O
barzinho está vazio. É cedo, típico horário de happy hour, e um lugar propício
e perfeito para reunir-se com um velho amigo, que não vejo a muito tempo, e,
honestamente fiquei até surpreso em receber uma ligação para marcarmos algo.
Fausto queria me oferecer uma vaga no departamento de cursos e desenvolvimento.
“O salário é um pouco melhor que quem trabalha em agências... Mas o horário é
mais flexível, o serviço bem menos complexo, e, com algum esforço, e a minha
indicação, você passa a chefiar o negócio todo num piscar de olhos”.
Fiquei
pasmo, e, por algum tempo não tive reação.
_
Você sempre me falou sobre como queria mudar a gestão de cursos e a forma como
os funcionários são preparados... Trazer idéias novas. É sua oportunidade.
Conversamos
por um bom tempo. Quase uma hora, na verdade, e, nunca tive uma conversa tão
esclarecedora e estarrecedora ao mesmo tempo.
“Você
precisa entender que, promover uma pessoa incapaz e despreparada para o cargo,
não só é, devido a indicação de pessoas igualmente incapazes e despreparadas
que estão nos cargos acima, como uma estratégia e gestão lógica, até
motivacional (...) Se um sujeito esperto e dedicado vê que, uma completa
aberração que sequer tem talento consegue uma promoção, juntando dois e dois
ele vê que, com seu potencial e talento, tudo que ele precisa é ambição. Talvez
até o que mais precise. Com ambição... Com gana de crescer de mostrar serviço,
em questão de tempo esse funcionário estará com um bom cargo. Quando falta a
ambição, a acomodação toma o lugar, e não importa o talento ou o potencial,
pois o conforto, como uma âncora, segura a pessoa, no ponto em que estiver
(...) Eu sei que muitas vezes o sistema é falho mesmo com as pessoas que tem
ambição. Muitas vezes, aliás. Claro... Existem mais pessoas ambiciosas,
talentosas e capazes que cargos! É preciso certa paciência, ou visão, ou foco.
No meu caso, mesmo... Eu poderia ter ficado no Cosette, ganhando bem que eu
estava, com um trabalho bom que eu tinha, e ficar estagnado pelo resto de minha
carreira. Ou poderia tentar usar minha influência, meu talento de forma
criativa entrando para a política. Arrisquei, abri mão da segurança e fui recompensado
com vasta experiência, com uma nova visão de mundo... E acabei voltando pra cá
com um cargo maior, e, que jamais seria oferecido pra mim se tivesse ficado.
Nem em anos... (...)Se existissem dois sujeitos iguais a mim, com mesma
formação, mesmo histórico, enfim, idênticos em tudo, entrando no banco na mesma
época, da maneira que fosse – na mesma agência, em agências diferentes... Em
planetas diferentes, se você quiser! – nada garante que as mesmas portas
pudessem ou fossem abertas, ou no mesmo tempo ou de qualquer forma. Tudo que
trata de pessoas depende de mais variáveis que uma fórmula poderia definir. E
muitas variáveis são impossíveis de se explicar. A sorte, a maior e mais
prolífica de todas as variáveis, e tudo fica a sua mercê. Se você pára pra
pensar um pouco sobre isso, é assustador, quanto talento e esforço não podem e
não foram desperdiçados porque uma outra pessoa teve um pouco mais de sorte?
(...) É a questão de ‘segurança’, ou ‘estabilidade’, ou o que eu vejo, chamo e
defino como ‘criar raízes’. E isso é uma droga. Quando você acha que está
‘seguro’, é porque as coisas ficaram fáceis. É porque você se acomodou, e, se
você se acomoda, é porque simplesmente não se importa mais. Quer seja porque
você perdeu uma promoção garantida, ou porque parece que nada faz sentido, ou
por um motivo metafísico sobre a explicação dos motivos de estarmos aqui e tudo
mais ou simplesmente porque você nunca se importou, uma vez que não é
exatamente o que você gosta ou quer fazer. ”
Essa
última frase me atormenta ainda em muitas noites. Não que eu ache que ele tenha
dado alguma indireta, uma vez que se fosse essa a questão, ele não teria todo o
trabalho para montar aquele argumento, e de me ligar pessoalmente sendo um
vice-presidente como era. E Fausto não é desse tipo de sujeito. Ele é mais de
falar o que pensa, mesmo que não se conecte muito com o assunto, faça algum
sentido, e, principalmente, caso vá ofender alguém. Ele é um tipo que acha que
‘usar palavras moles para poupar os sentimentos de alguém é covardia, o que
precisa ser dito precisa ser dito, e que o seja da forma que passe a mensagem
mais eficiente’. E, esta noite definiu o rumo de meu último ano e meio.
