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21 de maio de 2014

O evangelho segundo São Marcos

O fato aconteceu na estância Los Álamos, no sul do município de Junín, nos últimos dias de março de 1928. Seus protagonistas foram um estudante de medicina, Baltasar Espinosa. Podemos defini-lo por ora como um de tantos rapazes portenhos, sem outros traços dignos de nota a não ser essa faculdade oratória que o fizera merecedor de mais de um prêmio no colégio inglês de Ramos Mejía e uma quase ilimitada bondade. Não gostava de discutir; preferia que o interlocutor tivesse razão, e não ele. Embora os acasos do jogo despertassem seu interesse, era um mau jogador, porque não gostava de ganhar. Sua arejada inteligência era preguiçosa; aos trinta e três anos faltava-lhe apenas uma matéria para graduar-se, a que mais o atraía. Seu pai, que era livre-pensador, como todos os senhores de sua época, instruíra-o na doutrina de Herbert Spencer, mas sua mãe, antes de uma viagem a Montevidéu, pediu-lhe que toda noite rezasse o Pai-Nosso e fizesse o sinal da cruz. Ao longo dos anos nunca quebrara aquela promessa. Não carecia de coragem; certa manhã havia trocado, com mais indiferença que raiva, dois ou três socos com um grupo de companheiros que queria, força-lo a participar de uma greve universitária. Era pródigo, por espírito de aquiescência, em opiniões ou hábitos discutíveis; o país tinha menos importância para ele que o risco de que noutras partes acreditassem que usamos penas; venerava a França mas menosprezava os franceses; não fazia caso dos americanos, mas aprovava o fato de haver arranha-céus em Buenos Aires; acreditava que os gaúchos da planície são melhores cavaleiros que os das coxilhas ou colinas. Quando Daniel, seu primo, propôs-lhe veranear em Los Álamos, disse imediatamente que sim, não porque gostasse do campo mas por complacência natural e porque não procurou motivos válidos para dizer que não.
A sede da estância era grande e um pouco abandonada; as dependências do capataz, que se chamava Gutre, ficavam muito perto. Os Gutre eram três; o pai, o filho, que era singularmente tosco, e uma moça de paternidade incerta. Eram altos, fortes, ossudos, com cabelo que puxava para o avermelhado e feições de índio. Quase não falavam. A mulher do capataz morrera havia anos.
Espinosa, no campo, foi aprendendo coisas que não sabia e que não suspeitava. Por exemplo, que não se deve galopear quando se está perto das casas e que ninguém sai para andar a cavalo se não é para cumprir uma tarefa. Com o tempo seria capaz de distinguir os pássaros pelo pio.
Poucos dias depois, Daniel teve de se ausentar numa ida à capital para fechar um negócio de animais. No máximo, a operação lhe tomaria uma semana. Espinosa que já estava um pouco cansado das boas fortunas do primo e do infatigável interesse dele pelas variações da moda masculina, preferiu ficar na estância, com seus livros escolares. O calor apertava e nem sequer a noite trazia alívio. Ao amanhecer, os trovões acordaram-no. O vento sacudia as casuarinas. Espinosa ouviu as primeiras gotas e deu graças a Deus. O ar frio veio de repente. Naquela tarde, o Salado¹ transbordou.
No outro dia, Baltasar Espinosa, olhando da varanda os campos alagados, pensou que a metáfora que equipara o pampa ao mar não era, pelo menos naquela manhã, de todo falsa, embora Hudson tivesse escrito que o mar nos parece maior, porque o vemos da coberta do barco e não do cavalo ou de nossa altura. A chuva não diminuía; os Gutre, ajudados ou incomodados pelo homem da cidade, salvaram boa parte da criação, apesar dos muitos animais afogados. Os caminhos para chegar à estância eram quatro: as águas cobriram todos. No terceiro dia, uma goteira ameaçou a casa do capataz; Espinosa cedeu-lhes um quarto que ficava no fundo, ao lado do galpão das ferramentas. A mudança foi aproximando-os; comiam juntos na grande sala de jantar. O diálogo se tornava difícil; os Gutre, que sabiam tantas coisas em matéria de campo, não sabiam explicá-las. Uma noite, Espinosa perguntou-lhe se o pessoal dali guardava alguma lembrança dos ataques de índios, quando o quartel de comando estava em Junín. Disseram-lhe que sim, mas teriam respondido o mesmo a uma pergunta sobre a execução de Carlos I².
Espinosa lembrou que seu pai costumava dizer que quase todos os casos de longevidade que se dão no campo são casos de má memória ou de uma noção vaga das datas. Os gaúchos costumam ignorar por igual o ano em que nasceram e o nome de quem os gerou.
Em toda a casa não havia outros livros senão uma série da revista La Chacra, um manual de veterinária, um exemplar de luxo do Tabaré, uma Historia del Shortorn en la Argentina, umas quantas narrativas eróticas ou policiais e um romance recente: Don Segundo Sombra. Espinosa, para distrair de algum modo a conversa inevitável depois do jantar, leu um par de capítulos aos Gutre, que eram analfabetos. Infelizmente, o capataz tinha sido tropeiro e as andanças de outro não podiam interessá-lo. Disse que aquele trabalho era leve, que levavam sempre uma besta de carga com tudo que precisavam e que, se não tivesse sido tropeiro, nunca teria chegado até a Laguna de Gómez, o Bragado e os campos dos Núñez, em Chacabuco.
Na cozinha havia um guitarra; os peões, antes dos fatos que narro, sentavam-se em roda; alguém a afinava e nunca chegava a tocar. Isso se chamava uma guitarrada.
Espinosa, que deixara crescer a barba, costumava demorar diante do espelho para olhar seu rosto mudado e sorria ao pensar que em Buenos Aires aborreceria os rapazes com o relato da inundação do Salado. Curiosamente, sentia falta dos lugares aonde nunca ia nem iria: uma esquina da rua Cabrera em que há uma caixa de correio, uns leões de alvenaria num portão da rua Jujuy, a algumas quadras do Once, um armazém com piso de lajotas que ele não sabia bem onde era. Quanto a seus irmãos e a seu pai, já saberiam por Daniel que estava isolado - a palavra, etimologicamente, era justa - pela enchente.
Explorando a casa, sempre cercada pelas águas, deu com uma Bíblia em inglês. Nas páginas finais, os Guthrie - era esse o verdadeiro nome deles - tinham escrito sua história. Eram oriundos de Inverness, chegaram a este continente, sem dúvida como peões, no início do século XIX, e se cruzaram com índios. A crônica se detinha por volta de mil oitocentos e setenta e tantos; já não sabiam escrever. Ao cabo de algumas poucas gerações haviam esquecido o inglês; o castelhano, quando Espinosa os conheceu, dava-lhes trabalho. Careciam de fé, mas em seu sangue perduravam, como rastros obscuros, o duro fanatismo do calvinista e as superstições do pampa. Espinosa falou de seu achado e quase não o escutaram.
Folheou o volume e seus dedos o abriram no começo do Evangelho segundo São Marcos. Para se exercitar na tradução e talvez para ver se entendiam algo, decidiu ler para eles aquele texto após o jantar. Surpreendeu-o que o escutassem com atenção e depois com tácito interesse. Talvez a presença das letras de ouro na capa lhe desse mais autoridades. Trazem isso no sangue, pensou. Também lhe ocorreu que os homens, ao longo do tempo, sempre repetiram duas histórias: a de um barco perdido que procura pelos mares mediterrâneos uma ilha querida, e a de um deus que foi crucificado no Gólgota. Recordou as aulas de elocução em Ramos Mejía e se punha de pé para pregar as parábolas.
Os Gutre despachavam a carne assada e as sardinhas para não atrasar o Evangelho.
Uma ovelhinha que a moça mimava e adornava com uma fitinha se feriu com um arame farpado. Para estancar o sangue, queriam pôr nela uma teia de aranha; Espinosa curou-a com alguns comprimidos. A gratidão que aquela cura despertou não deixou de assombrá-lo.
