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27 de março de 2013

As planícies gélidas do inferno


Seus olhos cor de ametista brilham com intensidade, parecendo mais lívidos naquela penumbra que em um ambiente devidamente iluminado. As monções forçam a busca por abrigo, e enquanto o ancião entretinha as crianças com fábulas e histórias de deuses mortos e heróis das lendas, ela sentia a fúria que pulsava em suas veias. Sabia que naquele exato instante em que estava presa em uma caverna minúscula com um lampejo de luz para uma multidão de crianças e idosos, e nenhuma provisão, ela sabia que seu marido já estava morto, muito antes de atravessar as fronteiras da Aquilônia. Assassinado pelos próprios soldados, que em breve voltariam para saquear o que sobrara daquela terra sem esperança, com seu regresso somente adiado graças a tempestade presente.
Era a segunda vez em toda sua vida que recebia visões premonitórias, e como na outra ocasião, sabia que já era tarde demais para impedi-la. Aquela caverna seria a danação de todos os que tentassem ali se esconder ou refugiar, assim como da cidade restaria em breve somente os destroços em chamas e os ecos do choro de crianças e da maldição de suas mães.
Não haveria lugar salvo, ou figura incólume após a sua chegada. O exército de duzentos homens solicitados pelo rei para servir num conflito com o povo da Nemédia, logo se provou mais ambicioso que prudente, e um único momento foi o necessário para que estes soldados se tornassem mercenários. Os cavalos de guerra galopavam na lama e chuva com fúria, carregando os ventos da morte.
A chuva castigava pesadamente o vilarejo, e Hela sabia que os únicos cavalos ainda disponíveis eram velhos e fracos, uma vez que aqueles que eram aptos partiram com seus soldados. Somente o sacerdote Thull mantinha o último corcel preparado para combate se assim fosse a vontade do rei. Com toda a lama e a água, partir até a casa do sacerdote seria loucura e para sua infelicidade a única opção. Afastava-se delicadamente da caverna com a intenção furtiva. Naquele momento, naqueles tempos de guerra, o sacerdote Thull era o único resquício de liderança para a comunidade, sendo ele um dos muitos conselheiros reais e um homem muito respeitado por sua estratégia militar e seu conhecimento nas artes arcanas. Era um homem de grande nobreza e astúcia, o que não o impediria de ter parte no conluio arquitetado. Por isso Hela precisava agir com clareza, que aos poucos lhe escapava.
Não tarda para chegar ao sacerdote e sem ser anunciada, adentra o recinto, tremendo de frio em virtude de suas roupas todas encharcadas. Ela logo vê o homem em postura meditativa, de fronte a uma pequena vela diante de seu rosto para controlar sua respiração. Como homem religioso, não era difícil imaginar que estava ali clamando pelos deuses por dádivas e proteção, fosse na vitória dos soldados ou na preparação da colheita, qualquer apoio seria bem vindo, mesmo que a não interferência.
_ Nobre Thull, eu vejo os ventos ceifadores se aproximam. Precisamos abandonar nossas terras até que os conflitos na Nemédia se findem e nosso amado rei possa enviar reforços. Estamos vulneráveis a ataques de ladrões e guerreiros dos exércitos inimigos podem ver nosso vilarejo como posto estratégico.
_ O que dizes, mulher? Foste acometida por visões ou loucura? Nossos mais valiosos homens foram enviados para reforçar a armada real, e todo recurso de transporte deste povo pertence a tal empreitada, como abandonaríamos essas planícies? Tudo o que precisamos é de proteção para as monções, e com Crom como testemunha, o que me cabe como oferenda e sacrifício está sendo feito.
_ E de fato o será, nobre Thull, que Crom se apiede de sua alma... – sussurra Hela assombrada pelas visões de danação e como que possuída por um ímpeto sobrenatural ao sacar a adaga cerimonial do sacerdote e eliminá-lo, com um único golpe. Fatal e limpo. Sem qualquer remorso, ela cobre o corpo ainda quente com um tapete e parte vestindo as grossas peles do urso marrom que cobrem os ombros dos lordes daquele povo desde muito tempo, em direção ao corcel que a salvaria.
