Um dos grandes problemas em entender um universo ficcional está inerentemente ligado a sua lógica interna, e, doravante compreender essa lógica interna.
Parece mais complexo do que realmente é. Notadamente universos ficcionais oferecem condições diferentes daquelas encontradas em nosso mundo convencional, seja porque existe um mundo no centro da Terra ou porque é possível clonar dinossauros ou qualquer concepção que o torne diferente do mundo real (onde não é possível clonar dinossauros e a terra é plana portanto não tem centro... Hein?).
Com ficções mais centradas no realismo, como de Borges ou Saramago que filtram mundos ainda que irreais bastante próximos dos mundos reais fica mais difícil pontuar exatamente quais as diferenças inerentes desses mundos irreais, mesmo que em dados momentos doenças misteriosas acometam a toda uma população para ficarem cegos ou resolver votar em branco ou um livro misterioso com páginas infinitas apareça. De mesma forma existem as ficções ainda mais próximas do mundo real contando histórias que pareçam surreais e absurdas mas que contém um enorme vínculo jornalístico como a obra de Svetlana Alexijevich (Nobel de Literatura por Vozes de Tchernóbil).
Invariavelmente uma ficção depende de sua lógica interna para fazer com que o universo ficcional funcione, e, é justamente por isso, que normalmente universos ficcionais se restringem a histórias mais curtas que estabelecem um começo, meio e final (ainda que rendendo alguma[s] continuação[ões]).
Quanto mais tempo duram as ficções, mais difícil fica perceber ou questionar a lógica intrínseca que molda esses universos. Sabe, como o quão absurdo é que um homem que assista o homicídio dos pais resolva se vestir de morcego e combater o crime.
O que quero dizer é que acabamos aceitando o absurdo da premissa em que o universo de ficção se situa de acordo com o tempo em que ele já existe. Sim, um homem escapa de uma bomba para se tornar um monstro verde... Sim, um sujeito numa caverna consegue desenvolver o protótipo de uma das tecnologias mais avançadas que o mundo já viu, enquanto o outro é o último sobrevivente de um planeta moribundo se tornando um ser incrivelmente poderoso.
Nada disso FAZ sentido efetivamente, não só porque exige uma enorme abstração do real e da lógica do mundo real para que a lógica ficcional funcione e esse universo ficcional não desmorone e deixe de fazer o menor sentido.
Os quadrinhos obviamente são o exemplo mais comum para esse tipo situação em virtude do enorme universo atrelado (décadas de cronologia, diversos títulos que são ou não atrelados uns aos outros mas que compõem um universo maior).
Como os casos dos X-men coexistindo com os Vingadores e Quarteto Fantástico da Marvel, por exemplo. Enquanto mutantes eram discriminados e perseguidos pela humanidade em quadrinhos dos X-men, em outras séries da editora eram bastante e comumente aceitos entre os grupos de heróis mais poderosos da Terra. E para não ajudar ainda existem todas as viagens do tempo e poderes mágicos e místicos que por algum motivo também tem alguma ligação com a genética de um indivíduo.. por algum motivo.
Quadrinhos mudaram e se adaptaram conforme a necessidade dos tempos e, geralmente atrelados a imposições externas como o Comic Code ou eventos históricos para que alteraram os rumos narrativos.
Batman usava uma luva roxa e revólver nos anos 30 mas isso o mostrava como muito violento para pais preocupados, ao que foi apresentado o parceiro mirim (e substituto do leitor, o menino prodígio Robin) na década de 40 e o herói foi perseguido por perverter as mentes infantis, para ser novamente alterado e adaptado em outras tantas versões que surgiriam nas décadas seguintes (o Batman dançarino e surfista dos anos 60 ou casi007 dos anos 70 assim como o Batman mais centrado e pé no chão dos anos 80).
Ao contrário do que ocorre com outras mídias - cujas versões de personagens são mais definitivas e imutáveis - personagens de quadrinhos mudam, se adaptam e se tornam diferentes a cada iteração de modo a tentar capitalizar com o clima e cenário político atual sem alienar a audiência.
Thanos na década de 1970 tinha como objetivo assegurar poder e mais que isso (como se consolidaria nas décadas seguintes) oferecer um dote a sua amada (a Morte) como prova de sua lealdade. Nos anos 2000 ele se torna um fascista defendendo a eugenia como solução para os problemas climáticos e da superpopulação.
É um problema sério quando toda uma enorme gama de espectadores que não gastam mínimos segundos para refletir sobre o teor de um filme lida com um conceito absurdo destes quando, principalmente nenhum dos heróis parece questionar e repreendê-lo (pelo contrário, em dado momento até dizem que talvez não seja de todo absurdo porque as baleias voltaram à Nova Iorque). Fica ainda mais absurdo quando veículos de mídia tentam vender o absurdo como uma lógica coerente (defendida por diversos artigos e inclusive escritores de quadrinhos como Kevin Smith). O problema é que, bem, é incrivelmente estúpido de uma dezena de perspectivas dentro da lógica inerente desse universo (que tem pedras místicas que garantem desejos).
Era só pedir por mais recursos, não pela redução de metade da população...
E mesmo isso parece idiota quando o Homem de Ferro usa uma bateria no peito que é capaz de iluminar toda a cidade de Manhattan, ou Thor pode evocar trovões e tempestades, além de todas aquelas partículas Pym que poderiam otimizar em muito a produção de alimentos e de tratamento de resíduos)...
Fora do contexto do MCU também é ridículo, caso alguém tenha alguma dúvida. O Renegade Cut explica mais detalhado, mas a matemática não é nada difícil. Os recursos existem, o problema está na distribuição.
Então te pergunto...? Porque isso não incomodou ninguém alguns meses atrás (ou um ano atrás quando o outro filme foi lançado), mas agora incomoda quando o filme do Coringa chega aos cinemas?
Bem, porque ele funciona de maneira diferente dos tradicionais filmes blockbusters, pra começo de conversa. Sim, o Coringa está errado e é o vilão, mas isso não muda o fato que seu argumento tem validade. Que um dia ruim pode destruir a vida de uma pessoa ou que o que não te mata te faz mais estranho, ou, intrinsecamente de que tudo é uma piada (de mau gosto, talvez, é verdade).
Só que ao contrário de Thanos que está errado (tanto no universo ficcional quanto numa análise de mundo real) e sua lógica é embasada em ciência porca de má qualidade (que é basicamente a defesa da eugenia a não ser pelo Caveira Laranja e seus seguidores), a visão do Coringa de racionalidade e de mundo está embasada em uma complexa e bem estruturas de teoria filosófica como de Camus e mesmo Kierkergaard.
O Coringa é o herói absurdo e a resposta ao mito de Sísifo.
O Coringa traz a irracionalidade como resposta a um mundo irracional - e, verdade seja dita, ele não se importa em estar certo contanto que se divirta (e, vale lembrar: Ele é um vilão e faz muita coisa ruim).
O Coringa incomoda espectadores (e diretores e atores e estúdios) acostumados a regurgitarem a mesma idiotia vez após vez ao propor que blockbusters podem ter conteúdo, lógica e filosofia.
Mesmo para o mais inerte e embasbacado espectador que se perde nos roteiros de filmes de Adam Sandler, é provável que alguma coisa acabe, mesmo que sem querer, absorvendo alguma informação... E é bem verdade, fique bem confuso a ponto de dizer um universo de idiotice na internet.
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