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17 de março de 2013
O cartógrafo
(Texto de Neil Gaiman)
A melhor maneira de descrever um conto é contá-lo. Entende? O modo como alguém descreve uma história, para si mesmo ou para o mundo, é contando a história. É um número de equilibrismo e é um sonho. Quanto mais exato o mapa, mais ele se parece com o território. O mapa mais exato possível seria o território, e assim seria perfeitamente exato e perfeitamente inútil.
O conto é o mapa que é o território.
Você precisa se lembrar disso.
Há quase dois mil anos, um imperador da China ficou obcecado a ideia de mapear a terra que governava. Ordenou que a China fosse recriada em miniatura numa ilha que mandou construir, à custa de muito dinheiro e, incidentalmente, da perda de algumas vidas (porque as águas eram frias e profundas), num lado das propriedades imperiais. Nessa ilha, cada montanha era transformada num morrinho e cada rio no menor fio d'água. O imperador levava meia hora para percorrer o perímetro de sua ilha.
Toda manhã, na luz pálida da madrugada, cem homens remavam e nadavam para a ilha e consertavam e reconstruíam cuidadosamente todos os detalhes da paisagem que haviam sido danificados pelo clima ou por pássaros selvagens, ou engolidos pelo lago; e removiam e remodelavam quaisquer terras imperiais que tivessem sido danificadas por enchentes, terremotos ou avalanches de verdade, para melhor refletir o aspecto do mundo.
O imperador se satisfez com isso durante a maior parte de um ano, até que notou dentro de si um descontentamento crescente com sua ilha e começou, nos momentos antes de dormir, a planejar outro mapa, com o centésimo do tamanho dos seus domínios. Cada cabana, casa e salão, cada árvore, colina e animal seriam reproduzidos com um centésimo de sua altura.
Era um plano grandioso, que sobrecarregaria o tesouro imperial até o limite para ser concretizado. Seriam necessários mais homens do que a mente pode imaginar, homens para mapear e homens para medir, agrimensores, recenseadores, pintores; seriam necessários modelistas, ceramistas, construtores e artesãos. Seiscentos sonhadores profissionais teriam de ser convocados para revelar a natureza das coisas escondidas sob as raízes das árvores, nas mais recônditas cavernas das montanhas e nas profundezas do mar, porque o mapa, para ter algum valor, precisaria conter tanto o império visível quanto o invisível.
Esse era o plano do imperador.
Seu ministro de confiança argumentou com ele, uma noite, enquanto andavam nos jardins do palácio, sob uma enorme lua dourada.
_ Precisais saber, majestade imperial - disse o ministro de confiança, - que o que pretendeis é...
E então, já sem coragem, calou-se. Uma carpa pálida rompeu a superfície da água, estilhaçando o reflexo da lua dourada em mil fragmentos dançantes, cada um deles uma pequena lua completa, até que as luas se fundiram num círculo contínuo de luz refletida, dourada, sobre a água da cor do céu noturno que era de um violeta tão rico que jamais poderia ser confundido com o preto.
_ Impossível? - perguntou suavemente o imperador. Quanto mais suaves os reis e imperadores, mais perigosos eles são.
_ Nada que o imperador deseja pode, concebivelmente, ser impossível - disse o ministro de confiança. - No entanto, custará caro. Vós secareis o tesouro imperial para produzir tal mapa. Esvaziareis cidades e fazendas para liberar terra onde o mapa ficará. Deixareis em vosso rastro um país o qual estaria falhando em meus deveres se não vos avisasse disso.
_ Talvez tenha razão - disse o imperador - Talvez. Mas se eu te desse ouvidos e esquecesse o meu mapa, se o deixasse irrealizado, ele assombraria o meu mundo e a minha mente, e estragaria o sabor da comida sobre minha lingua e do vinho em minha boca.
E então ele parou. Distante nos jardins, ouvia-se o chilrear de um rouxinol. _ Mas esse mapa concreto - confidenciou o imperador - ainda é só o começo. Pois enquanto ele estiver sendo construído, já estarei desejando e planejando minha obra-prima.
_ E o que seria? - perguntou o ministro de confiança timidamente.
_ Um mapa - disse o imperador - dos Domínios Imperiais, em que cada casa será representada por uma casa em tamanho natural, cada árvore por uma árvore do mesmo tamanho e espécie, cada rio por um rio e cada homem por um homem.
O ministro de confiança curvou-se muito sob o luar e voltou ao Palácio Imperial vários passos respeitosos atrás do imperador, imerso em seus pensamentos.
Está escrito que o imperador morreu dormindo, e isso é verdade, até onde se sabe, embora se pudesse ressaltar que sua morte não tenha sido totalmente sem ajuda; e que seu filho mais velho, que assumiu o trono em seu lugar tinha pouco interesse por mapas ou cartografia.
A ilha no lago tornou-se um abrigo para pássaros selvagens e todo o tipo de aves aquáticas, sem nenhum homem para espantá-los. Eles demoliram as pequenas montanhas de barro para construir seus ninhos, e o lago destruiu o litoral da ilha, e com o tempo ela foi totalmente esquecida, e somente o lago permaneceu.
O mapa se foi, o cartógrafo também, mas a terra sobreviveu.
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