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3 de julho de 2013

Ato 1 – A vida, o universo e tudo mais (parte 2)



Milton trabalha no banco francês de nome Cosette, subsidiário de um estabelecimento de mesma natureza, porém maior, e que serve de sede para o mesmo em Marseille, e, originalmente batizado como o ‘Segundo Banco Nacional de Marseille’, nome este, comum demais, de acordo com um vasto, longo e custoso estudo e projeto de marketing realizado em conjunto com diversas faculdades e cursos superiores nas áreas humanas (que leva a questão elementar de ‘mas não são todas?’, o que, obviamente, seria fugir do ponto principal aqui apresentado), incluindo pesquisas de opinião pública para que enfim um conceito inovador e brilhante fosse apresentado: As filiais internacionais todas seriam batizadas, cada qual em sua região, com o nome de um personagem famoso da literatura francesa. Nas Américas, como já mencionado, é Cosette, na África Djali, na Ásia Déruchette e na Oceania Gwynplaine, a escolha de todos esses nomes femininos (apesar de na África ser menção a um animal de estimação) de obras de Victor Hugo faz-se uma vez que, de uma forma ou outra cada qual soasse regionalista o suficiente, mesmo que única e somente de origem francesa, deixando para a matriz e Europa uma última homenagem feita, em contradição às demais, ao autor Alexandre Dumas, batizando o estabelecimento como Banque d’Artagnan. A instituição e desta forma todas suas subsidiárias estão sendo compradas por um outro banco francês, com nome que, apesar de não seguir o raciocínio do Banco de Marseille, obviamente remete à outra obra, também francesa. O banco Swanns anunciou em agosto do ano passado as análises jurídicas e contábeis para a incorporação. E, para consolidar o nome e a estrutura já construída o Swanns não pretende usar qualquer variação em seu nome internacionalmente. Mais direto e predador que muitos concorrentes, aproveitou os percalços de crises fora de suas fronteiras para expandir seus negócios e crescer, incorporando, destrinchando e comprando bancos menores, ou em situações mais difíceis. Situação exata em que o Cosette se encontra no momento, reerguendo-se após o colapso imobiliário do mercado norte-americano. Nos cadernos de economia pelo mundo afora, apesar da relação inexistente e já explicada, os trocadilhos evidentes sempre dão margem para alguém surgir fazendo alguma alusão de que o banco francês está ‘em busca do tempo perdido’, crescendo e traçando ‘o caminho de Swann’. Isso, pelo menos é o que ocorre fora das barreiras das instituições sondadas para serem compradas, ou aquelas que recentemente passaram pelo processo, onde surgem os quase diários rumores de demissão, corte de pessoal e corte substancial de salário ou outras alternativas ainda piores (como aumento de jornada, aumento de carga de trabalho, diminuição de benefícios E diminuição de salário, por exemplo). Todos rumores estes negados veemente pelos dirigentes entre reuniões de negócios, de planos de atividades, de projetos de sinergia e integração entre as diversas instituições... Ainda que sem notoriedade alguma ou destaque na mídia, departamentos inteiros tenham desaparecido e se desfeito, funcionários tenham de se realocar e, prédios inteiros deixem de ser controlados pela instituição. Por algum motivo alheio à lógica convencional, inclusive de seus funcionários e colaboradores, o brilhante e sempre prestativo e produtivo departamento de marketing se manteve intacto e ativo. Campanhas como ‘O caminho do Swans encontra o de Cosette’, ou similares atos de suma criatividade que expõem além de claras amostras de nepotismo corporativo, uma contradição tamanha e óbvia como força motriz por trás de tais campanhas... Mas o que esperar de uma equipe capaz de, em todos os nomes que se pode escolher, de todas as referências que se pode fazer, de todos os paralelos que se pode traçar, escolhe logo o nome de Cosette, a menina pobre e sofrida do livro ‘Os Miseráveis’? Além das anedotas prontas e evidentes de que a instituição pretenda abraçar a estes, ou que é assim que se enxerga e considera, se não a si, ao menos aos seus funcionários, fica a óbvia questão da ironia lógica de, entre todas, a escolha desta personagem para vincular à imagem de uma instituição financeira sólida e de sucesso... De qualquer forma, indiferente ao nome que possui ou ao departamento e pessoas que o gerenciam, o banco funciona, tem dezenas de milhares de funcionários espalhados só por esta região, uma estrutura organizacional rígida e aparentemente funcional, e define como missão “Garantir a excelência na entrega de produtos e serviços financeiros, otimizando e agregando valores para clientes e acionistas”, o que se resume na demagogia, que, faz cartilha no empreendedorismo do século XXI, uma vez, que, como Milton (recentemente promovido como responsável pelo departamento de capacitação e treinamento) insiste, ‘como alguém pode definir a excelência como meta, se não oferece as bases?’, sendo esta, uma de muitas reflexões que percorrem a mente dele (Milton), conforme passa seus dias (e algumas noites), observando, analisando e definindo projetos e programas para seu departamento. Estas últimas, vêm sendo uma grande parte do que ele faz... Milton tece muitos comentários, traça muitos paralelos e molda muitas teorias, apesar de trabalhar cada vez menos, recentemente. Sua especialidade vem sendo fugir de seus superiores, fazendo-se parecer sempre ocupado nos horários em que eles o procuram, e sabendo sempre a hora certa para lhes oferecer algum retorno. Vem se sentindo cada vez mais frustrado, apesar do gás inicial que tivera quando fora promovido, achando que poderia mudar o mundo, ou, ao menos, fazer com que injustiças cometidas no passado, e todos aqueles incapacitados que não deveriam sequer entrar pela porta principal do prédio, e portanto, menos ainda para trabalharem, tomarem decisões imprescindíveis que afetam a vida dos clientes, e, com toda a certeza, nenhuma perspectiva ou oportunidade para que esses ascendam profissionalmente. Em termos gerais, tudo o que ele gostaria é de fazer valer a tão falada ‘meritocracia’ pudesse realmente ser algo não só comentado, mas visto a cada pessoa promovida, e evidente para cada funcionário, cliente e entidade fiscalizadora. Para que realmente fosse uma meta que os clientes recebessem melhores produtos e práticas financeiras (e é verdade que pouco se importava com os acionistas). Cheio de projetos e programas e idéias, o oposto de sua situação atual era praticada, com seus chefes fugindo dele, sempre em reuniões urgentíssimas, compromissos inadiáveis, e assuntos importantes para resolver (que dificilmente eram alguma dessas alternativas, indo de almoço com a sogra ou algum outro parente-que-não-precisa-dispor-do-tempo-de-um-funcionário-de-alto-escalão, fazer meditação ou simplesmente cortar as unhas no escritório), e o gás inicial foi se dissipando, e tornando apatia, e as idéias desperdiçadas com horas de Tetris, paciência e desculpas esfarrapadas. Havia se tornado aquilo que visava mudar... E, tudo o que conseguia pensar em fazer de útil com seu tempo, era reunir histórias, dados, laudos e processos falhos da sistemática atual, para que, mesmo que não imediatamente, ou, mesmo que nunca tivesse coragem, pudesse pensar, planejar e expor as condições a que as pessoas estavam submetidas, para que, mesmo de forma bastante indireta, pudesse causar uma mudança e um efeito positivo para futuras administrações e gestões. Passava horas e horas diante do computador e ao telefone, ligando em busca de denúncias nunca efetivadas ou simplesmente esquecidas, enquanto preenchia formulários e redigia cada uma das histórias diante de si, lendo e relendo, formulando idéias para mudar as situações e impedir que estas venham a ocorrer de novo. Entre um telefonema e outro, lembra de suas próprias experiências... Algumas mais engraçadas, algumas lamentáveis e umas poucas que lhe causam arrepios ainda hoje, uns bons anos mais tarde.
