso, e tudo que consegui foi ficar ainda mais isolado. Era motivo de chacota
pelos outros garotos, chamado de menino-gênio, Einstein Jr. e coisas
semelhantemente idiotas, e as garotas, bem... Essas sequer me notavam. Elas
buscavam homens mais velhos, ou ao menos garotos velhos o suficiente para
dirigirem.
Ter uma carteira de habilitação – este
documento tão banal e estúpido – era o passe para qualquer garota de meu
colégio. Observando de longe, eu achava incrivelmente babaca e peculiar ao
mesmo tempo, quase me fazia ter algum interesse naquilo tudo como se fosse um
experimento social. Eram aulas em período integral, portanto passava muito
tempo no colégio, e pela primeira vez experimentava alguma noção de liberdade.
A assiduidade não era pré-requisito, e
deixar a sala a qualquer momento – caso desejado – era encorajado pelos
professores, para não atrapalhar o desenvolvimento da aula para os demais
alunos, e com isso eu matava um bocado de aulas.
Achava confusas as explicações dos
professores para a solução de problemas físicos sem o uso de derivadas e
preferia tratar das explicações diretamente dos livros, fontes de bibliografia
proposta. Ficava na biblioteca boa parte do tempo em que estava matando aulas,
mas depois de um tempo passei a retirar os livros e lê-los ao redor do campus,
observando a movimentação e atividades de meus colegas. Às vezes rabiscava em
um caderno qualquer coisa, quando algo me chamava a atenção. E não obstante era
Joana Machado Oliveira que me chamava a atenção.
Ela tinha dezesseis anos, era bastante
alta (usava sapatos com solas grandes para parecer ainda mais alta, mas
acredito que considerando os diversos fatores de meus cálculos com base
primaria de semelhança de triângulos de maneira bem rudimentar, sua altura
estivesse entre 1,83 e 1,79), magra para a altura (usava roupas justas, mesmo
no inverno, que expunham as curvas dos seios e os contornos das coxas e
nádegas; seu corpo era bem formado e enganaria facilmente de que fosse mais
velha) e incrivelmente popular. Passeava de lado a outro do campus balançando
seus longos e perfeitos cabelos loiros, enquanto conversava com amigas, amigos,
professores, diretores, funcionários... Ela parecia conhecer todo mundo. E todo
mundo parecia gostar dela.
Como se fosse um oposto a mim.
E isso me fascinava.
Ficava observando de longe aquela menina/mulher
que, se soubesse de minha existência, seria com algum comentário maldoso,
alguma coisa como as tantas outras crueldades que eu já ouvia pela minha idade
inferior a dos demais, ou algo sobre meu constante isolamento.
De repente os hormônios me jogavam na
puberdade como um grupo de universitários bêbados ao redor de uma piscina faz
com um calouro.
E o mundo nunca mais foi o mesmo.
***
Minhas notas eram espetaculares. Os
professores todos achavam fascinantes meus resultados, mas alguns questionavam
a credibilidade de meus testes, e, vez após vez eu era tratado com
desconfiança.
Por exemplo, um dos piores professores
da escola, que lecionava física (e que rezava a lenda jamais anotara um dez
como resultado em qualquer prova), me chamou à sala do diretor logo após o seu
primeiro teste para questionar como eu obtivera uma performance tão alta na
prova, uma vez que dificilmente freqüentava suas aulas.
Fiquei calado ouvindo as confabulações
do frustrado homem, e, quando ele terminou e juntamente com o diretor me
lançavam olhares acusadores, eu calmamente disse:
_ Gostaria que eu fizesse outro teste
agora?
Ele ficou calado por um tempo,
obviamente constrangido, e tremendo por um tempo ficou pensando no que fazer. O
diretor tossia nervosamente, e graças a chegada da secretaria com um assunto
mais urgente – um dos alunos do último ano destruía uma janela como parte de
uma brincadeira de formandos – e com isso fui gentilmente convidado a me
retirar.
A prova jamais voltou a aparecer ou ser
assunto de discussão, apesar do professor em questão fazer questão de
posteriormente ao evento supervisionar minha carteira e estojo antes do início
dos testes. Também ficava me encarando com um ar ameaçador durante o tempo em
que eu ficasse dentro da sala (normalmente menos que os demais alunos).
