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2 de outubro de 2013

Ato 3 - O Sentido da vida (parte 2)


_ Você não está esperando uma festa surpresa ou um bolo ou relógio de ouro... Ou que alguém vá realmente implorar para que fique, né? – diz Fausto adentrando na sala, sem cerimônias, sabendo que este é um de meus momentos finais na instituição.
_ Não... Já passei dessa fase – digo enquanto continuo a guardar minhas coisas e preparar minha saída – Tudo que eu quero é sair tranqüilo, consciente de que fiz um bom trabalho, que não deixarei nenhuma bomba pra trás ou coisa parecida.
_ Eu li o seu relatório. Achei bem prolixo. Completo. E é por isso que eu vim falar com você.
_ Olha, eu não acho que...
_ Mas ache. Existe muita coisa que precisa ser refeita e repensada, realmente, e seu relatório serve pra isso, mais que qualquer outra coisa que esta ou outra instituição já teve ou recebeu. Os erros acabam mascarados e perdidos em meio a tanta conversa, inveja, fofoca e intriga, e nunca chegam a lugar nenhum. Falta uma postura objetiva, e realmente a vontade de mudar. Muitas histórias são só ouvidas e ditas, sem que cheguem a lugar nenhum, ou realmente apontem para um traço de verdade na história toda... E muitas injustiças são cometidas porque as histórias não são ouvidas por inteiro. Porque nós pegamos um traço do que aconteceu e deduzimos que existe uma vítima aparente ou evidente e um monstro a solta... E claro que muitas vezes é isso, por mais que haja variação e limitação do real para o ficcional, mas às vezes, as coisas não são tão preto e branco assim.
Sem dizer uma palavra, olhei com uma expressão forte, segura e um tanto contestadora a Fausto. Sentia que aquele era o momento de mais um discurso motivacional sobre caráter, integridade e como a empresa defende e valoriza todo esse blá-blá-blá. E sobre como ele queria que eu ficasse, como fez e fez e pretendia que eu continuasse aqui, uma vez que ele tinha realmente se esforçado para me manter, e, eu estava me sentindo um pouco como um bandido fugindo no meio da noite.
_ Outras administrações tiveram outras prioridades e gente menos e menos interessada em fazer alguma mudança que fosse proveitosa para os funcionários, afinal, isso só melhoraria a qualidade de vida deles... Quantos exemplos existem disso na história? Foi você quem me contou a história de Rodrigo Bórgia, aquele que viria a se tornar o papa Alexandre VI, e todos os crimes que ele cometeu... Seus atos realmente devem condenar o que a igreja prega e ensina de bom? Ou as pessoas boas que acreditam e agem conforme estes ensinamentos? Mesmo que um lado racionalista e científico fale mais alto em você, ainda existem exemplos e exemplos, como o nazismo nos altos patamares da Alemanha com toda sua pesquisa eticamente questionável para dizer o mínimo... Devemos acreditar que estas decisões ruins que foram tomadas nestas épocas devam minar todo e qualquer avanço e coisa positiva que por ventura tenha trazido?
São os pecados do pai. Podemos pagar pelos erros deles, ou devemos nos esforçar para corrigi-los?
Eu opto pela segunda, e é o que posso fazer, enquanto estiver aqui, na direção, no leme deste navio. E é o que acho justo e correto fazer. O que já foi, já foi. E agradeço muito você por apontar onde falhamos para detectar o que precisamos fazer. Trilhar esse caminho muitas vezes é o mais difícil.
Agora, eu preciso finalizar, agradecendo realmente por todo o seu trabalho, seu companheirismo e dedicação. Foi muito bom trabalhar com você... Pessoalmente acho que enriqueceu um pouco a vida de todos nós aqui. Sua demissão já está assinada, as cartas de recomendação também estão feitas – além de que o departamento pessoal já deu baixa em tudo o que precisava ser feito para você não ser mais um funcionário aqui. Mas existe algo mais.
A porta da instituição estará sempre aberta pra você, ao menos enquanto eu estiver aqui, caso algo mude, caso precise ou queira voltar.
Dois homens incrivelmente constrangidos deixam de lado um machismo bobo e sem preceito para abrir mão de um seco aperto de mão e, nesse momento singelo oferecerem um abraço um ao outro.
_ Você sabe como me encontrar, caro amigo. Caso precise de uma consultoria, de alguma ajuda ou de uma companhia para o almoço, sempre pode dar um pulinho na faculdade e procurar o doutor Milton.
_ E de onde veio o título?
_ O Severino, faxineiro das instalações é quem me concedeu, e sempre devemos respeitar pessoas mais sábias.
Há um pouco de riso, e um dia com ar de saudade, de realizações cumpridas e promessas quebradas. Algo que chega ao fim, enquanto tudo mais continua.