Por exemplo, com pouco tempo de banco, foi transferido para uma agência maior, no centro de uma cidade pequena, com atendimento amplo, muitos funcionários e muitos problemas novos, que, sequer imaginava que seu status de funcionário amparasse a resolver. De muitas formas que usou para descrever aquele lugar, a mais enfática era de ‘as portas do inferno’, onde pessoas fumavam em ambiente fechado – com ar condicionado – havia um responsável pelo estabelecimento passava mais tempo vendo pornografia em seu computador pessoal – sempre conectado a banda larga da instituição, sem que estivesse conectado à rede – e os clientes agiam como crianças mimadas e sem razão alguma (sendo que, inclusive, foi neste ambiente que ouviu pela primeira vez em toda a vida uma pessoa ameaçando sua vida, ou no caso, sua morte, por um motivo tão frívolo que, falha a memória, mas não obstante, não foi suficiente para ser a última ocorrência desta natureza). Havia ali uma mulher, que, por algum tempo foi sua superior imediata, e, que por mais que tentasse, se esforçasse e agisse para não ser, era simplesmente uma pessoa detestável. Espalhafatosa, mal educada, rude e cretina, seriam apenas as primeiras palavras que Milton usaria para descrevê-la, mas, obviamente, havia uma necessidade maior em descrevê-la, e a situação. Ela era uma mulher gorda, morbidamente obesa, e que, por motivos de saúde, realizou uma operação de redução de estômago, perdendo alguns de seus quilos sem deixar de ser gorda. E isso sequer seria ou é um problema pra muita gente. A personalidade fal(h)a mais alto que a aparência, e isso é algo a que Milton sempre pregou e defendeu. O que ocorre é que aquela mulher morbidamente obesa era extremamente detestável, com uma risada que parecia um guincho de um porco morrendo expurgando-se e libertando-se da carne que um dia chamou de corpo, com uma pré-disposição natural para o puxa-saquismo e a falsidade, aliadas à dissimulação e falta de caráter ou ética (como falar mal de um subordinado para outro, de forma sempre ofensiva, e sem fazer com que isso pudesse transparecer em algo positivo ou tivesse algum contexto sequer na maioria dos casos). Aliado a tudo isso, havia um senso distorcido de realidade, que a fazia crer, que apesar de seu excesso de peso e sua personalidade, que era uma mulher cobiçada e desejável. Uma ninfa perdida que deixaria Afrodite ofendida que tamanha graça não fosse dela. Algo que, para Milton, Fausto (na época ainda um ‘soldado raso’ como costumavam dizer e que havia começado a trabalhar muito pouco antes) e toda a ala masculina que trabalhava no mesmo prédio (e incontáveis outros mais, fossem clientes, fossem funcionários de outras agências ou bancos) só podia ser mais improvável e ilógico que gatos com asas, ou encontrar na rua um bilhete de loteria premiado. Aproveitando a onda de mitologia grega, havia sim uma figura digna de comparação com esta senhora, sendo esta figura Euryale, uma górgona escamosa e grotesca cujo maior dom era fazer as pessoas cobrirem seus olhos em sua presença. Mas isso é em grande parte maldade, pois mesmo a pessoa mais horrorosa não faz jus aos comentários mais maldosos feitos sobre si, ou a imagem mental cartunesca filtrada por seus detratores. E mesmo a pessoa mais horrorosa possui alguma virtude, ou algo de positivo. Pena que tudo de positivo ficasse guardado, ignorado durante o expediente ou qualquer tipo de interação profissional. Afinal, uma pessoa que fazia questão destacar erros mínimos e enfatizá-los como a pior atrocidade cometida pelo ser humano, chamando a atenção do funcionário diante de clientes ou outros funcionários, além de, eventualmente quando lhe fosse conveniente esquecer-se do nome de seus subalternos (afinal, guardar os nomes de cinco pessoas que você só vê diariamente por um terço do horário em que está acordado é algo realmente desafiador), entre outras falhas de necessidades básicas como tato e habilidades gerenciais mínimas como dinamismo, motivação e garra – detalhes estes que conduziram Milton à formulação de uma teoria sobre como a competência é um conceito arcaico e cada vez mais ignorado no mundo competitivo de negócios, não sendo claro, é verdade, o exato motivo pelo qual isso é um fato, uma vez que a competência é sempre uma palavra chave em conceitos, palestras, livros de auto-ajuda, dinâmicas, reuniões, programas de aperfeiçoamento e... do bom-senso comum – não é alguém que parece muito interessada em demonstrar-se uma boa pessoa, se, por algum motivo realmente o for. Depois de tudo isso dito, não é de se estranhar que esta mulher estivesse solteira (ou como, mesmo ela própria dizia ‘encalhada’), e, pela pequena amostra de seu comportamento expansivo, que estava desesperada para tirar as teias de aranha... E, num ato que, talvez fosse a mais pura amostra de boçalidade que uma pessoa poderia imaginar, num belo dia, essa senhora resolveu jogar seu charme sobre Milton. Em horário de trabalho. Sim, este é o mote de todos esses insultos, apesar de mesmo não deixar de ser gratuito, de certa forma, também não deixa de ser verdadeiro. Com o pretexto de que queria ‘ajudá-lo’, ela ficou olhando pra Milton com uma expressão que ela tentava fazer ser sensual e sexy, entre piscadelas e mordidas de lábios que eram nada mais que patéticas. Ele sentiu uma necessidade de rir, e, antes que pudesse fazê-lo, ou dizer qualquer outra coisa, simplesmente deixou o recinto. Com alguma honestidade, Milton disse, que, francamente, não foi aos risos que deixou o recinto, e sim com um asco e um mal-estar, temendo por como seria o próximo dia. Nos dias que se seguiram, houve muito estranhamento e desconforto, até que ela pediu transferência, e Milton mudou o tom da história, para contá-la aos amigos como uma anedota. Até hoje, quase oito anos depois disso, ele ainda sente que esse foi um de seus piores dias de toda sua vida. E ainda tem um nó na garganta quando tem alguma reunião com uma mulher que lembre tal górgona seja na personalidade, seja na aparência, e só consegue agradecer que seja um passado distante e longínquo.