Em uma ocasião, inclusive, ele fez
questão de fazer minha prova diferente a de todos os outros alunos, com
questões mais complexas, e que requeriam métodos mais avançados de resolução.
Ainda assim fui o primeiro a deixar a sala ao término da prova.
Minha nota no semestre com ele? Oito e
meio.
Sem nunca ver nenhuma das provas, pois
eu tinha certeza que não haviam erros – ele só não queria dar a nota máxima. E
algo até me diz que ele faria questão de expor erros caso existissem.
Havia uma necessidade quase fisiológica
para ele em encontrar algum defeito na correção de meus testes.
Curiosamente, foi esta disciplina que me
aproximou de Joana.
Ela estava com dificuldades na matéria,
e tinha aulas com o mesmo professor. Sabendo que eu fazia meus testes com um
braço nas costas, ela se aproximou de mim um belo dia e pediu – sem que os
demais soubessem – que eu a oferecesse tutoria.
Não precisei pensar duas vezes, e logo
estávamos conversando sobre o assunto que mais me fascinava, e que causava
certo asco na garota.
Ela tinha dificuldades elementares no
assunto, e facilmente se perdia nas linhas de raciocínio dos equacionamentos e
fórmulas. Tive de ir aprendendo com o progresso de nossos encontros as melhores
formas de abordar o tema, e gradativamente ensinando a ela o conteúdo.
Não foi nada fácil.
Para a prova final, para que passasse de
ano, ela precisava tirar no mínimo oito e meio, uma nota que nenhum aluno além
de mim sequer arranhava. Havia setes e seis e meios, mas mesmo em exercícios
com consulta ou trabalhos para entrega, as notas dos demais alunos raramente
chegavam ao oito.
Passamos a semana toda revisando a
matéria, página por página, cálculo por cálculo e ela fez diversos exercícios
junto comigo, e mesmo pouco antes dela entrar na sala para fazer este teste
derradeiro, eu estava com ela, repassando a matéria e ajudando para que se
tranqüilizasse.
_ Me deseje sorte – disse enquanto me
abraçava forte e carinhosamente, e eu pude sentir o cheiro de seu perfume. Não,
na verdade era o seu aroma natural que se sobressaia como fragrância, e era doce
e delicado como o toque de sua pele. Era a primeira vez em minha vida que uma
garota demonstrava qualquer sinal de afeto por mim, ignorando obviamente meus
familiares, e talvez minha psicóloga e algumas professoras. Eu não era o tipo
que era abraçado, e isso era novo e incrivelmente bom.
Então ela coroou tudo com algo que
disparou meu coração a velocidades comparáveis somente de beija-flores, quando
me beijou no rosto como sinal de agradecimento, logo após dizendo um “Muito
obrigada pela ajuda”.
Sorri, pateticamente, aturdido e sem
reação.
Se abraços me eram estranhos, imagine
beijos!
Fiquei me vangloriando diante do espelho
com aquela marca rosada perfeita em meu rosto. Aqueles lábios doces... Só podia
imaginar sentir o toque deles uma vez mais.
Beijá-los, compulsivamente, tocando
aqueles lindos cabelos louros exalando o cheiro da mulher mais linda que eu
conhecia. Aquela mulher perfeita.
Este foi um dia muito importante para
mim, em muitos sentidos.
Entrando em meus catorze anos, meus
hormônios com algum atraso ao restante de meu corpo finalmente amadureciam –
assim como outra parte, que passaria a me causar desconfortáveis experiências
futuras, ao ‘amadurecer’ repentinamente durante uma aula. Sentia que estava
aprendendo o que era a paixão, e de fato estava perdidamente apaixonado.
Mas mais do que isso, havia um ponto
vingativo e incrivelmente delicioso.
Ela passara com nota máxima no exame
final (nove), e toda vez que eu voltasse a vislumbrar aquele professor, nos
anos vindouros, um sorriso maroto e sarcástico surgiria quase espontaneamente
em meus lábios.
