O cenário é de um pequeno boteco,
escondido nas vielas de uma cidade que cresceu demais, e, muitas vezes se
esquece disso.
As pessoas vivem suas vidinhas
miseráveis, lutam e labutam como podem para viver um dia a mais. Já estive ali,
conheço bem.
As pessoas se reúnem, conversam sobre
nada de importante, jogam cartas, bebem... É o dia-a-dia. É a forma de esquecer
ou não se importar com a forma que o governo curra a todos nós (sem vaselina ou
a delicadeza de pedir antes)... Enquanto outros podem arcar com massagens,
terapias holísticas, jogos de golfe ou orgias regadas a champanhe e caviar.
Timóteo Prado dos Santos é um desses
homens.
Desempregado há dois anos, cuida de sua
família do subúrbio: Esposa (enfermeira e recepcionista de um hospital,
trabalha todos os dias em rodízios de escala de horário que a deveriam deixar
pelo menos dois dias de folga, mas que ela abre mão para ter um extra), filho (entre
dezesseis e dezessete, não completou o ginásio, se meteu com uma gangue, e hoje
é viciado, também está desempregado e tem uma filha recém nascida, pra qual,
caso trabalhasse teria de pagar pensão; como não o faz, oferece apoio a menina,
cuidando dela enquanto a mãe trabalha) e filha (quinze, cursando o colégio,
desiludida com a vida, fuma de dois a cinco maços de cigarro por dia, tem uma
dívida com os amigos do irmão – que contraiu para comprar alguns livros e
cadernos de estudo, e não é nada alta, mas é algo que segura tanto ela quanto o
irmão ao grupelho). Casa pequena, dois quartos (os filhos dividem espaço), um
banheiro, cozinha e sala dividindo cem metros quadrados de alvenaria mal
projetados e sem qualquer estrutura de segurança ou noção de arquitetura e
projeto. Feita por um pedreiro há mais de quarenta anos, amigo do pai de
Timóteo.
Ele contraiu uma dívida com meu
empregador, no jogo. Nada muito alto... Mas o suficiente para que ele
resolvesse contratar alguém, e, dessa forma passar um exemplo para que demais
pessoas que resolvessem ficar devendo pra ele saibam com quem estão lidando –
diga-se de passagem meu preço é mais alto que a dívida.
Timóteo está abatido, sentado diante do
balcão, encarando uma pequena dose, a coisa mais barata que alguém pode beber
sem contar água direto da torneira, e ele saboreia poupando cada micro centavo
da bebida. Bebe vagarosamente...
_ Boa noite – digo, sem muita cerimônia
ao me aproximar.
_ Boa noite. O senhor não deve ser
daqui, não? – diz ele, me olhando e reparando nos sapatos e jeans de grife, a
camisa de linho e, bem, o relógio que ostenta mesmo em ambientes mais
elitistas. Foi presente de meu pai, presente de formatura e nunca fiquei sem
usá-lo, e minha presença sempre fez com que não precisasse temer que acabasse
roubado. Na verdade, até existe uma história interessante sobre uma tentativa
de roubo, adoro contá-la para bandidinhos que acham que não sabem com quem
estão lidando. Não vem ao caso agora.
_ Acho que isso diz um pouco inclusive
porque estou aqui, não?
Ele fica em silêncio contemplativo,
sabendo que, bem, minha chegada equivale a sua partida.
_ Não se preocupe, beba um pouco, vamos
conversar, e isso vai facilitar essa transição pra você. Quer beber alguma
coisa melhor, por minha conta? Inclusive, se quiser, podemos ir pra algum lugar
melhor que essa... Bem, pocilga seria até um elogio, não?
Ele me encara com uma expressão de
desconfiança, tentando digerir o que eu disse... Normalmente é o que acontece
quando lido com pessoas mais simples, já levemente alcoolizadas. Elas imaginam
que gente como eu simplesmente chega, dá um tiro e vai embora... Bem, a maioria
faz.
Mas isso é coisa de ralé. O trabalho
deve ser bem-feito, pra que não haja ramificações perigosas, e meu empregador
sabe disso. Eliminar Timóteo pode resultar em ações criminosas da gangue do
filho, ou mesmo em retaliação por parte do filho... Um luxo que, um empregador
de apostas ilegais não pode se dar. Chama muita atenção.