De todos os motivos que o faziam sentir-se mal com toda aquela situação, havia o fato de que aquilo lhe parecia tão absurdo e bizarro que jamais lhe ocorreria que uma instituição de renome e incontáveis filiais e tudo mais que o banco Cosette possuía, que algo daquela natureza fosse algo além de uma mera piada de mal gosto, ou uma má interpretação,  e principalmente algo que não seria tolerado. Mas ninguém realmente se importou, a vida seguiu, e nada mudou... E como Milton veio a descobrir depois, vez após vez, com casos realmente preocupantes, que levaram até alguns funcionários a cometer suicídio graças aos ouvidos surdos da instituição que se faziam inócuos ao que estava acontecendo, achando perfeitamente normal e aceitável o que, para eles, não era nada mais que flerte, que cobranças exageradas eram apenas insistência. Milton inclusive recebeu os documentos de uma funcionária que foi ameaçada diversas vezes por seu superior caso não praticasse sexo com ele. O superior aproveitou-se do fato que ela não poderia abrir mão de seu emprego (uma vez que o marido havia recentemente sido dispensado), para pressioná-la. Sem conseguir sair, nem da agência em que trabalhava, ou poder pedir demissão, ela cedeu, no momento, algo do qual se arrepende ainda, e foi um motivo de brigas feias com o marido, levando-a ao divórcio. Sem qualquer ajuda na instituição, ela apelou para a justiça, e conseguiu uma ordem restritiva, e, mais tarde, uma indenização para não prestar queixa formal, jogando tudo para baixo do tapete. O gerente continua trabalhando pra a instituição, tendo, inclusive, recebido um prêmio de desempenho por sua agência no último semestre, ganhando uma viagem com tudo pago para um resort. Levou a esposa.
Existe um rumor, que roda nos círculos de funcionários de mais tempo da instituição, sobre uma reunião, onde, após muitas discussões, foi levantada a questão do assédio moral, e como deveria ser combatido na instituição, quais formas a direção aconselha que sejam ou fossem utilizadas. Ao qual se respondeu “Aquelas que não atrapalhem nossos resultados”.
A combinação burrice/falta de caráter/ negligência parecia uma constante entre aqueles responsáveis e cadastrados para tomada de decisões, conforme Milton via, dia sim, dia também, que coisas simples e corriqueiras se tornavam verdadeiras odisséias homéricas... Coisas que passavam por todos os espectros da falta de decisão ou critério ou julgamento lógico, indo de deixar de comprar sabonete para os banheiros para reduzir despesas da agência, até o absurdo de um cliente ao ceder uma procuração (ou seja, um documento abalizando outrem para cuidar, no caso de um banco, da conta corrente, podendo ver saldos e extratos e, caso necessário, movimentar quantias e até realizar empréstimos, autorizado pela própria pessoa), não mais estar habilitado para movimentar... A própria conta. E de mal caráter haviam muitas e muitas mais. Vendas para clientes analfabetos ou semi-analfabetos, vincular produtos sem o conhecimento ou consentimento do cliente e até mesmo sem que o produto realmente sirva ao cliente de forma alguma (como um seguro de vida a uma pessoa com problema cardíaco). Havia um caso sobre seguros que Milton sempre se lembrava e freqüentemente mencionava nas histórias em treinamentos, e quando perguntado sobre o porque de, mesmo trabalhando em um banco forte e vasta no ramo, ele próprio não possuir um seguro de vida de qualquer natureza. Para sumarizar as pessoas da equipe de supervisoras de uma empresa terceirizada do produto, Milton batizava estas pessoas sob a tutela de ‘mais-falsa-que-nota-de-três-com-auto-retrato-de-criança-de-cinco-anos’, ou simplesmente de ‘a manifestação da falsidade em forma de ser humano’. E dizia isso vez após vez, devido a vários incidentes em que, fora do ambiente de trabalho veio a encontrar uma destas supervisoras que simplesmente o ignoraram (como a outros funcionários de patente menor), enquanto ao visitar uma agência sobravam beijos, abraços e ‘querido’ isso, ‘amado’ aquilo, e os eventuais ‘vocês são especiais’ além de ‘nós acreditamos muito em todos vocês’. Faz-se aqui necessário a existência de parênteses para enfatizar que indiferente da existência de lobby ou não nesta situação, e, honestamente se lobby é a palavra correta ou mesmo se o ato deve ser considerado ilegal e até criminoso pelo fato de interferir com a intenção do capitalismo e mesmo a ordem natural da lei de oferta e procura, assim como as prioridades estabelecidas na missão e propósitos da instituição, de “Garantir a excelência na entrega de produtos e serviços financeiros, otimizando e agregando valores para clientes e acionistas”, uma vez que isso deixa de ser verdade quando a excelência na entrega de determinado produto ou serviço passa a ser relativizada pela escolha do funcionário em oferecer um produto que lhe trará vantagens (via de regra pela ação de lobistas mais-falsos-que-nota-de-três-com-auto-retrato-de-criança-de-cinco-anos, oferecendo incentivos, como prêmios monetários e até viagens, para que os funcionários ofereçam seus produtos de menor qualidade ou competitividade ou preço perante o mercado), e não de um produto que será benéfico para o cliente. Não também que o produto seja de todo mal. Só que existem opções mais baratas, abrangentes, com atendimento mais personalizado e amparo maior aos clientes na necessidade da utilização do mesmo, e, o próprio Cosette – e o futuro comprador, Swann – oferecem estas opções, e não de empresas parceiras terceirizadas.