Não só por ter ensinado toda a matéria a
uma garota com uma média terrível – e com qualidade superior a todo o semestre
dele, haja vista a evolução após minhas tutorias – mas pela nota máxima em si.
Um nove. Seco. Sem a prova para consulta do erro, se existisse.
Uma vitória silenciosa, e saborosa.
***
Minha amizade com Joana terminou
rapidamente, assim como seus problemas com notas. Ela não precisava mais de
mim, e poderia se focar somente em seus amigos populares, fingindo que o
elefante branco não estava ali, e foi bastante difícil lidar com tudo aquilo a
princípio.
Eu ficava lembrando do abraço e do
beijo, teorizando que havia algo mais ali, que existia um sentido maior, que
existia até mesmo alguma forma de sentimento... Sentimento qualquer que fosse,
e não essa indiferença tamanha que ela apresentava.
Ela era uma formanda agora, afinal. Saia
com seus amigos mais velhos babacas, dirigindo carros e bebendo cerveja.
Ela estava curtindo sua adolescência como
toda garota de sua idade deveria, mas eu era um garotinho que não aprendera
como lidar com essas coisas, e isso me fez voltar com a terapia (não sei se
ficou claro, mas a partir do ano sabático com meus avós, as sessões com
psicólogos foram diminuindo até deixarem de existir, em questão de meses, e eu
não sentia falta). Foi meu pior ano de desempenho escolar. Conturbado, confuso
e acabei entrando em uma profunda depressão. Meu isolamento piorava, meu
interesse pela matemática, por música ou por qualquer outra coisa era mínimo.
Constantemente estava indiferente a tudo
e ao mundo.
Nada me parecia bem, bom ou
suficientemente interessante.
Um ano cinza, enquanto me trancava em
meu quarto, entre longas horas de auto-molesto e frustrantes dias de solidão,
repetição e lições enfadonhas, pessimamente repetidas em uma ladainha eterna
pelos catedráticos.
Ao final do ano recebi um convite de uma
universidade, de um professor de literatura que, após um congresso
internacional, encontrara minhas formulações sobre música. Doutor Borges, como
bem me lembro, com amplos conhecimentos de literatura alemã e russa, em nome do
reitor de sua instituição de ensino superior convidava-me a conhecer o Brasil,
e sua universidade em nome de um programa para aproximar alunos brilhantes da
pesquisa na universidade.
Pouco ou quase nada conhecia do Brasil
antes disso. Era uma terra estranha, distante e onde as pessoas falavam
diferente. Isso era tudo que sabia, além das datas da guerra do Paraguai e de
outros poucos e enfadonhos eventos históricos em que as fronteiras foram
atravessadas.
Meus avós me apresentaram a
Florianópolis durante nossas viagens, e como vim a descobrir parecia como um
país completamente diferente. Como o Uruguai nos era avesso na Buenos Aires
onde cresci, mesmo que só bastasse atravessar o rio de La Plata.
Foi em Belo Horizonte que cheguei, longe
da badalação de cidades praianas, longe da megalópole da América Latina, São
Paulo, e, numa universidade conflitante em busca de uma identidade. Dividiam-se
tumultuadas as ciências exatas, humanas e médicas em um campus que parecia mais
uma enorme fazenda, afastada da civilização.
Meus pais adoraram, logo de princípio. O
ar limpo, com aquele típico cheiro de mato que compunha a faculdade em
contraste com uma certa badalação de cidade grande, agitada e com um enorme
conflito anacrônico com o desenvolvimento e progresso tomando lugar cada vez
mais próximo da arquitetura notável de um período histórico do país, num caos
que parecia gritar para todos os visitantes, mas tão corriqueiro aos locais.
Belo Horizonte era de fato fascinante.
E mesmo antes de conhecer o bom doutor,
eu já estava encantado com as perspectivas da nova cidade, nova vida e parecia
que o período cinza e estranho do ano anterior não fora mais que um sonho, uma névoa
ou qualquer coisa próxima de uma breve recordação.
Motivado, pela primeira vez em algum
tempo sentia que havia um sorriso em meu rosto.
