O
dia seguinte é uma contínua exposição de ridículo e constrangimento enquanto
caminho e passo de uma sala para outra, de um departamento para outro, enquanto
alguém faz um comentário sacana ou uma pergunta estúpida sobre minha noitada,
minha ressaca, e por tal motivo resolvo me esconder em minha sala, passar nela
o restante de meu expediente fazendo algum trabalho burocrático que me obrigue
a ficar quieto e calmo ali. A calmaria não dura muito tempo.
_
Você ficou sabendo daquele funcionário? – pergunta Fausto, se aproximando de
minha sala, com diversos relatórios abarrotadas em uma pasta em uma mão, e um
café esfumaceando na outra.
_
Qual?
_
Um dos últimos a fazer um de seus treinamentos... A papelada toda está aqui
comigo, sobre como ele atendeu uma senhora de idade, e a sua reclamação junto
ao conselho regulatório.
Fausto
já me conhece, e sabe, que quando não expresso qualquer comentário, e paro o
que faço, é por que estou bastante interessado, e por isso ele me provoca. Faz
uma pausa, toma seu café, coloca a pasta na mesa, folheia um pouco, bebe mais
um pouco de café, como que esperando que eu pergunte um ‘E...?’, mas nada faço.
Sua vontade de contar é maior, afinal, foi ele que veio à minha sala.
_
Ela, mancando, questionou, se haveria possibilidade de efetuar um saque na
instituição. Confuso, o guri olhou para o cartão dela, e... Ah, eu mencionei
que ela era cliente de outra instituição? É, ela contou pra ele que era cliente
de outro banco, mas queria fazer um saque, dentro da agência, e, o guri,
olhando o cartão e vendo que não era um conveniado disse que, se ela
conseguisse, seria no eletrônico. Sabe como é, eletrônico tem acesso a sistemas
genéricos que acabam possibilitando, com a cobrança de tarifas e tudo mais que
uma pessoa faça o saque em qualquer lugar.
Ela
saiu, não conseguiu sacar, e voltou, gritando e reclamando já diretamente com o
funcionário, coisas do tom de ‘Que pouca vergonha, você acha que eu sou palhaça
pra me falar que dá pra fazer uma coisa quando não tem como’, entre outras
coisas, enquanto ele mantinha alguma serenidade, e, respirando fundo respondeu:
‘Minha senhora, eu não acho que a senhora seja palhaça, por uma série de
motivos, que vão desde o primeiro fator que nós nessa instituição não
trabalhamos com deduções e suposições. Não tentamos adivinhar a profissão de
nossos clientes, por mais evidente que possa parecer, principalmente porque as
aparências enganam, e, sinceramente, não entendo qual a relevância do fato para
a sua reclamação. Em segundo lugar, a senhora, que está reclamando tanto de dor
na perna, e dificuldade de locomoção, fez questão de entrar numa instituição
que não a sua, e, não fosse o bastante, mesmo com o fracasso na sua tentativa
de fazer o que queria, preferiu andar de
novo em minha direção, sem condição de fazê-lo como a senhora alega, sendo
que, se gastasse a mesma quantidade de passos poderia já estar em seu banco
efetuando o saque a que veio fazer na
instituição errada, e, neste exato momento estaria seguindo rumo a sua
própria casa. Agora, é verdade que vejo uma falta de vergonha e decoro nesse
caso, mas não posso dizer realmente que seja de nossa parte’.
Rimos
por alguns instantes, apesar de não ser algo realmente hilário ou sequer
engraçado. Os custos com um processo desse tipo, por mais estúpido que sejam, e
os custos para realocar o funcionário somente para evitar estresse novamente
com a cliente ou sua família, são suficientes para preencher horas e horas de
recursos e papéis, e, infelizmente, eu sou um dos responsáveis por cuidar
disso, motivo pelo qual Fausto fez questão de me trazer o caso pessoalmente.
Ele sai para sua reunião quinzenal ou algo do tipo, e me deixa com esse abacaxi
no colo para descascar.
E
começo a buscar algum material, sobre minha pesquisa, sobre as palestras e
material oferecido aos funcionários, tentando revisar o que estava fazendo e o
quanto realmente tinha conseguido evoluir de minha idéia inicial de projeto...
Quer dizer, quando comecei com o trabalho de seleção de treinamentos e
programas para os funcionários, vários e vários tipos de coisa me foram
oferecidos, e eu acompanhei de tudo um pouco esses materiais em busca de algo
que enquadrasse em minha visão de projeto. Oficinas motivacionais, programas de
treinamento do exército, palestras de vendas... E uma infinidade de
palestrantes de auto-ajuda.