Em um caso, que, por todos os meios e ações, deveria levar no máximo trinta dias para o acolhimento de proposta de sinistro (ou o comunicado de falecimento do titular da apólice de seguro para acionar a vigência da mesma), com toda a documentação entregue, com todos os fatores necessários para análise em mãos da seguradora e com todas as provas cabíveis já apresentadas, de forma a ser incontestável o pagamento do prêmio à família, e o mais rápido possível. Isto não ocorreu, a menos que o significado de ‘rápido’ seja outro em algum dicionário específico para empresas seguradoras, com sinônimo para ‘nunca’, ou ‘somente se e quando o cliente contestar a decisão judicialmente’. Após diversas e repetidas ligações e farpas trocadas entre cliente, instituição e seguradora, durante quase cinco meses, com constantes alegações de que faltavam um, dois ou, na última tentativa, todos os documentos, a supervisora da seguradora se pronunciou a falar com os enraivecidos e furiosos herdeiros. Após quase vinte minutos de contato com o departamento responsável pelas análises de sinistro, chegaram a brilhante conclusão de que só faltavam... Todos os documentos já enviados e protocolados (e que, talvez jamais chegaram a eles por falha do funcionário responsável por enviá-los para o departamento após receber da família), e, que assim que fossem encaminhados, a seguradora, a análise seria mais rápida (novamente, talvez no dicionário específico deles). Com os herdeiros um pouco menos nervosos, uma vez que o dinheiro se fazia necessário – não valendo a pena uma ação judicial, se pudessem resolver de outra forma – a supervisora disse, com um tom sério e compassivo “Imagine se o pai de vocês não tivesse este seguro? Em que tipo de dificuldades maior vocês não estariam?”, uma pausa reflexiva, olhando com olhar de cachorro sem dono, e quase buscando o colírio para pingar em seus olhos simulando lágrimas, ela ainda emendou “Agora, vocês já pensaram em fazer um seguro para vocês?”.
Milton, presente em todas as etapas do diálogo com os herdeiros, incluindo esta última, não sabia onde se esconder, diante de tamanha demonstração de cara-de-pau. Ainda mais na segunda vez que isso ocorreu, alguns meses depois, quando, num ultimato para resolver a situação sem apelar para um advogado, um dos filhos do falecido voltou a conversar com a supervisora, que, manteve o mesmo tom de discurso condescendente. E ainda assim não pagou.
Ainda sobre os seguros, numa situação envolvendo a estratégia do lobby de recompensar e estimular os funcionários na comercialização dos mesmos através de uma competição sadia que oferecia ao maior vendedor uma viagem internacional de uma semana com tudo pago. Uma funcionária, não identificada, e, que por motivos de zelo, também se vê como melhor não identificá-la realmente, mesmo que tenha cedido diversas entrevistas para documentos internos sobre motivação e vendas, foi capaz de bater recordes com este produto em pouco mais de três meses (lembrando que o prêmio era para o semestre, e a apuração diária pontuava cada um dos funcionários de acordo com o volume de venda). Como todos os seguros este é pago em intervalos que podem variar entre: Mensal, semestral e anual. O ranking de vendas, porém, não trazia qualquer distinção entre as categorias (uma vez que o produto pago anualmente equivale a doze mensalidades do mesmo pago mensalmente e o volume de vendas no primeiro caso era doze vezes maior), o que oferecia uma análise bastante tendenciosa sobre o volume de vendas propriamente dito. A funcionária em questão vendeu TODOS seus produtos como a modalidade anual, vinculando a toda e qualquer operação e cessão de crédito feita aos clientes, utilizando, porém, uma conta inativa para o débito da segunda parcela, fazendo com que a grande maioria dos clientes a contratar o serviço sequer perceberem que o fizeram. A fraude foi descoberta, quando a receita deste produto da agência em que a funcionária campeã trabalhava começou a diminuir consideravelmente no ano seguinte com quantidades igualmente recordes, de inadimplência e cancelamentos. Esta constatação aconteceu, inclusive, antes da viagem prometida. E mesmo assim, a funcionária não foi penalizada, viajou normalmente, e quando voltou, também não sofreu qualquer tipo de injúria. Foi transferida para outra agência, e em algum tempo, promovida. A história circula e circula bastante entre reuniões, ou sempre que é anunciada nova campanha do produto em questão, e pouco ou nada se sabe porque a história foi abafada, e tal funcionária promovida. Sabe-se, porém, que ela acabou, numa nova campanha, um ou dois anos depois, ganhando nova viagem, com esquema similar. Novamente, sem penalização. Veio a sair do banco, sim, mas por conta própria, em busca de um emprego em outra instituição que lhe ofereceu um pagamento maior, cargo e um horário mais flexível.
Concomitante a isso, havia ainda os fortes indícios de malandragem por parte de funcionários principalmente de cargos elevados, para conseguirem benefícios próprios, fosse as custas de diminuir os benefícios para outros funcionários, fosse aproveitando-se de exceções e mesmo de alguns direitos inegáveis, em vantagem própria. Um caso notável é o de um gerente de unidade que, solicitou material de construção para uma reforma em sua agência, e pediu quantias sempre maiores que o necessário. O departamento de auditoria levou algum tempo para notar, mas, quando viu, já um tanto tarde, descobriu que esse ‘material a mais’ foi utilizado na construção e ampliação da casa do distinto senhor, que, inclusive embutiu nas notas uma churrasqueira de alvenaria, muito bem projetada e perfeita para realização de eventos no quintal amplo que ele montou, e foi nisso que foi pego. Sobre o caso, diz-se que ele pagou as despesas, com um acordo de empréstimo, mas somente o que a auditoria conseguiu provar e explicar que foi para a residência do mesmo. Muita coisa continuou mascarada em meio a reforma realmente realizada.
Outro, digno de nota, fez-se valer do direito a afastamento por motivo de doença, que, pelo prazo de até quinze dias é garantido somente com apresentação de atestados e notas médicas, sem a necessidade de perícias e avaliações, por um caso de conjuntivite. Claro que, existem conjuntivites e conjuntivites, e, ninguém discordaria da gravidade do caso... Se não existissem pessoas que o encontraram em um quiosque em praia paradisíaca, refrescando-se com uma água de coco geladíssima e nem o mínimo sinal de qualquer tipo de anomalia em qualquer um dos olhos. O mais curioso, porém, é o fato de que o médico responsável pela assinatura do atestado conferido tem especialidade como ginecologista, que além de não ser uma especialidade indicada para enfermidades nos olhos, também tem o fato de o gerente em questão ser, ou, pelo menos de acordo com os documentos e fatos inferidos até o caso, deveria ser do sexo masculino.
Soma-se a estas, o fato de, recentemente, algumas agências terem votado por deixar de comprar sabonete como forma eficaz para redução de despesas, forçando com que os funcionários os levem de casa, ou num outro espectro, a própria instituição que resolveu deixar de enviar holerite para os funcionários para diminuir os custos de impressão, sendo que todos os funcionários de uma forma ou outra farão esta mesma impressão para controle e arquivo de tal documento. As histórias de más decisões se espalham por uma gama quase infinita, e, é verdade que muitos casos são somente sinônimo da época em que se encontram, reflexão do pensamento corrente. Mas a verdade é que muita coisa é simples mesquinharia, e falta de visão, no que inclui veto a idéias novas que possam realmente causar uma redução de custos (como soluções para redução de gastos com energia, seja otimizando focos de luz, seja aproveitando a luminosidade natural, seja renovado a fiação elétrica ou trocando os aparelhos que mais gastam por equipamentos novos com melhor tecnologia...) e definir todo e qualquer fator que envolva o futuro da instituição e da carreira dos funcionários.