Aceitei
o cargo, claro, afinal, era a coisa certa a fazer, mas as perguntas... As
dúvidas começaram a surgir... A piscar repentinamente em minha cabeça, como
pipoca estourando ao fogo. “Será que isso é algo que eu realmente quero? Será
que não é hora de, buscar um sonho... Seguir meu instinto e buscar meu próprio
destino?”. Num desses dias, eu me lembrei, enquanto fazia a barba, de um dia,
quando eu tinha quatro anos, e vi, pela primeira vez uma reportagem sobre
astronautas e toda aquela montagem lindíssima e idílica sobre a viagem à lua –
algo a que Virgílio se referia como uma metáfora para o homem fugindo de seus
problemas em casa, ou no caso no planeta, como óbvia referência aos poemas de
viagens e as Road trips como On The Road de Kerouack, com a liberdade
do espaço infindo como contraponto ao espaço confinado da vida moderna, ou algo
menos relevante e igualmente pomposo – e me fez pensar, em como seria legal
fazer aquilo. Claro que todas as crianças quando pequenas querem ser
astronautas... Claro que toda a ficção científica dos ‘Flash Gordons’ e ‘Buck
Rodgers’ fizeram crer que a viagem no espaço seria em questão de décadas algo
tão comum e normal como hoje são as viagens internacionais de avião... Mas não
era isso. O que eu queria, era menos o trabalho de astronauta, desde aquela
idade eu sabia disso. Eu queria pilotar um foguete, ou qualquer coisa que mesmo
sendo incrivelmente pesada ainda fosse capaz de se levantar e desafiar a
gravidade. Isso foi aos meus quatro anos. Com cinco eu descobri que tinha
vertigem, abissal vertigem quando em decorrência de lugares mais altos, e capaz
de me desorientar bastante.
Isso
foi suficiente para matar meus planos de ser um explorador espacial e piloto,
mesmo que, de vez em quando, vendo um balão de ar quente ou uma asa delta,
ou... Eu ainda sinta aquela chama da criança que olhou para astronautas e
pensou em voar. E ainda tenho fé que um dia meus sentidos fiquem uns instantes
a menos ao meu lado, e eu possa concretizar isso. Não é tão difícil hoje em dia
como já o foi. Só falta exatamente um empurrãozinho, não sei. Mas honestamente,
isso não vem muito ao caso.
Com
novas responsabilidades, nova rotina, e com o novo cargo, mais dinheiro, mais
possibilidades e, muitas coisas que eram somente planos passam a se
concretizar. Um apartamento decente, para começo de conversa, é suficiente para
que novas esperanças surjam para Marina e eu. E em breve a rotina nos engolfa
de tal forma que, mesmo morando na mesma casa, só nos vemos durante a noitinha,
quando ou ela voltou de um curso, ou eu, e confesso que não acho ruim. O curso
de culinária que ela anda fazendo vem sendo uma mão na roda para muitas
ocasiões, e, nos poupado algum dinheiro que gastaríamos (e ainda gastamos) em
restaurantes. Os meus, realmente, são menos úteis ao longo prazo, apesar da
ênfase em economia e planejamento servir bastante me ajudar a para ajustar o orçamento,
e rever nossas prioridades.
Em
um ano estamos tão acostumados com a nova rotina, que me pego surpreso certa
feita quando acabei por faltar sem querer de um de meus compromissos,
encontrando com Marina também em casa.
_
Não tem nenhum compromisso hoje? – ela me pergunta docemente, com um olhar que
derreteria as calotas de gelo, e um sorriso do qual nenhum homem é realmente
merecedor.
Realmente
confuso com a situação, quase que perdido no tempo, tentei me situar e entender
onde eu deveria estar, mas, vi que evidentemente não valeria a pena. O que eu
preciso, o que realmente preciso é me recompor, e, olhando para Marina, vejo
que não tenho melhor lugar para fazê-lo.
_
Acho que prefiro passar um tempinho com você, se não se importar... O que quer
que eu tivesse que fazer, já está tarde mesmo... – fui me aproximando até
beijá-la de mansinho, e segurá-la em meus braços. Fazia tempo que não nos
dávamos um tempo – Acho que existem coisas mais importantes e interessantes
para fazermos, de qualquer forma.
