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16 de março de 2022

{Deixa eu te explicar} A (bizarra) história do Homem-Aranha japonês

Talvez você já tenha visto os memes - com ou sem algum contexto (como se fizesse muita diferença) - mas houve uma época em que a Marvel achou que seria uma boa ideia produzir um seriado no Japão para ajudar a desbravar um dos potenciais maiores mercados de quadrinhos do mundo.

Porque deu errado...? Bem...

Além do fato que o Homem Aranha não era Peter Parker, não tinha a tia idosa (e constantemente doente), preferia metralhadoras a teias e combatia piratas espaciais com um robô gigante... Minto, isso é genial! Como poderia dar errado?


Na Disney Plus existe uma série de 'documentário' chamada Marvel 616 que traz em seu primeiro episódio uma versão destes eventos, omitindo claramente alguns dos fatos e mascarando a realidade (afinal, a culpa do fracasso da empreitada recai somente aos ombros de Gene Pelc e constantemente reforçam que Stan Lee é um gênio brilhante e absoluto). Vale a pena para encontrar algumas cenas do seriado assim como várias das entrevistas com os atores e produtores, mas precisa lembrar que o Gene Pelc foi mero testa de ferro na história toda (porque a Marvel estava francamente se lixando para o projeto - o que em retrospecto quando a editora precisou entrar com pedido de falência em 1996, parece que a ideia toda de expandir as vendas para novos mercados não era assim tão idiota).

Do começo, se você quiser uma versão bem resumida, na década de 1970 a Marvel tentou entrar no mercado japonês - porque, afinal de contas, alguém percebeu que o Japão tem vendas quase obscenas de quadrinhos, e, isso uns dez anos antes antes de Dragon Ball (com aproximados 160 milhões de vendas só no Japão), Cavaleiros do Zodíaco ou One Piece (que em pouco mais de 20 anos de publicação já vendeu mais que Homem Aranha desde 1960, tendo um volume vendido somente EM 2009 2,85 MILHÕES), pra você ver - enquanto a Marvel comemorava vendas de 1 milhão de exemplares de uma edição número 1 com vinte e cinco capas comemorativas diferentes em 1991 (com uma população de 249 milhões, ou seja, considerando que o milhão de cópias foi para pessoas diferentes e todas nos EUA, ainda estamos falando de menos de 0,5% da população).

A Marvel que conseguiu um boom e revitalizar os quadrinhos dos anos 1960, vinha encontrando uma série de obstáculos num período de transição com a saída de Jack Kirby - produzindo alguns dos melhores quadrinhos de sua vida na Distinta Concorrência - enquanto a Marvel tinha alguma dificuldade com títulos como Demolidor (quase cancelando o material até que Frank Miller revitalizou a série) ou X-men (mesma coisa, mas substitua Frank Miller por Chris Claremont), enquanto os maiores sucessos da época vinham de óperas espaciais ou místicas de Jim Starlin (com o Capitão Marvel) e Roger Stern (como a saga de Korvac e histórias do Doutor Estranho).

Eis que o final da década de 1970 trouxe para a Marvel o enorme potencial para licenciamento com Star Wars, GI Joe e o KISS (?) e basicamente tudo que alguém oferecesse publicar pelo selo Marvel, ainda faltava galgar espaço no maior mercado de quadrinhos do mundo e, por consequência, ganhar espaço licenciando os produtos Marvel (ao invés, de, sabe, a 'casa das ideias' ficar com uma parcela pequena de vendas perto do lucro exorbitante do merchandising). E ta-dá, Gene Pelc, executivo da Marvel na época, cuja esposa era japonesa e conhecia um bocado do país asiático simplesmente olha para o mercado japonês com um enorme cifrão nos olhos e pensa 'K-shing!' e propõe para os demais executivos a ideia de produzir um parceria para apresentar os produtos da editora ao Japão.

Pelc estabelece canais de comunicação no Japão e inclusive tem carta branca para produzir uma parceria que resulta na série de 41 episódios (isso mesmo, o que algumas séries atuais não fazem em 4 temporadas foi a primeira temporada do Homem Aranha japonês) com a condição de licenciamento para brinquedos/bonecos (daí o robô gigante com um leão para um herói cujo tema é 'Aranha'), enquanto nos Estados Unidos, Stan Lee fica sentado esperando pelos resultados. Se Pelc conseguisse um sucesso, Lee aparece e dá uma pirueta e diz que tudo foi conforme o planejado. Caso contrário, a culpa é toda de Pelc.

E, olha, dadas as circunstâncias, é necessário dizer que o resultado final é impressionante.

Não que seja bom, vamos deixar isso cristalino de tão claro... É mais como aquela brincadeira infantil do telefone sem fio em que uma coisa é dita por alguém no começo e chega completamente indistinta no final da fila. O Homem Aranha tem seus poderes por um amuleto mágico, não usa teias (mas metralhadoras) e ao invés de enfrentar criminosos e bandidos urbanos, ele enfrenta piratas espaciais com um robô gigante, e, basicamente tudo que está nesse parágrafo não se parece em nada com as aventuras do herói aracnídeo mas uma versão alternativa de Jaspion ou algum outro herói da época.

Droga, pode até ser que o seriado horrível do Homem Aranha japonês inspirou uma onda e leva de outros seriados como Jaspion e Changeman quase dez anos mais tarde, ou todos os contratos gigantescos que resultariam com publicidade e merchandising. Só que os erros foram custosos para a Marvel.

Além de não conseguir melhorar em uma vírgula a percepção da companhia no Japão, pelo contrário fica até uma visão completamente sem qualquer coerência sobre o que o material realmente é. Quaisquer que fossem os fãs do seriado, dificilmente olhariam para os quadrinhos com uma velha decrépita constantemente doente e sem um robô gigante e diriam 'Cale a boca e tome meu dinheiro!"

Pelc enxergava apenas as cifras potenciais mas nunca se deu ao trabalho de efetivamente entender o mercado japonês - e o quanto ele era e é diferente do mercado norte-americano (seja de forma temática ou estrutural). Heróis japoneses lidam frequentemente com temas de honra e aperfeiçoamento enquanto heróis norte-americanos lidam com temas como justiça e dilemas existenciais (e, no caso dos heróis da Marvel geralmente uma bela camada de dilemas financeiros e tipicamente mundanos).

Enquanto os heróis norte-americanos vivam suas vidinhas suburbanas em gigantescas metrópoles, os heróis japoneses comumente estavam em grandes e gigantescos espaços e campos (Akira Toriyama inclusive escreve em uma das edições de Dragon Ball o quanto ele se enxergava como um caipira avesso à civilização).

Justamente por isso o resultado é uma bagunça que não funciona.

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