Quando se fala em carreira, ascensão meteórica ou qualquer outra metáfora e implicação a um funcionário subindo como um relâmpago pelos patamares de uma corporação, pelo menos no banco Cosette, o nome a se falar e ouvir é “Fausto”.
Fausto é um sujeito esforçado, e isso é importante de ser dito antes mesmo de qualquer avaliação incorreta acerca de sua personalidade. Esforçado e competente, apesar de seu lado enrolador e tagarela, mas, de toda forma, esforçado. Começou a trabalhar alguns meses antes de Milton, no mesmo posto, já anteriormente descrito. Logo de cara ganhou a simpatia dos gerentes e responsáveis, e, quando descobriram de seus contatos com um importante político e figura fácil eleitoreira e eleitorável, não tardou para que essa simpatia só aumentasse. Novamente, não por isso que Fausto fosse mal caráter ou incompetente. Ele é bastante simpático, e sabe sim usar muito bem os contatos sociais que possui, figurando entre as colunas sociais de jornais locais de onde quer que esteja. Sempre com um sorriso e uma pose ao lado de prefeito, sub-secretário ou o que quer que seja. Com seis meses ele ascendeu ao posto de gerente, pulando algumas etapas no caminho, e foi para uma cidade menor, onde, acreditavam, seu talento faria com que o Cosette pudesse crescer e ganhar maior credibilidade naquela região. Realmente, cresceu. Credibilidade é um fator genérico e de difícil avaliação. Se um dos critérios for a quantidade de reclamações diante de órgãos competentes de fiscalização e de proteção dos direitos do consumidor, com certeza não seria nada favorável a Fausto. Mas os resultados se mantiveram, e o crescimento se manteve mesmo depois da saída dele (promovido novamente, um ano e meio depois, para o prédio da matriz, como o segundo em comando), continuando e se mantendo até hoje. Sim, ele tem vontade e foco, e foi por este motivo que, quando estava na região do topo da pirâmide e o mais lógico seria apenas continuar subindo, ele resolveu tomar outro caminho, e saiu. Tentou uma carreira política, fez aliados importantes, conseguiu votos importantes para seu partido, e, indicou um grande deputado de seu partido, sem conseguir, porém, uma vaga. E isso não foi esquecido. Trabalhou como assessor deste deputado por dois anos, até que, uma divisão no partido fez com que acreditassem precisar de um novo rumo, e, ele recebendo um bom convite para voltar para o Cosette de seu amigo pessoal Dennis Moore (gerente continental de serviços de cartão de crédito), voltou para o cargo de vice presidente – que gerou certo frenesi pelo fato de sua indicação para o cargo em oposto a um funcionário de carreira e mais experiente, e realmente familiarizado com as condições e fatos da gestão presente e corrente. Não fez diferença. Fausto voltou, e mais perto de nunca do topo da pirâmide.
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De todas as imagens e simbolismos para representar o ambiente de trabalho, com toda a certeza a pirâmide é a imagem mais acurada, uma vez que pode significar ‘distribuição de renda e serviço em uma empresa/empreendimento’, ou considerando a distribuição de serviço, com base longa, composta de todo o corpo de funcionários do, que muitos batizam, chão de fábrica, ascendendo gradualmente, afunilando a quantidade de pessoas por função (o que, aumenta relativamente a gama de serviço – por abranger uma área maior – mas diminui a quantidade – por conter um espaço menor), até o topo, onde se encontra o presidente ou CEO ou quem quer que seja responsável e responsabilizado pela instituição, de forma inversamente proporcional, ocorre como no golpe famoso e conhecido como ‘esquema de pirâmide’ (justamente pela lógica de que a pessoa abaixo paga à pessoa acima, que paga à mais acima e assim vai até o topo), ascendendo porém com a distribuição de acordo com o lucro gerado e produzido por funcionário e distribuído à camada acima e à mais acima novamente, nesse ciclo vicioso que coloca a renda mais alta no topo, onde se encontra o presidente, CEO ou quem quer que seja responsável e responsabilizado pela instituição, descendo e diminuindo até as bases, onde se encontram a maioria de funcionários da instituição. De cada fração de lucro produzido, as quantias são distribuídas, de acordo com cargo e comissão.
Suponhamos um lucro sem unidade alguma, com o valor cem. Pra cada cem produzido por um funcionário qualquer, em qualquer escala e posicionamento na pirâmide, o lucro é distribuído proporcionalmente em cada escala (cargo) da mesma. Digamos que existam dez escalas até o topo, então, cada uma leva uma fração equivalente a dez. Acontece que, cada escala acompanha quantias distintas e bastante diferenciadas de funcionários. No topo, normalmente existe apenas um, numa pior hipótese, de acordo com o tamanho e porte da instituição, uma diretoria com não mais de dez, vinte funcionários. A base compõe, sempre quantias grandes. Centenas, milhares... Milhões. E a fração de dez, é dividida para estas quantidades. Não fosse isto uma noção lógica de administração e economia, e, na teoria, não tão longe do problema quanto parece. O problema é que essas frações são similares em qualquer empresa de dez até dez milhões de funcionários, e, de mesma forma, quando se fala de ‘participação de lucros e resultados’. Uma vez que o lucro e resultado pela instituição é o mesmo e linear, e, de forma geral se deve tanto ao trabalho do faxineiro quanto do presidente, a divisão do valor global deveria ser de forma regular e única. Média aritmética, valorizando todos os funcionários de forma equivalente uma vez que sua participação para o resultado, pra todos os efeitos, foi... Não é o que acontece. O sistema de dividir as frações do todo proporcionalmente não se aplicam, pois seria uma covardia, mas existem compensações e gratificações adicionais conforme cargos maiores, mesmo que estes já recebam e se valham destas gratificações adicionais simplesmente por possuir estes cargos maiores. E, quando se fala do assunto, surgem sempre as ramificações do conceito de lucro real e lucro contábil que, para todos os efeitos é o quanto a empresa maquia a demonstração dos valores obtidos.