Por todo o fim de semana, eu e meus pais
desbravamos a capital mineira, nos fartando de pratos típicos, varrendo a
cidade de cima a baixo e procurando novos e excitantes pontos para conhecermos.
Meu pai inclusive não poderia ficar para o restante da semana, devido a seu
trabalho, e aproveitamos o máximo de tempo que tínhamos disponível.
Na segunda, eu e minha mãe partimos,
logo cedo para a universidade, para encontrar o professor, algo que o mínimo
que posso dizer é que foi uma surpresa.
“Então este é o garoto prodígio” ecoa
pela longa sala revestida de livros, teses e papéis de todos os tipos e sortes
sobre cada uma das quatro paredes que compõem o espaço, incluindo o lugar onde
deveriam estar uma janela e o interruptor. O homem com um cavanhaque
acinzentado, assim como seu rabo de cavalo – que faz contraste a sua careca na
fronte – permanece sentado em sua cadeira, por detrás de uma mesa que parecia
querer rivalizar com as paredes em termos de papel, elevando-se em pilhas e
mais pilhas. Ele calmamente pita um cachimbo velho e fedorento, algo que parece
incrivelmente perigoso para um ambiente tão inflamável, mas sua segurança e
confiança em fazê-lo deixam claro que era um hábito obtido com tanto tempo de
prática que lhe era impossível imaginar a possibilidade de acontecer o pior.
Apesar do teor de pergunta, não inferia qualquer entonação para essa. Ele
falava gozado, como se enrolasse a língua, criasse novas palavras e falasse
coisas aleatórias, buscando nelas inferir algum sentido. Segundo ele, havia uma
poesia reversa em meu estudo. Um lirismo que eu, provável e obviamente jamais
imaginaria, e de fato, a literatura convoluta para ele era o que para mim em
breve seriam as teorias quânticas. Não falávamos exatamente a mesma língua e
mesmo assim nos entendíamos perfeitamente. Por uma hora e meia,
aproximadamente, conversei com o homem, e estava fascinado pelo modo como ele falava,
que mal notei que com isso nos atrasávamos à reunião com o reitor, bem menos
receptivo, entusiasmado e conversador, em partes pela demora. Borges parecia
não se importar, e ao que indicava não era a primeira vez que deixava o homem
esperando.
E essa era apenas meu primeiro contato
com o mundo universitário, com uma realidade adulta, e que parecia tão
igualmente estúpida, mesquinha e ilógica quanto minha vida colegial (talvez
mais), quanto as triviais disputas por poder e oligarquias nos pátios, corredores
e demais espaços. Havia a diferença, que, neste contexto, como o doutor sempre
com seu charuto aceso – indiferente se estava em um ambiente fechado ou se
havia uma criança por perto – ele não estava sozinho.
O ensino superior, como um oásis
levemente diferenciado do restante do universo palpável e coerente trazia a
perspectiva de que, pelo menos uma vez no mundo e universo, era necessário um
mínimo de inteligência, e por mais que pessoas inteligentes sejam contra a
segregação e quaisquer formas de discriminação, existem e são postas à prova
diversas condições para que aos meios universitários um mínimo de coeficiente
intelectual seja requerido.
Pude voltar para casa com um sorriso no
rosto, uma perspectiva fascinante de voltar ao Brasil para desenvolver uma
pesquisa em parceria com a universidade mineira, que despertara algum frenesi
em um professor, pós-doutor com um projeto usando fractais para medição de
tempo de música (que como Borges definira “o típico projeto teórico que, se
muito jamais será proveitoso fora do meio acadêmico”).
Com frustração descobri, pouco mais
tarde ao conseguir meu diploma do ensino médio, que o convite não mais tinha
validade, mas a universidade ainda mantinha suas portas abertas para meu
ingresso como aluno, caso aprovado fosse ao processo seletivo. Parecia justo, e
a informação chegara tarde, haja feita que as datas para o processo haviam
findado.
Sem muita empolgação comecei minhas
aulas no ensino superior em Montevidéu, onde logo conseguiria uma bolsa de
jovem pesquisador. Pela primeira vez estava morando sozinho, apesar de apenas
uma hora de balsa da Buenos Aires de meus pais e avós (que chamavam Montevidéu
de a Buenos Aires pobre), e que constantemente estavam por me visitar.