Faço
uma ressalva aqui, uma vez que, é verdade e não nego que acho o assunto um
campo minado, e bota minado nisso. A quantidade de charlatães aproveitando-se
de falsas pesquisas e dados incompletos para oferecer materiais sem nexo ou
embasamento científico/prático como algo lógico aplicando o termo chavão
“auto-ajuda” é sem sombra de dúvidas a maior de qualquer área de conhecimento
humano. É absurda a quantidade de programas mal orientados e intencionados
oferecidos e se fazendo passar por motivacional ou mesmo voltado para o
desenvolvimento pessoal.
Parte
disso se deve, obviamente, a quantidade abissal de mitos inerentes do
conhecimento e desconhecimento humano sobre a psique, nosso intelecto e, enfim,
a dimensão real de nossa capacidade cerebral, do quanto isso significa e
representa. Um dos mais difundidos e absurdos ‘fatos’, costumeiramente ditos
sobre o cérebro humano, por exemplo, é o de que utilizamos dele apenas dez por
cento, que é uma mentira daquelas que se repetiu e repete a tanto tempo que
acabou virando fato,
um dos famosos ‘números fictícios’, ou como
alguns gostam de utilizar de palavras menos polidas (que não será o caso)
‘números tirados do ânus’. Como o Pé-Grande, ou Nessie e tantas outras
criaturas folclóricas, que, nada mais são que aliterações de crendices com
visões assustadoras ou sem qualquer foco de coisas comuns e muito bem
conhecidas.
Adaptou-se
a história para dizer que, não é que o ser humano use apenas dez por cento de
seu cérebro, e sim que utilize da mente consciente apenas dez por cento, o que,
novamente, é um absurdo, e, talvez, até maior que o primeiro. Que tipo de
aparelho é realmente apto a captar o inconsciente humano? Ou distinguir o
consciente do inconsciente para mensurar uma comparação dos desempenhos de
ambos?
Obviamente
os charlatães não se esforçam em ler ou pesquisar materiais de profissionais
realmente capacitados e treinados, uma vez que isso é caro, chato e
dispendioso, e é mais fácil inventar e trabalhar com fatos de conhecimento
público, ou atribuir realidades relativas como verdades absolutas.
E
dentre esses incautos estão dezenas de funcionários, gerentes e dirigentes de
minha instituição a me perguntar sobre um curso falando sobre o tal segredo do
universo e as leis dessa auto-ajuda picareta.
Só
destaquei algumas frases de um dos livros, e mostrei o quanto isso é inútil e
pode ser perigoso e mal interpretado, comparativamente com outra seita que
prometia coisas semelhantes (e acabou com suicídio coletivo, porque afinal de
contas eu não queria pegar leve, e sim enfatizar meu ponto). Desde então, as perguntas
sobre o assunto raramente chegam até minha sala... Acabam parando bem antes com
uma cópia desse documento que continua circulando e sendo divulgado pela
instituição.
Mudando
de perspectiva, eu cheguei a fatos sobre um pesquisador de verdade, e um real
motivador. Ele começa seu discurso sobre uma história que circula pelo mundo
como sendo verdadeira – apesar de, após essa mensagem circular, o fato se
repetir em algumas reuniões, realmente – sobre um evento bastante típico, comum
e, não obstante chato, da vida cotidiana: A famosa reunião sazonal para ‘ir de
nenhum lugar para lugar nenhum’.
Acho
que todo mundo conhece isso... É aquela situação onde um gerente, ou chefe, ou
sub-chefe, ou... Enfim, alguém com um cargo mais importante, resolve exercer tal
cargo falando um monte de asneiras chavões, repetindo discursos feitos e
dizendo um bando de bobagens para tanto motivar quanto assustar os funcionários
– e, assustando, fazer com que estes não se motivem a seguir seus próprios
caminhos, para, por exemplo, montar uma concorrente que não traria metade dos
defeitos que a empresa atual possui.
Uma
dessas falácias é dita ao final da reunião, quando o diretor geral, como nota
de encerramento acha prudente dizer que “É importante lembrar que ninguém é
insubstituível”, que “existe um mercado inteiro cheio de pessoas dispostas e
empolgadas em obter o seu cargo”, e enfim, que resumindo, todo e qualquer
funcionário deve ficar grato pela empresa ter lhe concedido um emprego e que,
obviamente, ele é tão relevante quanto uma folha de papel... Se uma se perde
centenas de milhares estão em estoque para repor.
E
é quando um funcionário, enquanto todos ainda estavam sentados logo após o
encerramento, pede para fazer uma pergunta. “E quanto ao Beethoven, senhor?”. O
diretor constrangido e confuso, pergunta, com um tom inquisitivo: “E o que tem
o Beethoven?”. O funcionário, uma vez mais “Quem substituiu o Beethoven?”.
