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21 de março de 2013

Jogo de sombras


Todas as quartas estarei publicando um capítulo de meu livro de contos - A invenção da realidade - às quintas, saem os primeiros de outros romances que venho trabalhando - ou até já conclui.
Este é 'Jogo das sombras', cujos capítulos são nomes de músicas - 18 capítulos - contando a história de um terrível crime em uma estranha cidade. E suas confusas ramificações. É um livro um pouco mais pesado, com um clima de detetive noir protagonizado por uma mulher.
(Se aceita uma sugestão, procure no youtube Shadowplay do Joy Division enquanto lê o texto... Pra mim funcionou divinamente).



“Se algum de vocês tem algo a dizer, agora seria um momento apropriado... Nunca se sabe se terão outra chance, não é mesmo? Também julgo apropriado fazer as pazes com seus demônios íntimos, e as últimas orações, por garantia. Alguém gostaria de começar?” – disse o homem caucasiano na faixa do final dos vinte começo dos trinta anos à frente da igreja, com um olhar vidrado e uma agitação fora do normal. Sua cabeça tremia constantemente, seu cabelo ruivo desgrenhado e o físico magérrimo denotavam o estado de estresse a que estava submetido. Obviamente havia muito mais por trás do fato dele colocar aproximadamente trinta pessoas da comunidade de uma pequena cidade de interior como refém dentro de uma igreja, após atirar no padre e deixar todos os presentes em pânico enquanto recitava passagens do livro do apocalipse enquanto balançava o revólver que tinha em mãos e deixava bem claro que em suas costas havia um suporte como coldre, carregando uma espingarda e ao menos mais um revólver na lateral do tronco. Ele também trazia uma sacola de ginástica, grande o suficiente para carregar uma pequena bomba ou balas para cada homem, mulher e criança da cidade. E sobraria ainda uma boa dúzia.
Ninguém conseguia dizer qualquer palavra alta o suficiente. O choro, lágrimas e desespero latente abafavam qualquer som, enquanto ele prosseguia lendo passagens alternadas de versículos sem ligação ou continuidade.  Ele então parou, diante de uma criança (6), tremendo e bastante assustada, abraçando forte a avó (63) de joelhos para confortar o neto. Ele balbuciou alguma coisa incompreensível, e então apontou a arma para a cabeça da senhora.
“O que a senhora tem a dizer para se salvar?”
A multidão chocada sentia-se acovardada continuando a assistir sem nada fazer.
Sara Eldstein apertou seu neto mais forte, fechou os olhos pesadamente e respirou fundo. Deve ter passado por sua mente falar sobre a idade, sobre o neto sobre Deus dizendo que matar é errado e que aquela era a casa do Senhor afinal de contas. Ela deve ter pensado muitas coisas naquele breve instante em que seus olhos ficaram fechados e ela respirou profundamente. Ela se levantou, soltou o neto e caminhou um ou dois passos para frente, com um olhar carinhoso e gentil que somente uma avó carrega.
“O Senhor o perdoará, meu filho, mas a verdade é que você não quer fazer isso”.
Ele tremia, frenético, viciado e ficou parado por um instante. Em seu âmago uma gargalhada infernal parecia nascer, enquanto um sorriso se formava em seus lábios e ele puxou o gatilho e viu o conteúdo interno da caixa craniana da mulher carregando sangue e manchando o vestido de Vera Focault (71) que estava posicionada atrás da vizinha, e foi atingida no antebraço pela bala que atravessou a cabeça da amiga, e caiu no chão com o choque, quebrando a bacia e chorando mais que o pequeno Daniel Eldstein também manchado com o sangue da matriarca de sua família.
“Alguém gostaria de começar?” – perguntou novamente, agora mais confiante, e um olhar mais focado, perigoso. Ele apontava a arma para cima com o braço direito levantado o máximo que seu corpo conseguia fazê-lo, e emendou – “Eu vou ouvir um amém por isso?”
A gargalhada infernal surgiu nesse momento, enquanto ele andava na direção do padre William Mercer (49), ainda caído próximo a pia batismal, com sangue cobrindo sua nuca atingida pela coronhada que iniciou a ação, ele estava desperto ainda que atordoado pelo que ocorrera. Parecia tentar levantar quando o maníaco se aproximou dele.
Sussurrou alguma coisa no ouvido do ministro que olhava atônito, e recebeu o segundo disparo, na jugular, tornando o chão rubro imediatamente.