Passei alguns anos morando no Uruguai
como pesquisador, e, ao contrário de meu curto tempo como estudante durante o
ensino regular, eu trilhava a faculdade lentamente, cursando o mínimo de
disciplinas por semestre, fazendo o máximo de trabalhos remunerados de pesquisa
que eu pudesse. Levei quase oito anos para concluir minha faculdade, apesar da
conclusão de bacharelado em matemática e física simultaneamente, com um caminho
escancarado para o titulo de mestre, pendente apenas de uma banca avaliatória e
uma ou duas disciplinas que poderia cursar com uma mão atrás das costas.
Não estava exatamente interessado nisso.
Minha vida universitária que agora com
um orçamento mais rechonchudo com minhas aulas somando a pesquisa teórica e
exposição de trabalhos em congresso, me possibilitava uma vida de festas e pequenas
orgias que eu jamais imaginaria em minha tenra adolescência.
Por isso a perspectiva de acabar com
isso em meros meses (um ou dois semestres se muito) me parecia aterradora. E me
pus a buscar uma oportunidade de ‘complementar’ meu mestrado com um intercâmbio,
ou engatilhar uma longa e enfadonha pesquisa de doutorado.
Uma vez aceito pela catedrática de São
Paulo (com a exigência de penosos testes de proficiência, e a repetição de
disciplinas para me adequar ao currículo por eles oferecido), não pensei duas
vezes, e parti novamente ao Brasil, rechaçando minhas parcas economias para me
alocar em uma pequena república nos primeiros meses até me habituar às rotinas
da nova universidade.
São Paulo era um monstro completamente
diferente de tudo que jamais vira em minha vida. Havia uma consciência viva que
pulsava pelas ruas da cidade, fosse dia, noite, madrugada ou o que fosse. Mesmo
com o tom cinzento e o intragável ar poluído da metrópole, há uma beleza
inexpugnável que clama pela atenção do mais distraído passante. São Paulo, com
seus contrastes e disparates insanos, com seu barulho infinito e infernal, com
suas luzes, seu néon, com os milionários quase dividindo parede com os
miseráveis, com o caótico fluxo interminável de veículos, São Paulo pulsava e cintilava
vida. São Paulo com seus prédios, história e monumentos a um onanismo cultural,
com as empresas, indústrias, o comércio e as casas se engalfinhando por um
pequeno espaço de terra contra as escolas, universidades, livrarias e
bibliotecas, tudo com um protuberante paraíso pro luxo e glamour que quase se
perde em meio ao pó e a sujeira. São Paulo tem alma. São Paulo te chama como um
canto de sereia, e crava em teu coração o tesão pela vida, que depois disso, é
impossível abandonar.
E eu estava adorando cada minuto.
São Paulo agora era minha vida.
***
Meu doutorado estava andando a pleno
vapor, após o sucesso em todos os testes de proficiência, e graças a uma série
de favores e indicações, eu lecionava para duas turmas (ganhando bem mais com
minhas aulas que com pesquisa no Uruguai), e intercalava com as disciplinas
para a obtenção do título. Após uma série de reuniões com meu tutor e
orientador, decidimos por eliminar a banca examinatória de mestrado, pleiteando
diretamente o título posterior, em vista do desenvolvimento avançado de minha
pesquisa.
Estava vivendo bem, considerando-se as
circunstâncias. A vida era muito mais cara que podia imaginar quando deixei
Montevidéu e dividir o apartamento se tornava uma constante briga de egos, como
antes jamais experimentara. As festas vinham diminuindo, por mais que as
ofertas para elas só aumentasse. Meus horários pareciam estabelecer um ritmo
próprio para reger minhas decisões que aliado ao fato da dificuldade natural de
transpor distâncias na cidade, sempre se somava uma boa quantia de tempo ao
deslocamento.
Voltava a meus dias de menino pequeno em
Buenos Aires, isolado dentro de casa com meus números e contas, passando os
finais de semana em casa enfiado entre papéis de relatórios, livros, teses e
tantas outras leituras que tão pouco acrescentavam a meu trabalho que todo o
resultado que eu conseguia era uma estafa. E uma úlcera.