De acordo com Malcolm Gladwell, porém, o dinheiro não é a coisa mais importante para a satisfação em um emprego. De acordo com o pesquisador, sequer se encontra entre as três prioridades básicas, que são: Autonomia (capacidade de tomar decisões), Complexidade (existência de desafios que demandem esforço) e Conexão entre esforço e recompensa (que é basicamente o que define ser: o funcionário ver com clareza os resultados de seu trabalho, e, apesar de parecer que se trata de dinheiro, a recompensa passa por vários aspectos que vão da simples satisfação do cliente pela conclusão/resolução de seu problema, ou um igualmente simples ‘parabéns’ e reconhecimento público do esforço e serviço).
Numa estrutura de carreira em que, as únicas possibilidades de obter a tríplice exigibilidade de Gladwell para satisfação se faz pela obtenção de cargos, pois na escala primária são virtualmente inexistentes (com exceção de conexão entre esforço e recompensa que depende muito mais da empresa e dos superiores que do trabalho realizado em si), onde a cada cargo e cada posição obtida se obtém maior (ou alguma) autonomia, complexidade real e um verdadeiro senso entre esforço e recompensa, não é de se admirar a quantidade de pessoas que trabalhem e se esforcem para galgar um lugar ao sol. Livros de auto-ajuda, palestras motivacionais e diversos materiais publicitários se empenham e esforçam para mostrar exemplos destes, para deixar claro e evidente que cada um pode ser e fazer o mesmo. Cada um pode fazer igual a estes ‘homens-que-se-fizeram-a-si-mesmos’, que moldaram seus próprios destinos com dedicação e esforço e, conseguiram um merecido lugar ao sol. Em contrapartida, existe o que aconteceu com José Antônio Leão (de tantos outros) com sua luz ofuscada por uma incompetência superior.
José era um homem esforçado, e talvez o maior exemplo de dedicação que uma empresa poderia esperar e pedir de um funcionário. Ele perdeu o nascimento de seu filho mais velho para fazer o fechamento do mês, em tempos que computadores ocupavam andares inteiros e eram menos capazes e competentes que calculadoras, além de uma coisa futurística e distópica, portanto o trabalho duro tinha de ser feito por horas a fio, revisto e conferido todas as vezes que necessário para que, não existisse margem e possibilidade de erro – e, conseguinte nenhum funcionário tivesse de desembolsar qualquer quantia para acertar os registros caso estivessem errados ou faltosos. Quando surgiu uma oportunidade, mesmo que remota e mínima, José agarrou com unhas e dentes, aceitando ir para uma cidade pequena e distante, numa agência cheia de falhas e problemas para substituir um gerente afastado por motivos de doença (aproveitando esse novo substituto para tirar férias e descansar um pouco também). Diante dos problemas de balanço e lucro da agência, havia uma grande chance de que ela viesse a fechar, caso não apresentasse pelo menos um sinal de recuperação nos próximos meses. Um desafio impressionante para um funcionário já familiarizado com os trâmites e rotinas, imagine para alguém em sua primeira tentativa. E José penou e perseverou. Levou muito trabalho para casa, nos fins de semana, no horário de almoço, no horário de descanso, e, conseguiu, finalmente, encontrar e resolver as falhas no acerto das contas. Em um mês, já estava tirando a agência do vermelho, e, nos cinco meses seguintes de trabalho duro e dedicação e uma evidente capacidade de liderança e empatia com sua equipe, foi capaz de, não só reverter o resultado negativo como também conseguiu um prêmio para a agência, de melhor recuperação no período, fazendo com que ela estivesse entre as mais lucrativas do último ano, somente com este semestre. Exausto, mas satisfeito com o trabalho, foi chamado para uma reunião com os representantes da instituição, incluindo o presidente na época e chefes de departamentos de alto gabarito. Todos para parabenizá-lo, agradecê-lo pelo ótimo desempenho, e, ao que ele pensava, oferecerem a vaga definitiva. Ou ao menos uma pequena promoção... Aumento de salário... Enfim... Algo... Ledo engano.
Entre as pessoas da reunião, estava também o gerente a quem substituiu, com sérias denuncias sobre os resultados e como foram obtidos. Claro que todas essas acusações eram tão sólidas quanto mercúrio a temperatura ambiente, e mesmo que não fosse assim, obviamente o banco não devolveria um centavo aos clientes para acertar a situação, a menos que a custo de penosos e demorados litígios e nada disso causaria, mesmo que vindo a público, prejuízos orçamentários ou danos a imagem da instituição, e, a verdade é que os argumentos eram apenas para justificar a puxada de tapete. Somente um argumento de funcionário com dor de cotovelo, que se aproveitou de subsídios oferecidos na legislação para afastar-se de um cargo que realizava mal, e que vendo o sucesso de outro resolve puxar seu tapete, e garantir que seu osso não seja retirado, custe o que custar. No caso, a carreira de José.
Tendo de optar por uma suspensão sem pagamento seguida de transferência para um fim de mundo qualquer, em outra agência com condições talvez até piores que aquela em que fizera todo o serviço que fizera – e isso, somente em respeito pelos quase quinze anos de devoção e esforço, algo que cada um dos presentes fez questão de enfatizar – ou partir. Mesmo que pareça uma escolha, bem, somente um tolo sem orgulho algum ou noção de si e seu esforço aceitaria tão pouco como um ‘reconhecimento’. E saiu de cabeça erguida, sabendo que não fez nada de errado. Seguiu sua vida, como pôde, com um orçamento mais baixo, é verdade, e enfrentando um bocado de dificuldades até voltar ao seu ritmo. Se algum dia realmente conseguiu. O nome dele raramente era mencionado, inclusive por amigos e conhecidos da época. Algumas pessoas, quando questionadas sobre ao assunto, sentiam que esta situação, uma das poucas a crescer e se espalhar para e por todos os funcionários (sem mencionar nomes e lugares, virando uma lenda urbana e história de corredores do Cosette) fora uma das maiores injustiças praticadas pela instituição.
A verdade é que José não foi o único e alguns foram vítimas muito mais cruéis, pois sequer tiveram chance de demonstrar seu potencial. Existem relatos de funcionários, estagiários e treiniees que, ou desistiram, ou foram forçados a abandonar devido a superiores simplesmente intragáveis, sugando cada boa idéia, cada realização, e devolvendo apenas reclamações e insultos. Havia, inclusive, um funcionário agora em alta patente em outra instituição que começara, quase na mesma época que Milton, também no Cosette. Diante de situações impossíveis,cobranças impraticáveis e um gerente que, de acordo com suas próprias palavras, para ser bipolar precisaria no mínimo remover dois pólos, e, deixara a carreira ainda no período probatório. Curiosamente, esse ex-funcionário foi responsável por uma mudança nos sistemas de produção e comunicação internas, otimizando processos em razões nunca antes imaginadas. Cresceu quase tão meteoricamente quanto Fausto, chefiando hoje o departamento de tecnologia de informação, e, sendo responsável por uma empresa de bancos de dados, que, presta consultoria para o Cosette.