A igreja era pequena entre cento e quinze e cento e cinqüenta metros quadrados distribuídos em duas fileiras de bancos para no máximo cinco pessoas, e sete bancos em cada fileira. Só tinha a entrada principal, com duas portas grandes, fortes e reforçadas que quando fechadas exigiam um esforço enorme para sua reabertura, e era a única opção para a movimentação dos fiéis, havendo também uma porta quase secreta nos fundos, para o pároco. As janelas laterais cobriam quase todas as paredes, sendo três conjuntos enormes de vitrais, seccionados a cada poucos centímetros, em espaços que dificilmente passaria algo maior que um gato grande, e aos fundos havia um ornamento que ocupava boa parte da estrutura da nave com diversas imagens de santos e uma enorme cruz, ocultando assim a saída paroquial.
Era uma missa da tarde de quinta feira, por volta de três e meia, quase quatro horas, e a última a ser celebrada até o sábado, uma vez que a cidade era muito pequena e recebia toda terça e quinta a visita ocasional de outros reverendos para a realização missas, enquanto no sábado e domingo o padre destacado que coincidia de ser William Mercer, rezava três cerimônias, uma na manhã, outra a tarde e a ultima à noite, pouco antes do último ônibus intermunicipal. Pelo horário e dia, era comum que apenas aposentados e donas de casa freqüentassem o evento, e não obstante a idade mínima era de cinqüenta, com exceção dos raros netos ou então filhos. 
O jovem começou a falar sobre espíritos, sobre vozes que enchiam sua cabeça dizendo o que era certo fazer, qual o motivo e procedimento de suas ações. Bradava violentamente a arma sem apontar diretamente a nada ou ninguém, e seguiu vociferando sobre os mortos e espíritos. Caminhava de um lado para o outro, erraticamente sem estabelecer contato visual com ninguém ou olhar para algum lado especificamente, dizia algo sobre o sangue limpar a terra e varrer uma maldição. Novo disparo, para o alto. Ele agora gritava, pedia silêncio, e para que se calassem.
Continuou andando de um lado para o outro, com um passo pesado e barulhento. O nariz sangrava e ele andava, desorientado, zonzo.
Cambaleante ele chegou a cair, e ficou no chão por algum tempo. As pessoas olhavam, sem saber o que fazer, e, Marta Townsend (49) e Theodoro Batisti (67) devido a sua proximidade à porta resolveram aproveitar a deixa e tentar abri-la. Mais um tiro ecoou pelos corredores até atingir Marta no tórax, e derrubá-la desorientada no chão. Theodoro partiu em seu auxílio, segurando-a e oferecendo palavras de conforto.
Em pânico, Dora Townsend, irmã de Marta levantou-se na direção do rapaz, com lágrimas escorrendo por suas maçãs da face e gritando “Seu maníaco, porque...? Porque... O que você está fazendo...?”, antes de chegar até ele ela foi atingida pela quinta bala.
E tudo o que havia era silêncio.
Theodoro segurava firmemente as mãos de Marta, que tremia e tinha seu choro abafado. Ela estava com medo e sentia muito frio.
Vera Focault também estava sofrendo com uma bala, sentada no banco da igreja ela respirava pesadamente, abraçada a Daniel Eldstein que sem entender direito o que acontecia, chorava, com o rosto grudado no colo da vizinha, para que não precisasse ver nada mais que pudesse traumatizá-lo. Claro que já era um pouco tarde para isso.
O silêncio tomou conta do local.
Quem ali estava já se conformava com o possível e iminente desfalecimento. Procuravam fazer as pazes com seus pensamentos, encontrar conforto nas imagens de santos e do próprio Cristo ali expostas, e fazer suas últimas orações. Uma igreja afinal, sempre foi um local propício para a reza.
O rapaz ficou parado, sentado no altar com as mãos à cabeça, como que falando consigo próprio. Lágrimas escorriam de seu rosto, e ele mal notou o barulho das sirenes, ou a luz vermelha oscilando, e ele mal pôde perceber enquanto a equipe tática logo invadiu pela porta principal, e disparou contra ele de forma certeira sem chance de erro ou recuperação.
Ninguém jamais soube a exata identidade do garoto, e a bala que trespassou seu rosto não deixou muito para identificá-lo depois. Sem passagens pela polícia ou muitos registros, tudo que puderam foi identificar possíveis suspeitos, e especulações a partir das análises de seu DNA, e além da confirmação das substâncias que utilizara, que indicavam ao menos algumas de suas possíveis debilidades, puderam ao menos confirmar sua idade.
Ele tinha vinte e sete anos. E agora estava morto, como suas vítimas.
Ao menos não ouviria mais as vozes em sua cabeça.
Não que isso oferecesse qualquer conforto às vitimas, suas famílias e aos sobreviventes.

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