Sim, com vinte e seis anos eu tinha uma
úlcera, algo que meu avô (o mais velho da família) em seus noventa e sete anos,
com audição perfeita e visão muito melhor que a minha sequer podia imaginar o
que era. E ele que desde muito pequeno, segundo o que nos constava entre os doze
e dezesseis anos já trabalhava em uma mina de carvão para ajudar no sustento da
casa no sudoeste de Quintilha – ao menos era o que me dizia, nunca imaginei que
existissem mineiradoras na região, mas as fotos mostravam vovô ainda garoto com
equipamento, em uma pausa com seus demais colegas de trabalho. Lá está ele
fumando, como veio a se tornar hábito de todos os seus colegas, algo que na
época era comum e legal, e para eles até recomendado pelos representantes da
companhia para ‘limpar os pulmões’ depois de inalar carvão durante todo o dia
trabalhando. Ele nunca parou, mesmo que tenha diminuído bastante com o tempo, e
tem uma saúde de ferro, com pulmões mais saudáveis que de gente mais nova que
eu.
E ele que ainda fuma não tem qualquer
enfisema, embolia ou outra doença pulmonar. Mesmo seus dentes são sadios e
fortes (o homem não usa dentaduras!). Eu com uma úlcera.
Parecia um momento bom como qualquer
outro para largar mão do mundo por um momento, deixar minha pesquisa, e sair de
casa. Ver a natureza, respirar ar puro, andar descalço e toda aquela bobeiragem
new wave. Depois de dois dias bastante comuns, e eu diria até chatos, em meio a
tanto verde da Serra da Mantiqueira, voltei para a capital, e procurei a
primeira festa disponível que eu pudesse encontrar. Não por nada, mas eu já
passei uma vida inteira isolado e sozinho e sofrendo por isso, pra que
abandonar um lugar que fervilha gente, que pulsa vida em toda rua e esquina,
para ver paisagens bonitas? Até porque numa escolha entre os muitos morros de
uma serra e um par delicado de montes de uma moça, desde minha paixonite
colegial eu efetivamente preferi o segundo.
Neste restante de semana de folga, eu
fui a duas raves, três festas de repúblicas e mais alguns bares e noitadas
através da cidade. Acordei bêbado, dormi sem saber como cheguei em casa, e em
uma das noites nem cheguei mesmo - acabei por dormir na rua, se bem que dormir
não é exatamente o termo apropriado, talvez ‘apagar’. Foram dias de ressaca,
enxaquecas e bebedeiras épicas, e algumas histórias igualmente interessantes,
como o casal lésbico que me chamou para padrinho de seu futuro casamento, ou
encontrar uma aluna sueca de intercâmbio em um bar de jazz e descobrir que
mesmo sem falar uma palavra que o outro poderia entender – o inglês dela era
bastante enrolado e o meu fracassa vergonhosamente em parecer qualquer coisa de
natural até mesmo de ter alguma dicção – que nós acabaríamos dividindo uma cama
(até gostaria de contar essa história em detalhes, mas acho que o resumo da
semana, com as enxaquecas e ressacas resume o tom). Ou o time de futebol
profissional do interior que estava comemorando uma vitória sobre o time da
capital, fechando o bar e pagando rodadas pra todo mundo... E tiveram outras.
Aconteceu tanta coisa estranha e nova nesse intervalo tão curto que parecia que
minha vida estava tentando compensar o tempo perdido.
Na sexta, numa festa de república, eu
encontrei uma garota, sem nenhuma qualidade marcante ou que chamasse aos olhos.
Não era linda, e mesmo bonita fosse um exagero. Era normal. Não, não é isso...
Ela tinha traços lindíssimos que contrastavam com detalhes horríveis, como
olheiras escuras, pesadas, quase como um guaxinim, deixando o rosto dela um
tanto pesado, inchado, e mesmo assim, seus longos cabelos negros e seus olhos
azuis brilhantes ressoavam. Se aproximou de mim pedindo um teco ou algo do
tipo.
E falava muito. Muito. MUITO.
