Todas as quartas estarei publicando um capítulo de meu livro de contos - A invenção da realidade - às quintas, saem os primeiros de outros romances que venho trabalhando - ou até já conclui.
Este é 'Jogo das sombras', cujos capítulos são nomes de músicas - 18 capítulos - contando a história de um terrível crime em uma estranha cidade. E suas confusas ramificações. É um livro um pouco mais pesado, com um clima de detetive noir protagonizado por uma mulher.
(Se aceita uma sugestão, procure no youtube Shadowplay do Joy Division enquanto lê o texto... Pra mim funcionou divinamente).
“Se algum de vocês tem algo a dizer,
agora seria um momento apropriado... Nunca se sabe se terão outra chance, não é
mesmo? Também julgo apropriado fazer as pazes com seus demônios íntimos, e as
últimas orações, por garantia. Alguém gostaria de começar?” – disse o homem
caucasiano na faixa do final dos vinte começo dos trinta anos à frente da
igreja, com um olhar vidrado e uma agitação fora do normal. Sua cabeça tremia
constantemente, seu cabelo ruivo desgrenhado e o físico magérrimo denotavam o
estado de estresse a que estava submetido. Obviamente havia muito mais por trás
do fato dele colocar aproximadamente trinta pessoas da comunidade de uma
pequena cidade de interior como refém dentro de uma igreja, após atirar no
padre e deixar todos os presentes em pânico enquanto recitava passagens do
livro do apocalipse enquanto balançava o revólver que tinha em mãos e deixava
bem claro que em suas costas havia um suporte como coldre, carregando uma
espingarda e ao menos mais um revólver na lateral do tronco. Ele também trazia
uma sacola de ginástica, grande o suficiente para carregar uma pequena bomba ou
balas para cada homem, mulher e criança da cidade. E sobraria ainda uma boa
dúzia.
Ninguém conseguia dizer qualquer palavra
alta o suficiente. O choro, lágrimas e desespero latente abafavam qualquer som,
enquanto ele prosseguia lendo passagens alternadas de versículos sem ligação ou
continuidade. Ele então parou, diante de
uma criança (6), tremendo e bastante assustada, abraçando forte a avó (63) de
joelhos para confortar o neto. Ele balbuciou alguma coisa incompreensível, e
então apontou a arma para a cabeça da senhora.
“O que a senhora tem a dizer para se
salvar?”
A multidão chocada sentia-se acovardada
continuando a assistir sem nada fazer.
Sara Eldstein apertou seu neto mais
forte, fechou os olhos pesadamente e respirou fundo. Deve ter passado por sua
mente falar sobre a idade, sobre o neto sobre Deus dizendo que matar é errado e
que aquela era a casa do Senhor afinal de contas. Ela deve ter pensado muitas
coisas naquele breve instante em que seus olhos ficaram fechados e ela respirou
profundamente. Ela se levantou, soltou o neto e caminhou um ou dois passos para
frente, com um olhar carinhoso e gentil que somente uma avó carrega.
“O Senhor o perdoará, meu filho, mas a
verdade é que você não quer fazer isso”.
Ele tremia, frenético, viciado e ficou
parado por um instante. Em seu âmago uma gargalhada infernal parecia nascer,
enquanto um sorriso se formava em seus lábios e ele puxou o gatilho e viu o
conteúdo interno da caixa craniana da mulher carregando sangue e manchando o
vestido de Vera Focault (71) que estava posicionada atrás da vizinha, e foi
atingida no antebraço pela bala que atravessou a cabeça da amiga, e caiu no
chão com o choque, quebrando a bacia e chorando mais que o pequeno Daniel
Eldstein também manchado com o sangue da matriarca de sua família.
“Alguém gostaria de começar?” –
perguntou novamente, agora mais confiante, e um olhar mais focado, perigoso.
Ele apontava a arma para cima com o braço direito levantado o máximo que seu
corpo conseguia fazê-lo, e emendou – “Eu vou ouvir um amém por isso?”
A gargalhada infernal surgiu nesse
momento, enquanto ele andava na direção do padre William Mercer (49), ainda
caído próximo a pia batismal, com sangue cobrindo sua nuca atingida pela
coronhada que iniciou a ação, ele estava desperto ainda que atordoado pelo que
ocorrera. Parecia tentar levantar quando o maníaco se aproximou dele.
Sussurrou alguma coisa no ouvido do
ministro que olhava atônito, e recebeu o segundo disparo, na jugular, tornando
o chão rubro imediatamente.