Quando se fala de sistemas, banco de dados e processamento, normalmente, se passa que todos estes já mencionados devem, no mínimo, funcionar de maneira satisfatória. Nem ser excelente, excepcional e à prova de falhas como o de uma empresa de tecnologia de informação e que gerencie e administre bancos de dados (afinal, é o que eles fazem para subsistir no mercado), e nem ter uma estrutura que pareça confeccionada por uma criança de três anos. Quando se trata de um sistema que define e garante negócios de centenas, milhares e até milhões, quanto mais confiável e próximo do grau máximo de precisão. No que se trata de sistemas, o do Cosette estava longe de figurar entre os melhores, por uma série de motivos. Principalmente por trabalhar com uma linguagem obsoleta, pesada e que, com qualquer oscilação na conexão entre servidores, poderia causar a queda (bastante constante) das comunicações, causando seguidos e repetidos períodos sem que atividades das mais básicas pudessem se realizar. Não obstante, também quando funcionava estava longe de ser uma excelência em forma de bits e bytes. Nada intuitivo (em verdade um curso para usar qualquer aplicação sempre se fez necessário, mas todo e cada funcionário aprendeu, como nas tradições indígenas, de geração para geração, através de comunicação oral), complexo em excesso mesmo quando não deveria, e, com possibilidades mínimas de se reverter ou cancelar algo – a menos que se estiver disposto a gastar uma boa hora ou mais – e com uma facilidade quase energúmena para duplicidade em fatos, linhas e dados.
Em informática, um dado básico e indispensável é chamado ‘chave primária’, e, para toda e qualquer inserção em um banco, planilha ou o que quer que seja, este será o parâmetro utilizado para se obter cada detalhamento, planilha e estrutura de cada item. Normalmente, utilizam-se documentos da base de dados do órgão e departamento federativo da união estabelecidos para que não exista duplicidade dos mesmos e que são obrigatórios para todo e qualquer cidadão ou, em caso de pessoa jurídica, cada empresa. Pode haver mais de uma chave, considerando-se o exemplo do banco, como a conta corrente uma e, o documento básico do cliente outra, mas, de forma complementar, e nada mais, uma vez que alguém pode não pertencer ao grupo de clientes, e ter seu cadastro efetivo. Tudo isso é importante e indispensável para análises, aferimento de margens para trabalhar com o cliente, e para, a partir de parâmetros de conferência existentes e à disposição para consulta, possa se saber o máximo sobre o cliente antes de definir e estabelecer se este é de confiança, se é um bom pagador, ou mesmo se é um bandido ou fraudador.
Cadastros bem confeccionados podem ajudar a detectar documentos falsos, credenciais inexistentes, vínculos empregatícios nulos ou mesmo forjados. Num sistema que não possibilite isso e facilite a duplicidade de cadastros sob uma mesma chave primária, bem, digamos que poucos foram os problemas até o sistema todo ser trocado e atualizado...
Um grave problema, que gerou grande consternação, foi do sistema de cartões, que, possibilitava ao funcionário na instituição definir o nome que estaria no plástico, de acordo com a conveniência ou escolha do cliente para abreviar ou reduzir a quantidade de nomes para o limitado espaço existente. E, sim, isso acarretou problemas, que vão desde erros leves na escrita, até erros crassos na escrita. Uma cliente de família albaniana, por exemplo, chamada ‘Maria Budja’ que constatou, quando seu cartão chegou que no lugar do ‘b’ havia um ‘p’ e o ‘dj’ fora substituído por um ‘t’. Aí sim ela ficou realmente puta. Pedindo uma retificação, recebeu um segundo cartão idêntico, e foi no terceiro que a ação judicial para ela foi ganha, quando surgiu um sinônimo, com mais letras, e que a deixou realmente transtornada.
E foi quando Dennis Moore, um dos maiores nomes no setor de cartões de crédito, com longa trajetória por diversas instituições e empresas do ramo, foi chamado para substituir, atualizar e projetar soluções para a problemática situação do produto junto ao Cosette, e, entre outras coisas, conseguir com que o produto realmente se torne funcional para a empresa. Ainda mais quando um dos principais responsáveis pelo sucesso retumbante e lucros excepcionais de bancos, entre outras coisas, é essa pequena coisinha de plástico com números em alto relevo, que deveria ser o equivalente a um contrato com o demônio para muitas pessoas... Apesar de que a alma é a única coisa que não poderão usar para quitar os pagamentos. A verdade é que os cartões não são um problema, se, utilizados com cautela ou quando as pessoas a utilizá-los são cientes, conscientes e aptas para o uso de movimentação dos mesmos (e mesmo assim podem haver problemas). Caso uma das opções citada falte, resultaremos em algumas das taxas mais absurdas e abusivas passíveis de serem cobradas legalmente no mundo moderno, juros que variam de dez a vinte e cinco por cento ao mês (o que equivale a cento e vinte ou TREZENTOS POR CENTO ao ano [!] e que significa, entre outras coisas, que, caso a pessoa efetue o pagamento do mínimo durante um ano, além de não ter diminuído em nada sua dívida, ainda estará devendo MAIS que quando começou a pagar, no segundo caso, inclusive, três vezes mais que o valor inicial...). Sendo responsável pelo departamento, era bastante comum ver Dennis andando de um lado para o outro, com reuniões e mais reuniões, agendando parcerias e ajustando programas de recompensas... Dennis Moore aqui, Dennis Moore ali, Dennis Moore, Dennis Moore, etc, etc.
Com tantas reuniões, com tantos projetos, não tardou para que os produtos do Cosette voltassem a ser competitivos, extremamente lucrativos e, finalmente deixassem de causar problemas e litígios.
Havia só uma questão: Com a venda do banco, os processos e sistemas migrados traziam uma dezena de variações que não eram compatíveis com o sistema atual, mas este é apenas um das dezenas (ou centenas) de problemas gerados pela transição, e ainda não é momento de falar sobre isso. É importante sim ressaltar que o produto é um dos focos de interesse do Swann’s na aquisição. Havia algum tempo que o banco negociava com Moore, sem sucesso. Com a compra do Cosette, finalmente eles conseguiam.
***
De todas as histórias que assombram e poderiam perturbar a mente de Milton, ainda havia uma que lhe dava pesadelos freqüentes, e, de todas as que viu, vivenciou ou ouviu, fazia com que se perguntasse vez após vez, se valia realmente a pena... Se havia algum sentido em tudo aquilo.