E
realmente, uma noite inesquecível. Uma noite que por várias e várias vezes
depois tentamos repetir, e nos esforçamos para conseguir ajustar nossas agendas
para que fosse possível. Não foi.
Quer
dizer, em nossas agendas sempre houve tempo em sábados e domingos para nós, mas
ainda era pouco, e rotineiro. Aquele esquecimento involuntário foi algo
espontâneo e fez tão bem para nós. O que me mostrou que, acima de tudo o que
precisávamos era de um pouco mais de tempo um com o outro.
Até
ela me anunciar que estava grávida, quer dizer, porque aí foi um grande
‘dane-se’ pros cursos, e com exceção do futebol das quartas-feiras – que é bom
pro condicionamento físico e pra saúde – porque o que importava era estar ali.
Tudo o que eu precisava e queria estava ali. E, é verdade, e até um tanto
difícil de admitir, um tanto que uma tentativa minha de me adaptar à situação
que eu passaria a vivenciar, afinal, com a criança novinha em casa, tanto eu
quanto Marina precisaríamos estar mais tempo à disposição um do outro, e, para não
enlouquecermos, precisaríamos nos apoiar bastante nos cuidados da pequenina.
Sei
que é até um tanto tolo de minha parte achar que, deixar de fazer cursos e
passar mais tempo em casa fosse algo como uma preparação para a paternidade,
como que se eu estivesse adquirindo maior responsabilidade por ficar mais tempo
em casa como um ‘marido responsável e exemplar que cuida de sua família depois
de passar o dia todo trabalhando para prover o sustento da mesma’ e toda coisa
cultural e que continuava a impregnar a todos nós sobre a estrutura familiar, e
como uma família deveria e era correto que fosse para funcionar. Tudo bem...
Era tolo, mas ninguém realmente estava perdendo com nossas longas noites de
conversas tolas sobre assuntos frívolos, sobre os possíveis nomes para o bebê,
sobre o que faríamos e como faríamos com casa, despesas e tudo mais, e somente
para que pudéssemos nos ver um pouco mais, olhos nos olhos e conversas francas
sobre nós mesmos e nosso futuro. Todos aqueles planos e projetos lindos de um futuro
perfeito, com uma casa em vista e não mais um apartamento, para que pudéssemos
ter um quarto extra (caso este não fosse o único rebento que nos fosse
proporcionado), para poder criar uma pequena mascote que, desde que passamos a
morar juntos, foi algo que quisemos, e, bem, toda a idéia de ter algo realmente
nosso, onde poderíamos derrubar as paredes se assim acharmos melhor, e pintar
os quartos com as cores que melhor nos apetecessem. Nossa condição financeira
permitia que estes e alguns outros sonhos pudessem vir a ser em um futuro não
muito distante. Utilizando nossas reservas, com algumas horas extras e, bem,
com pouco tempo de financiamento, em no máximo um ano estaríamos num imóvel
todo nosso. Era uma boa estimativa, e nada exagerada. Algo possível, com toda a
certeza, com todos os sacrifícios previstos, mesmo as despesas com o bebê, com
fraldas e tudo mais.
Claro
que tudo isso era baseado na perspectiva de que as coisas continuassem como
estavam. E a verdade é que elas nunca continuam.
***
Virgílio
teve uma crise devido ao abuso de uma droga ilícita, ao que tudo indica um
remédio para aumentar a concentração ou memória ou algo do tipo – que nem sob
prescrição médica estava sendo vendido devido a alguns perigos acarretados, de
irritabilidade, distúrbios mentais e derrames além de dependência química – e
estava internado, precisando de algum parente para retirá-lo de lá. Ele me
indicou, e por sorte, o funcionário do hospital é cliente do banco de longa
data, e alguém de quem quebrei uma porção de galhos com os anos, e não é que
somos grandes amigos, mas podemos contar um com o outro. Ele evitou alguns dos
protocolos padrões de chamar a polícia e todos os processos que deveriam ser
seguidos. Comunicou que registrou qualquer mau estar, fadiga somente para a
internação.
Nunca
fiz o trajeto ao hospital tão rápido em toda minha vida, e acho que mesmo que o
quisesse, não conseguiria. Assim que cheguei, tive de assinar alguns
documentos, e conversar com meu amigo, esclarecendo os pormenores para evitar transtornos
tanto para Virgílio quanto para ele, e qual a melhor forma de abordar esse
problema.
De
qualquer forma, por garantia pedi uns minutos para conversar com meu amigo
sobre isso, ainda esperando que fosse um mal entendido, mas plenamente ciente
que não seria.
