As
últimas notícias que tive de Verônica vieram numa noite chuvosa, quando o
telefone tocou nervosamente, e, pensando por um minuto que fosse Marina, corri
em sua direção. Sua voz suave e doce era como brasa em meu peito. Sentia grande
agonia, e constantemente pensei em desligar o telefone.
Não
fui homem o bastante.
(Não
sou homem suficiente para admitir que eu liguei para ela. Não... Não consigo.
Preciso dizer que foi ela quem ligou. Preciso acreditar nisso. Que aquelas
noites em que passamos por horas conversando, que ela tomara a iniciativa. É
algo no que preciso acreditar... Preciso que seja verdade).
É
difícil falar sobre uma mulher que, um dia julguei ser perfeita, sem realmente
abusar de elogios e fantasias. Eu amei Verônica, e isso é verdade. Isso foi verdadeiro.
Jovens, inexperientes, cheios de ideologias, sonhos e idiotice juvenil.
Buscando inspiração. Buscando nos rebelar contra o sistema opressor e
maniqueísta, sempre querendo ou fazendo algo chocante e igualmente estúpido
para alterar as concepções, para ver um mundo diferente. E buscamos nos amar,
nos apaixonar, e nos descobrir.
Não
fui capaz de vê-la com outro quando terminamos, por mais pacífico, honesto e
calmo que tenha sido nosso fim. Vê-la em outros braços, e isso me fez começar a
ver que a idade adulta, a época de realmente crescer e amadurecer começava.
A
adolescência voa, os ideais começam a parecer menos importantes que se manter,
que pagar as contas, que comprar os livros da faculdade, e procurar um emprego,
se conformar e seguir um caminho normal e careta parece cada vez mais lógico e
coerente.
Aprendemos
a lutar nossas batalhas, e quais valem a pena seguir adiante, de quais devemos
desistir. Nem todo mundo nasce para mudar o mundo, e, nem sempre se muda as
coisas da forma que se espera.
O
discurso vazio de adolescente, com algo falso e pragmático de boutique,
ignorante à realidade e à condição humana não é rebeldia ou mudança. Não... Era
minha forma de parecer autêntico com um clichê que só era diferente dos demais.
Era a forma de buscar atenção no colégio, como tantos outros faziam, através de
notas perfeitas, ou arranjando brigas, desafiando os professores e ou pregando
peças, ou presunçosamente tocando um violão em círculo com uma turma. Cada um
busca a forma que lhe parece mais agradável, ou que lhe parece mais fácil. É
como vivemos. Quis ser um revolucionário, para parecer legal, agora sou um lunático,
sozinho, brevemente desempregado e tentando reconstruir a vida.
A
vida segue.
***
Não
sei se foi um sonho, uma ilusão ou o que pode ter acontecido, mas lembro de uma
noite particularmente sem graça,e estava saindo do serviço, desanimado e um
tanto deprimido, devo dizer.
Nada
demais, um tempo chato, nublado apenas para cobrir a lua, afinal a noite era
quente e abafada. Encontrei-me com alguém que, honestamente, não pensei que
veria novamente em qualquer momento de minha vida: José Antônio Leão, alguém ainda
mais desiludido e deprimido que eu.
Conversamos
por dez, talvez vinte e tantos minutos. Ele falou de sua vida, das condições e
como muitas coisas ainda estavam mal, e outras ainda piores.
A
esposa doente, já há algum tempo, com um tratamento caríssimo e que somente
minimizava os efeitos – sem qualquer perspectiva de algum dia curá-la. A filha,
grávida, abandonada pelo pai da criança, e, voltando para casa, pedindo ajuda
dos pais. Haviam outros problemas, alguns que ele fez questão de enfatizar,
outros de sublimar.
Fiquei
um pouco mal. Voltei direto pro apartamento após essa conversa, pedi alguma
coisa pelo telefone e passei o restante da noite quieto e tranqüilo, tentando
digerir tudo aquilo. Sentia um tanto de responsabilidade, uma vez que agora
tinha contato direto que era quase parte daqueles responsáveis pela injusta
demissão dele no passado. Também pensava no quanto eu poderia me tornar naquele
homem num futuro... Após minha saída da empresa... Após tentativas e mais
tentativas não sucedidas de seguir com minha vida... Seria aquele meu destino?
Não
lembro quando foi a última vez que senti vontade de fumar na vida.
Sete,
talvez oito anos atrás, quando já tinha parado de fumar por algum tempo, eu
acredito. Acho que estava começando a trabalhar, e o estresse estava me
consumindo e me forçando a repensar a decisão. Naquele momento, mal percebi
como ou quando exatamente eu sai para comprar um maço.
Ele
me encarava, desafiador, como que pedindo ‘só um, vamos’.
Tirei
um e segurei por algum tempo, diante da janela, pensando em acender. Em como
iria soltar a fumaça pela janela como que em um ritual, expelindo minhas
preocupações, dúvidas e meus demônios através deste ato.
Foi
uma noite difícil, tive diversos pesadelos, minha digestão foi terrível durante
todo o período e somente graças a remédios digestivos não regurgitei. Esse
sentimento me assombrou por mais alguns dias...