Em poder da alva criatura, ela pôde perceber que a tempestade dava sinais de findar. O trote lento graças a lama, nem de certo agradável aquela gelada chuva a tomar-lhe o focinho. E a água logo daria lugar a neve. O trote já lento se torna ainda mais vagaroso e complicado. A respiração do cavalo é fumarenta, e Hela sente a neve juntando sobre suas costas, e seu rosto, inteiramente descoberto e exposto ao gelo que lhe corta as faces. Sua visão nota que o branco toma conta do horizonte em todas as direções para onde possa pensar em ir, com exceção das nuvens de um cinza escuro e forte, prenunciando uma tempestade, ou talvez os sinais da morte e devastação que os céus trarão para aquelas paragens.
E fica evidente que a próxima vítima, caso continuem neste destino, será justamente seu transporte.
A turbulência não parece encontrar fim, e Hela sobre o lombo da pobre criatura eqüina testa os limites de força e resistência de ambos. Só havia um destino pior que aquele, que não a morte. Era o terror.
Terror que trotava cada vez em maior velocidade. A cavalgada dos traidores e malditos.
Cada vez que ela fechava seus olhos, fosse numa singela piscada fosse por um instante de cansaço via com clareza e detalhes a morte e destruição. O sangue a fartar o solo e os rostos gananciosos dos usurpadores. O choro de crianças ecoava a mais longas distâncias, sobrando somente anciãos e mães impotentes buscando refúgio como possibilidade de sobrevivência daquele que um dia já foi um povo honrado e nobre. Via seu marido, apunhalado pelas costas sem saber de quem foi a mão que lhe feriu. Se fora seu amigo de infância Tolamir, que cavalgava a seu lado desde que partiram, ou se o estimado guerreiro Arion, considerado o mais valente e forte homem de toda Aquilônia, participando de mais de quarenta batalhas em seus curtos anos de existência, e regressando todas essas vezes sem sequer um ferimento. Talvez Ogür, o enviado do rei, que sempre cobiçara o posto avançado nestas terras. Ou então Ingadir que tantas vezes se opusera as idéias da investida real na Nemédia. Quem sabe algum dos outros soldados que se sentira desprezado nas campanhas anteriores, ou mesmo algum dos vizinhos de terras próximas com seus estratagemas mesquinhos. Não havia uma mão sequer sem uma adaga ou espada, e mesmo que não estivesse banhada em sangue, lhe recairia a mesma culpa.
Caiu de sua montaria, que desfalecia pela exaustão, e aturdida pelo choque sentiu sua mente lhe abandonando enquanto abraçava o contingente de trevas que se aproximava. Com isso viu o futuro e os tempos vindouros. A mudança geológica, a formação e estabelecimento de fronteiras e territórios, e o comportamento humano movido a ambição e guerras e violência que lhe parecia a única coisa incapaz de mudança. Ela viu terras além de sua compreensão, instrumentos além de qualquer feitiçaria seria capaz de produzir. Vislumbrou o passar de tempos e eras. Viu estes povos crescendo e recriando o mundo. De novo. E de novo. Cidades crescendo com a velocidade de caudalosos rios, cidades crescendo graças aos poderosos minérios. E o aço que dava ao mais forte a vitória dá lugar a estratégia e o planejamento. As guerras crescem e se espalham como a própria vida humana. Agora havia um mundo pulsante e vivo, cheio de gente que não mais sabe o que era a vida antes das estradas, rotas marítimas e condições sanitárias. E recursos e facilidades. E ferramentas e máquinas. O mundo se recobre com o carvão, e a fumaça do vapor e do óleo de animais há muito extintos. Viu montanhas de gelo derreterem no mundo, para que este fosse novamente conquistado pelo fogo e chamas criadas pelo homem. Viu cogumelos gigantes capazes de dizimar a existência e viu as trevas eternas ocupando o lugar das labaredas. Viu tudo isso, e do pouco que entendeu, jamais seria capaz de repetir. Sentia algo estranho em seu corpo, e sua mente rodopiava em círculos maciços e cada vez mais velozes.
Então acordou.
Com sorte, ou talvez destino, ela acorda aquecida dentro de uma caverna pertencente a algum eremita, com todos os sinais de que outras pessoas deveriam ficar longe. Haviam tochas espalhadas que mal iluminavam as próprias tochas. Um homem, com sua vasta barba cinzenta e uma careca reluzindo mesmo para aquele ambiente parcamente iluminado a observava.
 “O que está havendo, meu senhor?”, perguntou assim que seus sentidos pareciam sintonizados em seu próprio corpo.
“Há uma tempestade se aproximando minha filha, e as areias do tempo me dizem que tanto pode ser o nascimento do salvador destas terras como a morte de tudo que conhecemos”. Ela não conseguia ver além de um vulto enquanto falava, mesmo com a proximidade um do outro assim como de uma flama. O homem portava seu cajado que tinha uma gema esverdeada na ponta, a qual ele envolvia com sua mão tal qual uma garra. Às vezes parecia que faíscas queriam brotar de tal pedra, e às vezes de fato saiam.
Hela não entendeu as palavras do ancião, e mesmo que quisesse dizer qualquer coisa, ou mesmo fazer, percebeu a voz do homem ficando mais distante enquanto lhe dizia:
“Sua vida está perdida, pequenina, mas sua morte não será em vão. Seu espírito queimará e bradará por justiça e vingança enquanto houver vivalma para rogar e ouvir teu sussurro, mesmo que teus lábios já estejam putrefatos. Os séculos farão com que as pessoas se esqueçam e mesmo assim sua fúria não será perdoada. E isso é um destino maior que muitos jamais encontrarão”.
A caverna estava abandonada. Somente Hela e uma tigela de um aquecido caldo continuavam naquele ambiente, e, assim que a tempestade de neve cessou, nada mais.
Hela seguiu por campos alvos, sentindo o gelo queimando seus pés, e com o passar dos dias ela via a cada passo que a necrose tomava conta de seus membros inferiores. Parecia loucura, e talvez até fosse, mas ela jurava ver uma linha esverdeada e brilhante percorrendo seu corpo toda vez que sentia dor.
A desolação e desgraça se aproximavam e não havia mais o que fazer além de fugir.
Os campos gelados e desérticos só se alteravam quando avistava algum vilarejo saqueado e seus ouvidos captavam o choro de crianças e a maldição de mulheres abandonadas para morrer em meio ao balé frenético do fogo e fumaça.
Dias, talvez semanas se passaram enquanto ela seguia pela neve, faminta e cansada, quando um grupo de três ou quatro cavaleiros a avistou pela distância, cercando-a. Parecia uma mulher velha e decrépita, mesmo que tão poucos dias se passassem desde que abandonara seu vilarejo. Seus cabelos que outrora foram vivos e radiantes agora estavam pálidos e caindo. Suas formas femininas bem delineadas davam lugar a membros carcomidos pela neve. Seus olhos que brilhavam ametista cediam lugar a uma catarata horrível. Até seus dentes pareciam moles e frágeis demais, acompanhados de uma vermelhidão e sangramento de escorbutos.
Os homens procuravam por dinheiro ou qualquer coisa de valor que aquela mulher pudesse carregar, e só notaram um casaco de peles que ninguém ousaria vestir após ter tocado tão amaldiçoada figura.
Hela lançava agruras a seus algozes em um idioma antigo e perdido aos ouvidos dos homens daquela época enquanto rogava pelos espíritos e deuses, em vista de sua fúria e desgraça que para que os vilões não encontrem descanso até que ela própria estivesse em paz, e sentia o desprezo por aquele grupelho que jamais serviria para lutar ao lado de seu marido quando este era vivo.
O primeiro deles a acertou com a espada na testa, e viu o corpo inerte cair ao chão. Hela sangrava bastante e sua boca tremia enquanto dizia e repetia palavras que não pareciam lógicas aos ouvidos daqueles em sua volta. Mais pareciam balbucios insanos de alguém encontrando seus instantes finais. Eles levaram o casaco, como um troféu daquele dia.
Seu corpo foi enterrado por camada após camada da neve vindoura, permanecendo ali por anos, décadas e gerações a fio. Em busca de algo que sua carcaça mortal jamais encontraria.
Ela continuaria ali, enquanto existisse uma mínima fibra, fio de cabelo, osso ou o que fosse de seu corpo, e só teria repouso e calma quando a vingança lhe fosse concedida, e não mais existisse resquício ou descendente dos bastardos que chacinaram seu marido, vila e vida.
Com o tempo foi encontrada e como era a tradição, seu corpo foi envolvido em lençóis e jogado ao mar numa pira para encontrar o repouso, mas tudo que encontrou foi outra terra para continuar a existir.
Esse parecia cada vez mais um destino pior que a morte.

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