_
Quanto tempo?
_
Não mais que dois meses. Com certeza menos... O tempo está meio estranho de se
definir com tanta correria e...
_
Eu nem sei por onde começar... Você tem idéia da merda que é isso? Quase
morreu, e por sorte do médico de plantão ser amigo nosso você fica livre de uma
acusação criminal séria! E pra que?
Ficamos
em silêncio por um tempo, e, quando voltamos a conversar, acertamos que ele
iria a uma clínica de reabilitação, tratar dessa situação antes que fosse
irreversível... Antes que o vício se infiltrasse demais. Tirei um dia de folga
no dia seguinte para me assegurar pessoalmente disso.
Ele
acertou alguns detalhes com o orientador, e, garantiu sem dificuldade que suas
aulas fossem substituídas nos próximos meses, que estaria cumprindo de sua
‘licença-mestrado’ ou algo similar, a desculpa que utilizou para que não
soubessem o que realmente acontecera para causar seu afastamento. Enquanto ele
fazia isso, eu procurei uma clínica indicada pelo amigo médico da noite
anterior, e, acertei tudo que podia para adiantar, e, em uma questão de horas
lá estávamos. Garanti que ele fosse alojado e que tudo estivesse em seu devido
lugar, e me despedi.
Sai
dali sem olhar para trás.
Esperava
não precisar voltar.
***
Pela
segunda vez em semanas, fui chamado às pressas para um hospital.
Marina
estava experimentando algumas complicações na gravidez, precisaria de um
acompanhamento efetivo, vinte e quatro horas por dia, pelo menos pelos próximos
três ou quatro dias, devido ao fato dela quase ter abortado espontaneamente a
criança, algo que, os médicos disseram ser mais comum nos três primeiros meses,
e, que nesse estágio já avançado do quinto mês, deveria causar mais
consternação.
Eu
não sei o que acontece sobre hospitais, mas eu simplesmente não gosto deles, e
não gosto mesmo. Entre um hospital e um cemitério, eu prefiro o segundo, em
nove a cada dez opções. Não sei... Simplesmente me sinto mal nesses ambientes.
O ar... Não só o ar, ou o cheiro, mas toda a atmosfera do lugar. Há algo que,
sempre que passo pela porta principal, que é inevitável perceber. E é horrível.
Ao menos pra mim.
Nessas
condições, poucas coisas poderiam ser mais torturantes que freqüentar um
ambiente destes todos os dias da semana, para verificar Marina, acompanhar sua
recuperação e ficar ao seu lado enquanto dorme. E eu simplesmente não
consigo... Os dias são pesados, passam devagar. Improdutivos, enquanto eu fico
tentando me concentrar em meu serviço... Não dá. É horrível... Pela primeira
vez nos últimos quatro dias, fui para casa, descansar um pouco à noite para que
meu dia pudesse render um pouco... Mas é ainda pior.
No
quarto, em suas roupas... Nas suas coisas... Seu cheiro... E tudo... Tudo me
lembra ainda mais dela, e mais do que isso, do quanto preciso... Sinto sua
falta.
Merda.
Acabo
sentado no sofá da sala, conseguindo cochilar minimamente ao som da televisão,
que me distrai de minha realidade, com um programa antigo sobre coisas absurdas
acontecendo de situações comuns, inteiramente em branco e preto, e com um
trilha sonora bastante chamativa e conhecida, e isso segue aos meus sonhos, com
minha vida sendo analisada pelas câmeras deste programa e a porta no vácuo do
espaço se abrindo para mim. Acordo todo quebrado. Noite ruim...
Mais
uma...
E
um dia ainda pior. Só consigo fazer alguma coisa depois da quinta xícara de
café, e nem é uma daquelas xícaras pequenas... Acho que este é um bom momento
para pedir férias ou um afastamento. Não vou conseguir continuar assim por
muito tempo...
Não
vou durar muito desse jeito. Este é um momento horrível.
Confrontar
uma dura realidade e o fim (apesar de eu já ter ouvido que, alguns destes só
estão em um sofrendo um pequeno desvio) de planos, projetos e sonhos ao mesmo
tempo não é algo fácil mesmo para pessoas bem estruturadas e fortes. Eu nunca
fui um grande exemplo em nenhuma das duas alternativas.
Preciso
de ajuda...
Neste
exato momento, isso é tudo o que preciso... Ajuda... E eu não faço a mínima
idéia de como ou onde começar a procurar.
...
Merda...
Porque
as coisas precisam ser assim?
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