A igreja era pequena entre cento e
quinze e cento e cinqüenta metros quadrados distribuídos em duas fileiras de
bancos para no máximo cinco pessoas, e sete bancos em cada fileira. Só tinha a
entrada principal, com duas portas grandes, fortes e reforçadas que quando
fechadas exigiam um esforço enorme para sua reabertura, e era a única opção
para a movimentação dos fiéis, havendo também uma porta quase secreta nos fundos,
para o pároco. As janelas laterais cobriam quase todas as paredes, sendo três
conjuntos enormes de vitrais, seccionados a cada poucos centímetros, em espaços
que dificilmente passaria algo maior que um gato grande, e aos fundos havia um
ornamento que ocupava boa parte da estrutura da nave com diversas imagens de
santos e uma enorme cruz, ocultando assim a saída paroquial.
Era uma missa da tarde de quinta feira,
por volta de três e meia, quase quatro horas, e a última a ser celebrada até o
sábado, uma vez que a cidade era muito pequena e recebia toda terça e quinta a
visita ocasional de outros reverendos para a realização missas, enquanto no
sábado e domingo o padre destacado que coincidia de ser William Mercer, rezava
três cerimônias, uma na manhã, outra a tarde e a ultima à noite, pouco antes do
último ônibus intermunicipal. Pelo horário e dia, era comum que apenas
aposentados e donas de casa freqüentassem o evento, e não obstante a idade
mínima era de cinqüenta, com exceção dos raros netos ou então filhos.
O jovem começou a falar sobre espíritos,
sobre vozes que enchiam sua cabeça dizendo o que era certo fazer, qual o motivo
e procedimento de suas ações. Bradava violentamente a arma sem apontar diretamente
a nada ou ninguém, e seguiu vociferando sobre os mortos e espíritos. Caminhava
de um lado para o outro, erraticamente sem estabelecer contato visual com
ninguém ou olhar para algum lado especificamente, dizia algo sobre o sangue
limpar a terra e varrer uma maldição. Novo disparo, para o alto. Ele agora
gritava, pedia silêncio, e para que se calassem.
Continuou andando de um lado para o
outro, com um passo pesado e barulhento. O nariz sangrava e ele andava,
desorientado, zonzo.
Cambaleante ele chegou a cair, e ficou
no chão por algum tempo. As pessoas olhavam, sem saber o que fazer, e, Marta
Townsend (49) e Theodoro Batisti (67) devido a sua proximidade à porta
resolveram aproveitar a deixa e tentar abri-la. Mais um tiro ecoou pelos
corredores até atingir Marta no tórax, e derrubá-la desorientada no chão.
Theodoro partiu em seu auxílio, segurando-a e oferecendo palavras de conforto.
Em pânico, Dora Townsend, irmã de Marta
levantou-se na direção do rapaz, com lágrimas escorrendo por suas maçãs da face
e gritando “Seu maníaco, porque...? Porque... O que você está fazendo...?”,
antes de chegar até ele ela foi atingida pela quinta bala.
E tudo o que havia era silêncio.
Theodoro segurava firmemente as mãos de
Marta, que tremia e tinha seu choro abafado. Ela estava com medo e sentia muito
frio.
Vera Focault também estava sofrendo com
uma bala, sentada no banco da igreja ela respirava pesadamente, abraçada a
Daniel Eldstein que sem entender direito o que acontecia, chorava, com o rosto
grudado no colo da vizinha, para que não precisasse ver nada mais que pudesse
traumatizá-lo. Claro que já era um pouco tarde para isso.
O silêncio tomou conta do local.
Quem ali estava já se conformava com o
possível e iminente desfalecimento. Procuravam fazer as pazes com seus
pensamentos, encontrar conforto nas imagens de santos e do próprio Cristo ali
expostas, e fazer suas últimas orações. Uma igreja afinal, sempre foi um local
propício para a reza.
O rapaz ficou parado, sentado no altar
com as mãos à cabeça, como que falando consigo próprio. Lágrimas escorriam de
seu rosto, e ele mal notou o barulho das sirenes, ou a luz vermelha oscilando,
e ele mal pôde perceber enquanto a equipe tática logo invadiu pela porta
principal, e disparou contra ele de forma certeira sem chance de erro ou
recuperação.
Ninguém jamais soube a exata identidade
do garoto, e a bala que trespassou seu rosto não deixou muito para
identificá-lo depois. Sem passagens pela polícia ou muitos registros, tudo que
puderam foi identificar possíveis suspeitos, e especulações a partir das
análises de seu DNA, e além da confirmação das substâncias que utilizara, que
indicavam ao menos algumas de suas possíveis debilidades, puderam ao menos
confirmar sua idade.
Ele tinha vinte e sete anos. E agora
estava morto, como suas vítimas.
Ao menos não ouviria mais as vozes em
sua cabeça.
Não que isso oferecesse qualquer
conforto às vitimas, suas famílias e aos sobreviventes.
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