Numa das primeiras aventuras do Superman publicadas em 1938, o herói que ainda não voava enfrentava problemas bem menores que invasores alienígenas, déspotas místicos de outras dimensões ou mesmo meteoros gigantescos que pretendiam destruir o planeta. Na verdade em suas primeiras aventuras o último sobrevivente de Krypton enfrentava donos de cortiços com planos nefastos para expulsar seus inquilinos.
E por essa (e algumas outras histórias nesse tom e linhas - como o combate à Ku Klux Klan na década de 1950 ou o fato que uma mulher como Lois Lane fosse independente e trabalhadora desde a década de 1930) Superman foi taxado como comunista e anti-americano pelo coach (e sex symbol da psiquiatria) dos anos 1950 Fredric Wertham.
Talvez pareça absurdo pra quem não se lembra bem dos contextos históricos - da ascensão de Mcarthy e sua política perseguindo todo e qualquer que coincidiu com as alegações absurdas e sem qualquer embasamento científico (mas que funcionavam com o alinhamento político do momento) de como as histórias em quadrinhos vinham destruindo a pureza das mentes inocentes dos norte-americanos.
Provavelmente a história mais famosa das alegações de Wertham seja do homossexualismo de Batman (o que por si só é uma conclusão obtida pelo fato que um homem solteiro e rico adota uma criança, e, fique à vontade para buscar as histórias do cruzado encapuzado de sua criação até o início da década de 1950 pra conferir por conta própria), mas outras alegações como a da violência em quadrinhos de Horror levaram à falência várias empresas que produziam esses quadrinhos e reverberam quase como um relógio de década em década quando algum tipo de fenômeno surge na mídia (e potencialmente está inspirando a violência - como os filmes de terror na década de 1980, os jogos de videogame na década de 1990 e de novo nos anos 2000, e mais recentemente inclusive com os memes e desafios de redes sociais).
Com o Superman, o impacto é maior. A acusação de ser 'comunista' (mesmo contribuindo efetivamente para o esforço norte-americano na segunda guerra mundial, por exemplo) não apenas é mais genérica como é algo preocupante num período em que há uma enorme "caça aos comunistas" do governo do Estados Unidos.
Ainda mais quando, bem... O que fazia do Superman comunista e antiamericano e como torná-lo "tão americano quanto torta de maçã" (que foi criada na Inglaterra, diga-se de passagem)?
Com o tempo a partir da década de 1950 a DC foi reestruturando o personagem e tornando ele mais um bombeiro de capa chamativa (resgatando gatos de árvores, impedindo vulcões em erupção e quase semanalmente a iminente destruição do planeta por conta de gigantes meteoros desgovernados) e menos um herói com ideais de justiça (social ou não).
Só que isso não é o Superman, e essa visão do bombeiro de capa acaba falhando na essência do personagem além do que faz dele diferente dos demais, e é justamente por isso que décadas e décadas de quadrinhos do personagem são, bem, dispensáveis pra caramba.
Some a isso a um longo processo devido a direitos autorais pelo espólio das famílias dos criadores do personagem (que, vamos ser bem honestos, foram ludibriados com um contrato horroroso e de valor baixíssimo pelo valor da propriedade intelectual que eles venderam - e que não incluía concessões a outras mídias), e os anos 1980 em diante impõe condições para reinventar o Superman e seu significado.
E eis que ele morre (e surgem quatro arremedos de Superman para substituí-lo) volta com um uniforme negro, mullets e uma arma prateada (sim), se torna elétrico e se divide em dois - elétrico vermelho e elétrico azul, volta ao normal do uniforme clássico... Depois descobre que suas memórias de Krypton são uma mentira, perde o pai, muda para um uniforme inspirado na versão clássica (com o logo diferente sem o fundo amarelo e sim preto)... e por aí vai, mas nada disso é particularmente interessante ou memorável.
Tudo em busca de relevância e distinção legal suficiente para fins do litígio corrente.
Com isso chegamos bem próximo do presente - após Luthor presidente, Jeph Loeb e quase dez anos em que o Superman foi basicamente um coadjuvante para a editora - e em 2011 a DC faz um novo mega-evento para mudar tudo reiniciando todos seus títulos com a ideia de reinventar seus principais títulos nas mãos de artistas de renome para inovar e propor novos conceitos a mitologia de cada um deles.
E, curiosamente, é com um reinício em 2016 que a franquia finalmente encontra uma luz num longo túnel de décadas de nada e coisa nenhuma (e alguns especiais interessantes intercalados). Com as histórias de Peter Tomasi e Patrick Gleason, o Homem de Aço deixou de ser repórter para viver em uma fazenda pacata criando seu filho Jonathan e com apenas 45 edições essa já é uma das mais interessantes abordagens para o personagem desde sua criação - inspirando outras séries derivadas como a dos 'super filhos' (com o Robin/Damian Wayne e Jonathan Kent combatendo o crime) e a nova produção Superman e Lois (disponível no HBO Max).
O personagem continua a se reinventar com a fase de Brian Michael Bendis que veio logo na sequência (e, na minha opinião, longe de manter a mesma qualidade), e com a ideia de expandir a franquia e a condição de Clark e Jonathan atuando independente como Supermen. Com um já estabelecido e tarimbado que atuará para conter ameaças multiversais enquanto o outro tem de descobrir seu papel no universo e viver às sombras do maior herói de todos os tempos (algo que já funcionou muito bem pelo menos duas vezes para o Flash com Barry Allen e depois Wally West).
Agora, o que o futuro reserva? Bem, em parte o passado volta a reverberar (com os idiotas moralistas e 'conservadores' preocupados com o quanto histórias em quadrinhos estão moldando as mentes das pobres crianças - quando cada vez menos crianças leem, ainda mais quando são expostas a violência e tudo o que há de pior no mundo 'de graça' na televisão todos os dias), mas como Ray Bradbury disse na década de 1980 (e esse passado também reverbera), o Homem do Amanhã ainda estará no futuro nos esperando com um sorriso nos lábios e a expressão de bom moço, feliz por finalmente nos encontrar lá.
Talvez só demore um pouco mais de tempo para chegarmos todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário