Seus olhos cor de ametista brilham com
intensidade, parecendo mais lívidos naquela penumbra que em um ambiente
devidamente iluminado. As monções forçam a busca por abrigo, e enquanto o
ancião entretinha as crianças com fábulas e histórias de deuses mortos e heróis
das lendas, ela sentia a fúria que pulsava em suas veias. Sabia que naquele
exato instante em que estava presa em uma caverna minúscula com um lampejo de
luz para uma multidão de crianças e idosos, e nenhuma provisão, ela sabia que
seu marido já estava morto, muito antes de atravessar as fronteiras da
Aquilônia. Assassinado pelos próprios soldados, que em breve voltariam para
saquear o que sobrara daquela terra sem esperança, com seu regresso somente
adiado graças a tempestade presente.
Era a segunda vez em toda sua vida que
recebia visões premonitórias, e como na outra ocasião, sabia que já era tarde
demais para impedi-la. Aquela caverna seria a danação de todos os que tentassem
ali se esconder ou refugiar, assim como da cidade restaria em breve somente os
destroços em chamas e os ecos do choro de crianças e da maldição de suas mães.
Não haveria lugar salvo, ou figura
incólume após a sua chegada. O exército de duzentos homens solicitados pelo rei
para servir num conflito com o povo da Nemédia, logo se provou mais ambicioso
que prudente, e um único momento foi o necessário para que estes soldados se
tornassem mercenários. Os cavalos de guerra galopavam na lama e chuva com fúria,
carregando os ventos da morte.
A chuva castigava pesadamente o
vilarejo, e Hela sabia que os únicos cavalos ainda disponíveis eram velhos e
fracos, uma vez que aqueles que eram aptos partiram com seus soldados. Somente
o sacerdote Thull mantinha o último corcel preparado para combate se assim
fosse a vontade do rei. Com toda a lama e a água, partir até a casa do
sacerdote seria loucura e para sua infelicidade a única opção. Afastava-se
delicadamente da caverna com a intenção furtiva. Naquele momento, naqueles
tempos de guerra, o sacerdote Thull era o único resquício de liderança para a
comunidade, sendo ele um dos muitos conselheiros reais e um homem muito
respeitado por sua estratégia militar e seu conhecimento nas artes arcanas. Era
um homem de grande nobreza e astúcia, o que não o impediria de ter parte no
conluio arquitetado. Por isso Hela precisava agir com clareza, que aos poucos
lhe escapava.
Não tarda para chegar ao sacerdote e sem
ser anunciada, adentra o recinto, tremendo de frio em virtude de suas roupas
todas encharcadas. Ela logo vê o homem em postura meditativa, de fronte a uma
pequena vela diante de seu rosto para controlar sua respiração. Como homem
religioso, não era difícil imaginar que estava ali clamando pelos deuses por
dádivas e proteção, fosse na vitória dos soldados ou na preparação da colheita,
qualquer apoio seria bem vindo, mesmo que a não interferência.
_ Nobre Thull, eu vejo os ventos
ceifadores se aproximam. Precisamos abandonar nossas terras até que os
conflitos na Nemédia se findem e nosso amado rei possa enviar reforços. Estamos
vulneráveis a ataques de ladrões e guerreiros dos exércitos inimigos podem ver
nosso vilarejo como posto estratégico.
_ O que dizes, mulher? Foste acometida
por visões ou loucura? Nossos mais valiosos homens foram enviados para reforçar
a armada real, e todo recurso de transporte deste povo pertence a tal
empreitada, como abandonaríamos essas planícies? Tudo o que precisamos é de
proteção para as monções, e com Crom como testemunha, o que me cabe como
oferenda e sacrifício está sendo feito.
_ E de fato o será, nobre Thull, que
Crom se apiede de sua alma... – sussurra Hela assombrada pelas visões de
danação e como que possuída por um ímpeto sobrenatural ao sacar a adaga
cerimonial do sacerdote e eliminá-lo, com um único golpe. Fatal e limpo. Sem
qualquer remorso, ela cobre o corpo ainda quente com um tapete e parte vestindo
as grossas peles do urso marrom que cobrem os ombros dos lordes daquele povo
desde muito tempo, em direção ao corcel que a salvaria.
Em poder da alva criatura, ela pôde
perceber que a tempestade dava sinais de findar. O trote lento graças a lama,
nem de certo agradável aquela gelada chuva a tomar-lhe o focinho. E a água logo
daria lugar a neve. O trote já lento se torna ainda mais vagaroso e complicado.
A respiração do cavalo é fumarenta, e Hela sente a neve juntando sobre suas
costas, e seu rosto, inteiramente descoberto e exposto ao gelo que lhe corta as
faces. Sua visão nota que o branco toma conta do horizonte em todas as direções
para onde possa pensar em ir, com exceção das nuvens de um cinza escuro e
forte, prenunciando uma tempestade, ou talvez os sinais da morte e devastação
que os céus trarão para aquelas paragens.
E fica evidente que a próxima vítima,
caso continuem neste destino, será justamente seu transporte.
A turbulência não parece encontrar fim,
e Hela sobre o lombo da pobre criatura eqüina testa os limites de força e
resistência de ambos. Só havia um destino pior que aquele, que não a morte. Era
o terror.
Terror que trotava cada vez em maior
velocidade. A cavalgada dos traidores e malditos.
Cada vez que ela fechava seus olhos,
fosse numa singela piscada fosse por um instante de cansaço via com clareza e
detalhes a morte e destruição. O sangue a fartar o solo e os rostos gananciosos
dos usurpadores. O choro de crianças ecoava a mais longas distâncias, sobrando
somente anciãos e mães impotentes buscando refúgio como possibilidade de
sobrevivência daquele que um dia já foi um povo honrado e nobre. Via seu
marido, apunhalado pelas costas sem saber de quem foi a mão que lhe feriu. Se
fora seu amigo de infância Tolamir, que cavalgava a seu lado desde que
partiram, ou se o estimado guerreiro Arion, considerado o mais valente e forte
homem de toda Aquilônia, participando de mais de quarenta batalhas em seus
curtos anos de existência, e regressando todas essas vezes sem sequer um
ferimento. Talvez Ogür, o enviado do rei, que sempre cobiçara o posto avançado nestas
terras. Ou então Ingadir que tantas vezes se opusera as idéias da investida
real na Nemédia. Quem sabe algum dos outros soldados que se sentira desprezado
nas campanhas anteriores, ou mesmo algum dos vizinhos de terras próximas com
seus estratagemas mesquinhos. Não havia uma mão sequer sem uma adaga ou espada,
e mesmo que não estivesse banhada em sangue, lhe recairia a mesma culpa.
Caiu de sua montaria, que desfalecia
pela exaustão, e aturdida pelo choque sentiu sua mente lhe abandonando enquanto
abraçava o contingente de trevas que se aproximava. Com isso viu o futuro e os
tempos vindouros. A mudança geológica, a formação e estabelecimento de
fronteiras e territórios, e o comportamento humano movido a ambição e guerras e
violência que lhe parecia a única coisa incapaz de mudança. Ela viu terras além
de sua compreensão, instrumentos além de qualquer feitiçaria seria capaz de
produzir. Vislumbrou o passar de tempos e eras. Viu estes povos crescendo e
recriando o mundo. De novo. E de novo. Cidades crescendo com a velocidade de
caudalosos rios, cidades crescendo graças aos poderosos minérios. E o aço que
dava ao mais forte a vitória dá lugar a estratégia e o planejamento. As guerras
crescem e se espalham como a própria vida humana. Agora havia um mundo pulsante
e vivo, cheio de gente que não mais sabe o que era a vida antes das estradas,
rotas marítimas e condições sanitárias. E recursos e facilidades. E ferramentas
e máquinas. O mundo se recobre com o carvão, e a fumaça do vapor e do óleo de
animais há muito extintos. Viu montanhas de gelo derreterem no mundo, para que
este fosse novamente conquistado pelo fogo e chamas criadas pelo homem. Viu
cogumelos gigantes capazes de dizimar a existência e viu as trevas eternas
ocupando o lugar das labaredas. Viu tudo isso, e do pouco que entendeu, jamais
seria capaz de repetir. Sentia algo estranho em seu corpo, e sua mente
rodopiava em círculos maciços e cada vez mais velozes.
Então acordou.
Com sorte, ou talvez destino, ela acorda
aquecida dentro de uma caverna pertencente a algum eremita, com todos os sinais
de que outras pessoas deveriam ficar longe. Haviam tochas espalhadas que mal iluminavam
as próprias tochas. Um homem, com sua vasta barba cinzenta e uma careca reluzindo
mesmo para aquele ambiente parcamente iluminado a observava.
“O
que está havendo, meu senhor?”, perguntou assim que seus sentidos pareciam
sintonizados em seu próprio corpo.
“Há uma tempestade se aproximando minha
filha, e as areias do tempo me dizem que tanto pode ser o nascimento do
salvador destas terras como a morte de tudo que conhecemos”. Ela não conseguia
ver além de um vulto enquanto falava, mesmo com a proximidade um do outro assim
como de uma flama. O homem portava seu cajado que tinha uma gema esverdeada na
ponta, a qual ele envolvia com sua mão tal qual uma garra. Às vezes parecia que
faíscas queriam brotar de tal pedra, e às vezes de fato saiam.
Hela não entendeu as palavras do ancião,
e mesmo que quisesse dizer qualquer coisa, ou mesmo fazer, percebeu a voz do
homem ficando mais distante enquanto lhe dizia:
“Sua vida está perdida, pequenina, mas
sua morte não será em vão. Seu espírito queimará e bradará por justiça e
vingança enquanto houver vivalma para rogar e ouvir teu sussurro, mesmo que
teus lábios já estejam putrefatos. Os séculos farão com que as pessoas se
esqueçam e mesmo assim sua fúria não será perdoada. E isso é um destino maior
que muitos jamais encontrarão”.
A caverna estava abandonada. Somente Hela
e uma tigela de um aquecido caldo continuavam naquele ambiente, e, assim que a
tempestade de neve cessou, nada mais.
Hela seguiu por campos alvos, sentindo o
gelo queimando seus pés, e com o passar dos dias ela via a cada passo que a
necrose tomava conta de seus membros inferiores. Parecia loucura, e talvez até
fosse, mas ela jurava ver uma linha esverdeada e brilhante percorrendo seu
corpo toda vez que sentia dor.
A desolação e desgraça se aproximavam e
não havia mais o que fazer além de fugir.
Os campos gelados e desérticos só se
alteravam quando avistava algum vilarejo saqueado e seus ouvidos captavam o
choro de crianças e a maldição de mulheres abandonadas para morrer em meio ao
balé frenético do fogo e fumaça.
Dias, talvez semanas se passaram
enquanto ela seguia pela neve, faminta e cansada, quando um grupo de três ou
quatro cavaleiros a avistou pela distância, cercando-a. Parecia uma mulher
velha e decrépita, mesmo que tão poucos dias se passassem desde que abandonara
seu vilarejo. Seus cabelos que outrora foram vivos e radiantes agora estavam
pálidos e caindo. Suas formas femininas bem delineadas davam lugar a membros
carcomidos pela neve. Seus olhos que brilhavam ametista cediam lugar a uma
catarata horrível. Até seus dentes pareciam moles e frágeis demais,
acompanhados de uma vermelhidão e sangramento de escorbutos.
Os homens procuravam por dinheiro ou
qualquer coisa de valor que aquela mulher pudesse carregar, e só notaram um
casaco de peles que ninguém ousaria vestir após ter tocado tão amaldiçoada
figura.
Hela lançava agruras a seus algozes em
um idioma antigo e perdido aos ouvidos dos homens daquela época enquanto rogava
pelos espíritos e deuses, em vista de sua fúria e desgraça que para que os
vilões não encontrem descanso até que ela própria estivesse em paz, e sentia o
desprezo por aquele grupelho que jamais serviria para lutar ao lado de seu
marido quando este era vivo.
O primeiro deles a acertou com a espada
na testa, e viu o corpo inerte cair ao chão. Hela sangrava bastante e sua boca
tremia enquanto dizia e repetia palavras que não pareciam lógicas aos ouvidos
daqueles em sua volta. Mais pareciam balbucios insanos de alguém encontrando
seus instantes finais. Eles levaram o casaco, como um troféu daquele dia.
Seu corpo foi enterrado por camada após
camada da neve vindoura, permanecendo ali por anos, décadas e gerações a fio.
Em busca de algo que sua carcaça mortal jamais encontraria.
Ela continuaria ali, enquanto existisse
uma mínima fibra, fio de cabelo, osso ou o que fosse de seu corpo, e só teria
repouso e calma quando a vingança lhe fosse concedida, e não mais existisse
resquício ou descendente dos bastardos que chacinaram seu marido, vila e vida.
Com o tempo foi encontrada e como era a
tradição, seu corpo foi envolvido em lençóis e jogado ao mar numa pira para
encontrar o repouso, mas tudo que encontrou foi outra terra para continuar a
existir.
Esse parecia cada vez mais um destino
pior que a morte.
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