Não muito tempo atrás, quando Fausto o chamou para trabalhar com a equipe de treinamento e condicionamento de equipe e pessoal, Milton começou a trilhar esse caminho visitando diversas das agências para uma conversa franca e honesta sobre as necessidades e exigências de aperfeiçoamento de pessoal, para mensurar as falhas existentes, o quanto seria necessário para compensá-las, e, quais seriam as melhores alternativas e opções para suprir cada um dos cenários. Com toda a certeza, nem de longe um trabalho fácil, mas, como ele mesmo definiu para justificar a necessidade do mesmo “As necessidades pontuais precisam ser avaliadas e supridas para aumentar a qualidade de atendimento e a receita proporcionada por estas agências, de forma que o crescimento global seja conquistado a partir de cada e todo o retorno local”. Uma demagogia apurada e genérica como toda boa demagogia.
O último trabalho desta campanha foi realizado em uma cidade pequena, de não mais que dez mil habitantes, e com apenas três bancos lotados em toda a cidade. E, nessa cidade, o Cosette estava de mal a pior. Além dos prejuízos que amargavam, que já eram o maior do país no acumulado do ano, e, nos prospectos de anos anteriores, a perspectiva não ficava nem um pouco mais animadora, aquela era a única agência em um enorme raio de cidades interioranas pequenas como aquela. E uma área, que mesmo com apenas cidades pequenas, ainda era bastante rica e influente. Dois dias de visita, um para apresentação, comentários iniciais, conversa fiada com os responsáveis e algumas entrevistas com clientes para avaliar a equipe em questão.
Por uma série de motivos, precisou da manhã livre no segundo dia, para acertar uma série de detalhes com seus superiores que cobravam maiores resultados para justificar os gastos feitos com tantas viagens e visitas feitas. Fausto apaziguou um bocado os ânimos dos principais diretores que achavam o trabalho de Milton desnecessário e fútil, quando, mostrando resultados de melhora extremamente evidentes do caso de duas agências visitadas que passaram a receber maior suporte de treinamentos e atenção referente a capacitação do pessoal nas tecnologias e serviços oferecidos. As vendas aumentaram, os erros e prejuízos diminuíram, e, com a possibilidade de fugir da rotina por alguns dias (algo que boa parte dos funcionários relatou como grande motivação para realizar cursos), o nível de satisfação dos empregados aumentou, assim como o de seu estresse diminuiu.
Já era mais de duas da tarde quando chegou na agência, e, achou estranho já há distância, ao estacionar, que havia uma aglomeração próxima da entrada da instituição, e somente isso. O resto da cidade parecia deserta, diretamente de um filme de caubóis.
Logo que viu o primeiro funcionário, pediu que lhe contasse o que havia ocorrido. E eis o que aconteceu: Ao voltar do almoço, a gerente de contas foi abordada por um sujeito bem trajado e bastante comum na loja de auto-atendimento, pedindo informações ou ajuda. Logo que ela se aproximou e se ofereceu para ajudar, o homem avisou que era um assalto, que ela deveria se comportar, não chamar atenção e facilitar as coisas, e dizendo isso, mostrou a ela que estava armado, e haviam mais dois comparsas com ele, esperando do lado de fora. Ela disse que não poderia fazer muito, particularmente porque teriam de passar pela porta giratória como todo mundo, e, caso esta travasse, somente alguém do lado de dentro poderia abri-la. O bandido então a puxou, aplicando nela uma chave de braço e a empurrando na direção da porta. Do lado de dentro o vigilante já via tudo, e pediu para que a funcionária mantivesse a calma, e o bandido não fizesse nada de estúpido. O bandido empurrou a gerente até que a porta travou com os dois presos no meio do caminho, e um bate-boca iniciou-se entre o vigilante e o bandido, entre gritos e o choro desesperado da funcionária, todos dentro da agência olhavam em pânico para a situação. Sem autorizar a entrada, e dizendo que não o faria e sequer tinha autorização para fazê-lo, o vigilante insistia em pedir para que o bandido não fizesse nada estúpido. Este por sua feita dizia que a morte da funcionária estaria em sua consciência, e, inclusive que as mãos do vigilante estariam tão manchadas de sangue quanto as dele. Irritado pela turronice do vigilante, o bandido retrocedeu alguns passos, antes da porta giratória e colocou a gerente de joelhos, de costa para ele e de frente para o vidro divisor entre a agência e a loja de atendimento, para que todos ali dentro pudessem ver. Ele disse então, enfaticamente: “Terei acesso ou devo puxar o gatilho?”. O guarda não esboçou reação. Em nada mudou sua resposta de antes. E foi quando veio o disparo, no ombro da mulher, agora caída no chão com uma poça de sangue se formando, gritando de agonia e chorando mais e mais desesperada a cada instante. “O próximo será na cabeça”.
Um dos comparsas veio à porta, dizendo que a polícia estaria ali a qualquer momento. O homem deu um último olhar furioso ao guarda antes de sair, como que pensando o que fazer. Apontou a arma através do vidro, e puxou o gatilho, três vezes. A blindagem segurou o impacto, em todas elas.
A ambulância e a polícia logo chegaram, a gerente foi atendida prontamente, e mais ninguém ficou ferido. Os bandidos escaparam, mas a agência ficou fechada desde o evento, por garantia. Não havia condições para continuar o expediente.
Nos meses que se passaram, a gerente pediu afastamento, todos os demais funcionários pediram transferência, e a agência acabou sendo fechada mesmo, em contrário aos desejos da matriz.
Com um pouco de pesquisa, para entender o comportamento em tal situação, Milton veio a descobrir que aquele tipo de atitude do guarda é procedimento padrão. Jamais autorizar a entrada de um bandido, indiferente de ameaça contra terceiros, funcionários da instituição, ou mesmo contra a própria vida deste segurança (nem todo vidro é reforçado contra balas, para dizer o mínimo). Claro, faz sentido que, uma vítima ou possível vítima é um risco menor que todas as potenciais vítimas dentro da instituição assim como o valor passível de ser furtado e os danos à propriedade... Ou uma situação que envolva a polícia e gere horas e mais horas de negociação por troca de reféns... O que o deixava revoltado... O que o deixa revoltado, nisso tudo é que, como naquele caso, o funcionário tem de assumir um risco para o qual não é preparado, não é ou está conivente (nenhum contrato de trabalho de funcionários de instituição bancária condiciona riscos de assalto, tal como o pagamento de bônus por periculosidade), e, tudo isso pra proteger dinheiro e prédios que para a instituição são segurados e podem ser substituídos sem que qualquer pessoa se importe... Pessoas, não... Nada no mundo substitui uma pessoa. E chega a ser triste que alguém pense em contrário. Pense que algo valha, importe ou possa valer mais que uma vida...
É...

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