_ Você está falando sério? – enfim ele
diz.
Rio um pouco até que lhe respondo: “Claro homem! Só se morre uma vez, não é
mesmo? Façamos o melhor disso então!”.
Ele coça a cabeça, pensa, olha pra mim
com ainda mais desconfiança, e parece se perguntar o que diabos está
acontecendo. Bem, ele não me pergunta isso diretamente, e quando volta a falar,
parece satisfeito com a resposta de seus pensamentos.
_ Eu não quero sair daqui não... É um
lugar confortável... O dono é meu amigo, nunca se importou que eu devesse pra
ele, por tão pouco que fosse, por tão alto que fosse. Sempre me serviu. Esse
tipo de credibilidade não se encontra por aí, não. E um pé-rapado como eu, bem,
não seria aceito em qualquer lugar, não é verdade?
_ Imagino que sim. Bem, se não vamos
sair, o que o senhor deseja, afinal?
_ Como assim, homem?
_ Deixe-me ver como colocar isso da
forma mais direta, sem insultar sua inteligência... Eu fui contratado para
matá-lo, mas não sou o tipo de homem que simplesmente distribui balas e golpes
como naqueles filmes caros de Hollywood. Meus contratos têm motivos e cláusulas
específicas que os deixam um bocado mais caros que gente que simplesmente puxa
um gatilho. Não que eu não possa fazer isso... Eu sou bom com armas também, mas
não gosto muito. Sou mais um homem de palavras. Gosto de deixar as coisas
resolvidas.
Papai sempre disse que eu seria um bom
gerente, administrador, engenheiro até... Mas sabe como é? A papelada nunca me
empolgou muito, e fazia falta a emoção, e... Bem, vejo que estou divagando.
O negócio é o seguinte: Se eu
simplesmente eliminar o senhor, nada se resolve. Meu empregador continua com a
dívida, a sua família perde um alicerce. Fica desolada. Isso pode desencadear
uma grande confusão... Toda uma desgraça por uma dívida de jogo, que, sejamos
francos, nem é tão alta.
Então eu vim sugerir um plano pro
senhor, simples e direto, e espero que não me julgue amador o suficiente pra
deixá-lo fugir se não seguir minhas instruções.
O homem aceita um copo de whisky, e ele
escolhe bem. Mesmo eu que, bem, modéstia a parte me considerava um connoisseur, não me recordo de um
drinque tão agradável.
No segundo copo peço pro garçom/dono da
espelunca deixar a garrafa, e, caso tenha outra igual, pra trazer pra mim. Pago
em dinheiro e ele me olha com uma cara desconfiada, mas sabe que aquelas
garrafas ali dificilmente seriam bebidas mesmo... E a gorjeta era considerável
para que não faça qualquer pergunta.
Continuo minhas explicações ao homem, e
ao final, apertamos as mãos, ele sorri.
Ele vai embora, contente, como nunca em
tempos.
Quando chega em casa, sua esposa está
dormindo, e a filha mais nova também. Ele sorri, beija a testa das duas, e,
aguarda calmamente a chegada do filho no sofá da sala. Adormece, é verdade, e
só o vê pela manhã, dormindo em sua cama, sem nem imaginar que hora chegou.
Às onze horas, ele se prepara, toma um
banho, escova os dentes e prepara um café forte para combater a ressaca, como
em anos não encontrava. Desde que tivera condições mínimas, enquanto
trabalhava, não bebia whisky. E é mais ou menos desde essa época que não sorri.
Oras, e que motivos tinha? Desempregado,
falido, com uma neta de um filho que não tinha nem barba ainda, e uma vida sem
perspectivas ou motivação... Coisas que lhe faltavam. Logo encontra alguma
perspectiva na boca do copo, e algum tempo mais tarde, encontra motivação nas
mesas de jogo. Seu incentivo para acordar pelas manhãs: uma partidinha de
biriba valendo algum dinheiro, ou ao menos que o(s) perdedor(es) pagasse(m) a
conta.
De um joguinho de biriba, as apostas
foram aumentando, e, em pouquíssimo tempo ele já tinha uma dívida de jogo, e é
onde entra meu agenciador. Regras dele: Se em seis meses a dívida não for
sanada, os bens seriam pegos, se em um ano continuasse a situação, um dos
filhos assassinado, se ainda continuasse, bem, seria a vez dele.
Como ele quer passar uma nova imagem, e
Timóteo não é o homem de grandes posses (todos os bens da casa sequer
arranhariam o pagamento da dívida), e ameaçar a família volta no caso do
problema com gangues, ele acabou escapando da navalha por algum tempo e a
dívida sendo arrolada.
Enfim, não foi uma boa idéia ficar devendo...
Essa é a lição que ele quer que todos aprendam. Poderia ser menos dramático, se
alguém me perguntasse, mas aí eu estaria sem serviço. E acreditar que esses
boçais sejam capazes de formular um pensamento é extrapolação demais. Ele foi
até bonzinho demais me contratando... Outros já teriam feito uma chacina.
Como combinado, eu vejo Timóteo deixando
o prédio, uma da tarde. Quando ele me vê, está chorando. Mas não de medo,
tristeza ou remorso... Há um fundo de gratidão, confirmado por suas palavras.
_ Obrigado... Obrigado... Eu... Eu nem
sei como... Como poderia agradecê-lo... O senhor...
_ Ei, não vamos ficar todos sentimentais
aqui, não é verdade? Ainda temos um serviço pra terminar.
Ele me entrega uma cópia do documento
enquanto nos afastamos do prédio, eu leio os detalhes, confiro as comprovações
e acertos, e guardo em minha pasta. Ajeito os óculos de sol, vejo o relógio, e,
noto o caminhão, vindo em considerável velocidade.
_ Eu percebi um coisa... No fim das
coisas nem sei o nome do senhor... Nem sei a quem agradecer por tudo isso...
_ Eu não disse meu nome. Sou apenas um
peregrino, sabe como é?
Do outro lado da rua, com o sinal ainda
aberto, um caminhão segue a toda, vindo em nossa direção. Eu empurro Timóteo na
frente do veículo, fazendo parecer que ele tivesse tropeçado, e, teatralmente
simulo grande preocupação com o pobre homem. Acredito que merecia uma indicação
ao Tony por isso!
Não tarda para uma multidão se juntar ao
redor do homem. Ele não está mais consciente. O caminhão pára alguns metros
adiante, com seu motorista assustado, notadamente abalado vindo em direção da
aglomeração, ofertando algum auxílio, algum conforto a Timóteo, querendo
levá-lo ao hospital... Logo percebendo que já é tarde demais.
Com a multidão crescendo, chamando cada
vez mais atenção, alguns dos funcionários do prédio que Timóteo acabara de
deixar logo saíram também pra ver. E logo alguém notou que o senhor falecido
ali havia a pouco saído do estabelecimento.
O funcionário que o atendeu, chocado,
mal podia notar a ironia, e talvez seu cérebro não estivesse com condições de
avaliar ainda. Pegou seu celular, ligou para os pais, a esposa... Não dá para
dizer com certeza, somente que estava abalado por ser o último homem (além de
seu assassino e do motorista, é verdade) a ter falado com Timóteo... Imagino
que para pessoas que não são de minha área, deparar com a morte traz reflexão
sobre a própria mortalidade.
Começa um suave chuvisqueiro, e
desapareço completamente da cena quando a polícia chega, e o primeiro carro
policial a chegar ao local leva cinco ou sete minutos, e o oficial logo nota um
pequeno pedaço de papel no bolso do paletó do homem... Uma apólice de seguro de
vida, feita e paga minutos antes. Duzentos mil.
Aproveito o tumulto e deixo o local, antes
que alguém possa me associar com o evento.
Em poucos minutos estou na casa de
Timóteo deixando em um envelope os documentos do seguro, que, obviamente
precisariam para reaver a apólice. Imagino que a família teria alguma tristeza
e choque, e inclusive a consternação perante a ironia.
Bem... Já fiz mais do que poderia,
inclusive porque ele usou meu dinheiro pra pagar o seguro...
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