***
_
Onde os sonhos vão para morrer, você me perguntou certa ocasião, e essa
pergunta me acompanha e vem perseguindo por dias e semanas agora... Confesso
não saber responder acuradamente, não pelo fato da geografia de lugares
abstratos não ser exatamente clara ou direta. Paraíso e inferno são mais
simples, claro. O paraíso é onde está nosso coração, ou onde encontramos
conforto e paz, como religiões de todo o mundo denotam e declaram. O inferno,
porém, é onde o homem cai de seu pedestal, vê a brutalidade e selvageria de sua
natureza, e toda a dor e destruição que essa pode carregar ou produzir.
Os
sonhos porém, jamais tocam a terra. Jamais chegam ao chão, ou saem dele. Pairam
e vivem no ar, na dimensão do ontem fantástico e do amanhã utópico, e, estes
reinos mesmo que sem seus adjetivos, jamais estarão em nosso alcance. Não... O
amanhã pertence à fantasia, como os sonhos. A um reino etéreo e lúdico onde
homem algum pode entrar se munido de preconceitos, a menos que seja a
esperança.
Faz
uma pausa, dramática ao mesmo tempo que necessária. Um homem precisa molhar sua
garganta também, afinal, para que mais palavras possam ser proferidas.
_
Os sonhos, meu amigo, são parte importante da tradição oral humana, da
necessidade por comunicação estabelecida por este animal social, tão afoito e
preciso de contos, fábulas e mistérios.
Compreender
os sonhos é um mistério profundo e complexo, que, mesmo com toda a tecnologia
do mundo seria um estudo dificilmente proveitoso. Não, não creio que seria de
qualquer proveito mesmo.
Os
homens buscam respostas para os mistérios do mundo, e, o mundo se recusa a nos
oferecer estas respostas facilmente. Buscamos refúgio em nós mesmos, e surgem
as histórias. Nossa mente é algo fabuloso, por mais que compreendamos dela tão
pouco. Nascem os mitos da criação. Nascem as suposições primordiais. Daí surgem
as visões de mundos cintilantes e capazes de despertar e fascinar nossa própria
imaginação.
Assim
nascem os sonhos.
A
forma de, continuamente estimularmos nossas mentes em busca de respostas e mistérios
divinos cada vez mais complexos e fantásticos. A forma de continuarmos com
nossas histórias, e a criar novas e mais fantásticas histórias. De estimularmos
nossas mentes arcaicas e imunes à fantasia devido a constante imersão num mar
de cinza, num universo particular e restrito da rotina do dia-a-dia.
Uma
nova pausa, um novo gole de água.
Veja
bem, a rotina, a constante é algo que, em tempos primievos salvou nossos
ancestrais, impediu que a grande maioria de nossa população – que em dado
momento, como você deve saber, chegou a perigosos índices de menos de cem
habitantes em todo o globo – e isso faz parte da cultura, do pensamento comum
humano, de que a rotina, repetição e padrões são bons. E que seria loucura
buscar além disso. Desbravar.
Curiosamente,
são os desbravadores e aqueles capazes de ousar que ganham a história,
valendo-me do chavão britânico ‘quem ousa, vence’, mas isso é outro assunto.
Doravante, estes sonhos pululam e se dispersam por nossa mente e nosso
dia-a-dia para que sejam facilmente identificáveis, e assim igualmente
facilmente compreensíveis.
Não...
Isso saiu errado.
Os
sonhos são parte de nós. Parte de nossos temores, de nossas ambições. De nosso
universo particular querendo compreender o universo maior, explorar e desbravar
e compreender o todo, a partir do pouco que temos e somos capazes de conceber.
São esperança e inocência.
E
afinal, onde vão estes para morrer, eu me e te pergunto?
Hum-ram
(pigarro).
Eles
não vão. O máximo que pode ser feito deles, é ser esquecidos e negligenciados,
ignorados e deixados de lado. Como um livro antigo, guardando pó.
Somos,
meu amigo, a essência desses sonhos. A matéria-prima deles, e, somente com
nosso passamento é que estes poderão assim também fazê-lo.
Silêncio.
_
Mas a vida não é uma obra literária.
_
Não creio que seja...
_
Então, não é nada prudente interpretar o mundo da mesma forma, correto?
_
Bem, nos é dada uma perspectiva limitada, o que nos impede de ver a figura
toda... Não somos capazes de compreender o conto todo, uma vez que só conhecemos
e sabemos interpretar completamente um dos personagens.
_
Então, o que fazer?
_
Viver, meu amigo. Creio que só podemos viver, e deixar que outros se preocupem
com nossos contos.
***
Já
é começo de dezembro quando consigo finalmente estabelecer alguma nova conversa
com Marina. Ela diz-se mais calma e disposta a oferecer a bandeira branca, para
que possamos ao menos estabelecer uma relação civilizada, em virtude de nossa
menina. Minha mãe havia nos convidado para o jantar de Natal, sem saber de toda
essa briga que tivemos, e fiz de tudo para que pudéssemos, ou estabelecer um
relacionamento honestamente bom ou pelo menos atuar sobre isso.
Saímos
para jantar, como um experimento. Acredito que funciona bem, apesar de todos os
silêncios constrangedores, os olhares para o nada e uma vasta soma de momentos
que poderíamos ambos passar sem vivenciar novamente. Existe um elefante na
sala, e ninguém quer ser o primeiro a mencionar.
Principalmente
porque ele não é o problema.
Não...
Somos nós.
Não
existe mais um nós. O vaso está quebrado, e não importa quão habilidoso seja
com a cola, sempre haverá rachaduras.
Humpf.
***
**
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