Acho que devia ter uma necessidade
fisiológica para falar incessantemente, como os tubarões que precisam continuar
nadando constantemente para manter o organismo funcionando, talvez o sangue
dela não chegue ao cérebro a menos que continue constantemente movimentando a
mandíbula para cima e para baixo enquanto se esforça para quebrar recordes de
palavras por minuto.
Tentei escapar dela algumas vezes, e até
me lembro de ficar aliviado em encontrar paz e sossego em uma ida ao banheiro
para me aliviar... Sabe como é? República, festa pequena... Mesmo que tenha
muito mais gente que poderia se esperar para um ambiente daqueles, ainda é
muito difícil se perder de alguém.
Toda vez que eu saia do radar dela, ela
me encontrava de novo.
E de novo.
E de novo.
Até que eu simplesmente desisti, e fui o
mais próximo possível de alguma fonte de barulho que pudesse conflitar com a
voz dela. O rádio não era exatamente potente, mas servia.
Por volta das duas da manhã, o silêncio
se fez, e a multidão se esforçou para correr em todas as direções possíveis e
disponíveis, quando um idiota bombado entra no recinto gritando e brandindo
ordens. Ele faz questão de mostrar seu uniforme e o revólver em seu coldre para
qualquer um que imagine questioná-lo. Ninguém o faz.
Leva pouco para estar diante de mim.
“O senhor está se divertindo conversando
com minha namorada?”
Por um instante minha cabeça tentou se
situar. Os olhos entreabertos, pesarosos, olhavam ao redor, e tudo que
conseguia ver era o piscar de luzes vermelhas e azuis vindo da rua. A casa
estava deserta, exceto por mim, o policial e a mulher que não parava de falar –
que era também namorada do policial. Mesmo minha mente entorpecida pelo álcool
sabia que isso não tinha como terminar bem, algo que logo se confirmou quando
ele fez questão de acertar um tapa de costa de mão na moça ao primeiro sinal de
que ela fosse se ou me defender.
Pensei numa série de coisas que eu
poderia dizer. “Até onde sei não estou cometendo nenhum crime” ou alguma outra
bravata do tipo, como pedir por um advogado. Meu corpo e minha mente não se
entendiam, e tudo que eu queria era terminar a noite sem ferimentos, por isso
permaneci calado, deixando que os eventos se desenrolassem. Talvez ele me
ignoraria.
E enquanto batia na moça, xingando-a de
vadia, cretina e mais algumas outras ofensas que ouvi pela primeira vez naquela
noite, eu pensava em deixar a cena de fininho, ao que percebi inútil quando um
segundo policial me segurou pelo pescoço, e pressionando meu braço direito
contra as costas me empurrou até a viatura. Da mesma forma que eu, não proferiu
uma palavra. Fiquei aguardando no veículo por alguns instantes, até que vi o
primeiro policial deixando a casa, sozinho, e seguindo na direção do carro onde
eu estava. Entrou pelo banco do passageiro, e começou a falar, com um tom
sarcástico e cruel para me ameaçar. “Sabe o que aconteceu com o último sujeito
que olhou torto pra minha namorada, cabo Matias?” diz com um riso sinistro nos
lábios.
Eu não respondia.
Chocado, pela primeira vez em minha vida
eu apelei por algum poder supremo, e rezei, baixinho, em pensamentos, eu rezava
para escapar dessa enrascada. Afinal, o que eu podia fazer? Bêbado, sem
conhecer ninguém que podia me ajudar, sem um advogado, amigo ou o que fosse
para me indicar caminho nessa hora de desespero... Só podia torcer por
complacência, porque compaixão obviamente ali não haveria.
Pararam o carro, numa região periférica,
perto de uma favela. Um deles acendeu um cigarro, e conversaram, quase um
murmúrio. Então me mandaram descer.
“Você não é de falar muito, não?”
Estava de costas para eles, enquanto
caminhava, seguindo orientações.
Súbito um estampido.
BLAM.
***
Realmente não é o final que eu esperava,
é meio súbito, deliberado e se eu tivesse que opinar, diria até que
apressado... Mas temos de aceitar o que a vida nos traz. Por mais frustrante
que seja às vezes.
***
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