No início, desconfiara dos Gutre e tinha escondido num de seus livros os duzentos e quarenta pesos que trazia consigo; agora, ausente o dono, ele tomara seu lugar e dava ordens tímidas, que eram imediatamente acatadas. Os Gutre o seguiam pelos cômodos e pelo corredor, como se andassem perdidos. Enquanto lia, notou que retiravam as migalhas que ele deixara sobre a mesa. Uma tarde surpreendeu-os falando dele com respeito e poucas palavras. Concluído o Evangelho segundo São Marcos, quis ler outro dos três que faltavam; o pai pediu-lhe que repetisse o que já havia lido, para entendê-lo bem. Espinosa sentiu que eram como crianças, a quem a repetição agrada mais que a variação ou a novidade. Uma noite sonhou com o Dilúvio, o que não é de estranhar; as marteladas da fabricação da arca acordaram-no e pensou que talvez fossem trovões. Com efeito, a chuva, que amainara, voltou a recrudescer. O frio era intenso. Disseram-lhe que o temporal tinha quebrado o teto do galpão das ferramentas e que iriam lhe mostrar quando as vigas estivessem arrumadas. Já não era um forasteiro e todos os tratavam com atenção e quase o mimavam. Nenhum deles gostava de café, mas havia sempre uma xicrinha para ele, a qual enchiam de açúcar.
O temporal aconteceu numa terça-feira. Na quinta à noite ele foi acordado por uma batidinha suave na porta que, por via das dúvidas, ele sempre fechava com chave. Levantou-se e abriu: era a moça. Não viu no escuro, mas pelos passos notou que estava descalça e depois, na cama, que viera do fundo, nua. Não o abraçou, não disse uma única palavra; estendeu-se junto dele e estava tremendo. Era a primeira vez que conhecia um homem. Quando foi embora, não lhe deu sequer um beijo; Espinosa pensou que nem mesmo sabia como ela se chamava. Premido por um motivo íntimo que não tentou averiguar, jurou que em Buenos Aires não contaria a ninguém aquela história.
O dia seguinte começou como os anteriores, exceto que o pai falou com Espinosa e perguntou-lhe se Cristo se deixou matar para salvar todos os homens. Espinosa, que era livre-pensador mas que se viu obrigado a justificar o que lera para eles, respondeu-lhe:
- Sim, para salvá-los do inferno.
Gutre disse-lhe então:
- Que é o inferno?
- Um lugar sob a terra onde as alas arderão e arderão.
- E também se salvaram os que lhe pregarem os pregos?
- Sim - replicou Espinosa, cuja teologia era incerta.
Tivera medo de que o capataz lhe exigisse explicações do que acontecera na noite anterior com a filha dele. Depois do almoço, pediram-lhe que relesse os últimos capítulos.
Espinosa dormiu uma longa sesta, um leve interrompido por persistentes martelos e vagas premonições. Por volta do entardecer, levantou-se e saiu para o corredor.
- As águas estão baixas. Já falta pouco.
- Já falta pouco - repetiu Gutre, como um eco.
Os três o haviam seguido. De joelhos no piso de pedra pediram-lhe a benção. Depois o amaldiçoaram, cuspiram nele e o empurraram até o fundo. A moça chorava. Espinosa entendeu o que o esperava do outro lado da porta. Quando a abriram, viu o firmamento. Um pássaro piou. pensou: é um pintassilgo. O galpão estava sem teto; Tinham arrancado as vigas para construir a Cruz.


¹ Rio Salado, Salado del Norte, Juramento ou Pasaje, rio de percorre mais de 2000 km na Argentina.
² Não faltam os 'Carlos I' na história, seja Inglaterra, Romênia ou Portugal, mas por lógica, parece que Borges faz alusão ao segundo rei da Espanha, Carlos de Hamburgo.
³ Eu particularmente adoro essa foto do mestre. Que expressão! Que carisma!

(Parte da coleção Borges da Companhia das Letras, o "O informe de Brodie", um dos mais estranhos de todos os livros de Borges na minha humilde opinião... Mas estranheza não necessariamente é uma coisa ruim quando se trata de um bibliotecário cego que resolveu enveredar pela literatura).

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