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6 de setembro de 2025

{Editorial} A incrível dificuldade de analisar o mundo de maneira honesta


Mística foi apresentada em 1978, criada por Chris Claremont na série da Ms Marvel, e, só foi ganhar notoriedade alguns anos mais tarde quando a vilã passou a aparecer de maneira mais recorrente na série dos X-men (também de Chris Claremont), inclusive envolvendo a nova personagem Vampira que é "como uma filha" dela e da outra vilã mutante Sina durante os anos 1980.

E eu sei que sutileza e nuance não são exatamente aspectos que leitores de quadrinhos médios conseguem perceber, mas para os anos 1970-1980, da forma que a personagem é conduzida, é extremamente claro que a personagem é gay e em um relacionamento com a vilã Sina. Não é uma sugestão, não é regra 34... Elas são um casal gay, e, Mística é uma mulher que vai fazer de tudo para sobreviver (ou se "adaptar", entendeu?) e Claremont retrata isso de maneira brilhante com a personagem se unindo aos racistas do governo para caçar mutantes ou toda uma série de outras narrativas que denotam que o objetivo dela sempre é de sobreviver um dia a mais, não importa quem ela tenha que manipular, enganar e mesmo seduzir para conseguir.

Só que estamos falando dos anos 1970-1980 quando ainda vigorava desde 1954 um negocinho chamado 'Comic Code' (ou em tradução livre Código dos Quadrinhos) que junto com outras estruturas de censura estadunidense (sabe, Terra da Liberdade) vedavam que histórias pudessem trazer situações como policiais, juizes ou outras autoridades retratados como, sabe, corruptos ou incompetentes que são desrespeitados ou retratar eu destaco 'relações sexuais ilicitas' e 'perversão sexual'. Não só isso é claro (no link anterior tem mais alguns dos aspectos e ele foi atualizado na década de 1970 e só na década de 1980, depois das histórias aqui mencionadas, que as editoras começaram com passos de formiga a se distanciar disso tudo), mas esse é o escopo da coisa, e, enquanto para alguns aspectos de horror e terror foi mais fácil de mover mundos e fundos para incluir em quadrinhos, outros, bem, demorou bem mais.

No caso da Mística ainda tem um grande revés que é a Era Image em que criadores incrivelmente ruins como Fabian Nicieza, Larry Hama, Scott Loebdell fizeram de tudo para sexualizar a personagem e partir bem mais para o ângulo da sedutora manipuladora. Casaram ela com o vilão Dentes-de-Sabre, fizeram arcos ridículos dela viajando pelo tempo e espaço correndo (e seduzindo) do Wolverine e toda sorte de bobagem que foi minando aos poucos o material planejado e executado com brilhantia pelo Claremont, e, nem é o único caso - temos o trabalho espetacular com a redenção do Magneto (comandando os Novos Mutantes, se juntando aos X-men e sendo julgado) por quase uma década inteira para o Jim Lee cagar em duas edições com todo esse trabalho.

Mas claro, o caso do Magneto é bem diferente e, bem mais bizarro, pois está ligado ao fato que ele é meio que de esquerda em linhas gerais no universo Marvel (ao ponto que é a figura que estampa camiseta de adolescentes mutantes revolucionários tal qual um Che Guevara mutante), e, sabe, ele (judeu e "de esquerda") trabalha com o Caveira Vermelha (algo que nem os escritores da Marvel da época acharam legal).

E, isso tudo que eu estou falando aqui é só da Marvel, tá? Eu nem entrei em uma discussão sobre o Batman (mestre de todas as artes marciais) tomando porrada de moleque de rua. Só que, e eu repito, porque eu estou falando de tudo isso?

Bem, em grande parte é porque uma reclamação comum e lugar comum que ouvimos sobre como os quadrinhos atuais não são mais tão bons quanto antigamente, é algo bastante vago que tende a ignorar tanto que os leitores de antigamente não captaram várias nuances e detalhes bem óbvios nas estruturas narrativas - e agora ficam bravos quando esses elementos são mais escancarados - ou, e aí é onde eu entro na segunda e mais bizarra parte desse argumento.

Veja bem, enquanto dois personagens homoafetivos se beijando são motivo para jogadores de volei mais decadentes que Mumm-Ra e prefeitos corruptos se pronunciarem, o Comic Code sempre foi bastante liberal em relação à violência no geral, mas, principalmente na violência contra mulheres.

Tem o caso emblemático de Vingadores 200 (aprovado pelo Comic Code diga-se de passagem) em que Carol Danvers é sequestrada, manipulada e estuprada por um vilão viajante do tempo ao mesmo tempo que o restante da equipe finge que tá tudo certo e a abandona! E vale lembrar que esse não é o único caso (sim, temos as mulheres na geladeira), somado a mais uma série de personagens femininas mortas, assassinadas ou colocadas à beira da loucura para um personagem masculino escapar de um casamento (afinal quadrinhos não poderiam trazer divórcio), e isso nos coloca com o Homem-Aranha nos anos 2000.

Por algum motivo que me escapa a compreensão, a equipe de editores da Marvel queria que o personagem ficasse solteiro novamente, e, dá-lhe o sequestro e completo desaparecimento da filha May ao final da looooooooooonga saga do Clone, e, sem muita tentativa de buscar a menina, a editora já tascou de sumir com a Mary Jane num acidente aéreo numa história bem sem pé nem cabeça.

Enviuvado o personagem vagou por um tempo buscando respostas e as histórias são terríveis, esquecíveis e logo tudo voltou ao que era antes com Peter casado e todo mundo fingindo que isso fazia sentido até que ele faz um pacto com o diabo abrindo mão de seu casamento para salvar a tia moribunda... E enquanto a Marvel parou de utilizar o Comic Code em 2001 (e pelo menos boa parte dessas histórias aqui já são posteriores a isso).

Só que ainda assim é curioso que a galera que se manifesta contra um beijo gay entre personagens consensuais numa história em quadrinhos ou porque um personagem feminina lidera um grupo, curiosamente não se manifesta sobre o Homem Aranha fazendo um pacto com o diabo para salvar o casamento ou da Ms Marvel sequestrada e estuprada enquanto o restante do grupo fazia chá de bebê!

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