***
É estranho estar aqui de novo.
Não faz tanto tempo desde a última vez, e ainda assim parece uma eternidade... Tanto mudou... Tantas coisas aconteceram... E esse pequeno paraíso fora da realidade, fora do horizonte de cidades, da visão comum de prédios ou do mais singelo odor de fumaça dos carros e fábricas e seus tons de cinza...
Árvores, plantas e muito espaço. Mesmo sabendo que tipo de lugar é esse, até dá uma certa vontade de ficar por algum tempo...
Eu não avanço muito. Fico o mais afastado que posso, próximo ao meu carro, esperando que Virgilio venha. Já havíamos combinado, e, depois de meu último vexame aqui, gostaria de manter um pouco de dignidade caso precise voltar aqui ainda algum dia em minha vida. Não que eu duvide de meu amigo e da capacidade do serviço oferecido em sua recuperação, porém eu nunca fui um homem de duvidar do poder de atração de recaídas, e, como muitos antes de mim já disseram “talvez você só não faça novamente por não viver longevamente o suficiente”.
_ Ei! Quanto tempo, peregrino! – por algum motivo, John Wayne nunca pareceu tão fora de contexto. E talvez o fato de nos abraçarmos, faça parecer ainda mais com que ele esteja revirando em sua tumba, por tal desgraça em sua memória.
_ Parece uma vida. E você parece que ganhou uma nova também... Está mais corado, com uma aparência revigorada e centrada.
_ Você também... Parece que voltou ao mundo dos vivos.
_ É... Eu sinto como se tivesse ido ao inferno e voltado, realmente... Achando um novo propósito... Em um dos momentos mais assustadores dela.
Eu vi meu próprio funeral, e foi horrível.
Havia algumas pessoas, claro... Você estava lá... Minha família, Marina, o dr. Borges e alguns outros poucos que realmente significam algo. E fora isso, fora aquela pantomima vergonhosa para justificar minha vida, o que mais me assustou foi que isso não mudou nada. Minha vida nesse contexto não alterou nada, não conquistou nenhuma realização, não foi capaz de influenciar mesmo que mudanças mínimas... Tudo o que fez foi causar alguma dor nas poucas pessoas que tiveram o trabalho de se importar comigo. E isso dói, cara. Isso dói por demais.
Há um breve silêncio. “É difícil pensar o que dizer em um funeral”, é tudo que passa pela minha cabeça, mas eu não consigo verbalizar isso, e ficamos somente em silêncio por um tempo. Eventualmente Virgilio me questiona sobre Marina, e eu lhe conto toda a história desde que ele entrou na clínica de reabilitação até o último natal. Até o dia depois, e o que isso resultou... Não escondo nada. Nada de omitir minhas falhas ou dizer que eu sou vítima na história ou que é culpa de meu trabalho e do quanto este estava a sugar de mim. Acredito que cresci o bastante nos últimos meses para ser melhor que isso, e por isso digo apenas a verdade que sinto em meu coração sobre o assunto.
_ É... O tempo escraviza a todos nós... – diz Virgilio, meio que jogando a frase sem jeito.
_ Isso é pra ver se eu li o seu ensaio sobre Proust ou...
_ Sem motivos difusos, meu amigo. Somente o que é. Uma afirmação, uma constatação... A justificativa de que fazemos tanto, e muitas vezes tão pouco pela ilusão do tempo que desejamos e do tempo que realmente temos. Frustração pelo tempo perdido... O que nos leva a problemas, a soluções improvisadas.
Era evidente que ele estava falando de seus próprios problemas. De seu caminho até o vício... De como somos egoístas quando se trata de tempo, achando nossas prioridades e caminhos mais importantes que as dos outros, daqueles que realmente nos importam e que valem alguma coisa pra nós. Sobre quanto nos envolvemos em nossas próprias perfídias ignorando a dos outros, com a desculpa do tempo. Foi o que eu fiz com Marina. Foi o que eu fiz com Virgilio. Fui escravo do tempo, invés de trabalhar e viver em função dele.
_ Eu não tenho sido um bom amigo, não? Fiquei todos esses meses sem visitá-lo... Correndo atrás de minha própria vida, buscando uma solução pra minhas próprias frustrações e negligenciei a você, que estava precisando de ajuda...
_ Ei. Não é como se eu estivesse todo esse tempo te ajudando com seus problemas, não é mesmo? Nós nos negligenciamos. Deduzimos que mentiras absurdas pudessem ser verdades absolutas. Pessoas não lêem pensamentos, ou podem descobrir o que quer que seja somente ao ver a expressão de uma pessoa. Estes tempos que vivemos, reverenciamos cada vez mais e mais a multitarefa... A capacidade de resolver e se envolver e mais e mais do que nossa própria capacidade. E acabamos ignorando muitas coisas, para cumprir algumas. Sinais e sintomas não são mais suficientes... Precisamos de mais palavras. Mais ações diretas.
Como poderíamos adivinhar?
_ Não é uma questão de adivinhar... É uma questão de como nos comportamos e agimos. É uma questão de egoísmo e narcisismo. Somos tolos, e queremos mais que podemos ter. Que podemos exigir dos demais.
Silêncio, e uma longa viagem.
...

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