Obviamente, sem a existência de um chavão pra isso, o diretor diz alguma
bobagem para desviar o foco e foi isso.
A
pergunta é pertinente, com toda a certeza, pois ela muda toda a postura do
‘fordismo’ e a idéia de linha de produção que limita, diminui e deixa claro que
cada um só é relevante na confecção de seu limitado e mínimo serviço, até que
outrem o faça, melhor ou mais rápido ou com menos matéria-prima. A idéia das
‘organizações-relógio’ que, dependem de pequenas, insignificantes e mínimas
peças que só fazem sentido em um conjunto, e que cada e qualquer uma delas pode
ser trocada e retirada e compensada.
Novamente,
uma série de coisas sem sentido. O elemento humano não pode ser substituído.
JAMAIS.
Quem
substitui o meu pai? Quem pode substituir minha mãe? Meu filho ou filha?
E,
mudando um pouco o foco, voltando para a outra questão, da empresa relógio... Realmente?
Todo e qualquer funcionário pode ser substituído e trocado por outro
equivalente? Claro que em um serviço burocrático e repetitivo, se você treinar
um macaco ou colocar uma máquina, você obtém o mesmo resultado. Mas todo
serviço é burocrático e repetitivo? Quantas idéias revolucionaram a forma como
enxergamos o mundo, e foram simples sacadas, simples alterações do modo e forma
como fazemos as coisas? Quantas delas não surgiram de pesquisa em
universidades, e claro, parcerias com empresas ou somente em departamentos de
desenvolvimento de empresas?
Menosprezar
um funcionário ou pessoa ‘menor’ é um erro típico de pessoas arrogantes, e
existem dezenas senão centenas de exemplos de como isso está errado.
Quantas
bandas ouvem e ouviram um ‘não’? Quantos donos de bares e estabelecimentos
simplesmente não fecharam suas portas para músicos, julgando o som muito
barulhento ou que não combinasse com o perfil do lugar... Em Liverpool no
início dos anos 60, quantos tiveram em suas mãos os Beatles - a marca musical
mais lucrativa, por quase toda mídia em que esteve, ainda nos dias de hoje?
Claro, quantas bandas tentaram chegar ao mesmo patamar? Quantas lutaram e ainda
lutam por isso e quantos sonhos, amizades e famílias desfeitas por uma
tentativa? Por uma chance, que algumas vezes nunca veio?
O
mundo pode ser um lugar bastante cruel às vezes, mostrando uma breve luz que
nunca seremos capazes de alcançar, ou que, para chegar levemente perto
precisaremos sacrificar muito e abrir mão de quase tudo. Ninguém disse que
seria fácil, mas com toda a certeza, em momento algum foi suposto que se
conseguiria sozinho.
Não
existe empresa de uma pessoa só (existem vendedores ambulantes e profissionais
liberais).
Não
existe família de uma pessoa só (existem pessoas que tem mais amigos que
parentes, pessoas órfãs mas não sozinhas e os completamente solitários que
vivem e perambulam pelo mundo).
Tudo,
da mínima partícula da matéria até as mais intrincadas complexas constelações,
galáxias e universos, faz parte e contém outros e outrem.
Um
infindável dominó universal, agindo e reagindo, exigindo nossas ações e
reflexões. Um Beatle um dia foi um mínimo óvulo e espermatozóide concomitantes
e perdidos. Há um sentido para isso, e não mero acaso. Não apenas caos.
Buscar nosso destino é parte do que nos faz
humanos, e buscar razão e racionalidade parte do que nos faz inteligentes.
***
Concentrado
em meio a minha papelada, e com a cabeça a mil, mal ouço o telefone tocar.
Talvez eu tenha deixado fora do gancho por alguns momentos, ou eu realmente
tenha abaixado o volume de toque propositadamente. Pouco importa. Atendo, e, do
outro lado da linha, Verônica me convida ao almoço, levemente preocupada com
meu estado depois da outra noite. Acabo aceitando, meio sem compreender porque.
Quer dizer, se estivesse solteiro, sem dúvida alguma... Quer dizer, com toda a
certeza eu que estaria ligando para ela, mas com toda a situação com a Marina
e...
Bem...
É estranho... Bem estranho. Eu me sinto como que querendo me justificar, de que
não estive errado, de que agi por medo ou.
Não.
Eu sou um bosta mesmo, e é por isso que, com minha mulher medicada, sendo
tratada e observada e precisando de mim, e eu ainda aceito pensar sobre outras
mulheres. Aceito um almoço com uma mulher com quem passei uma noite insana e
que deveria me servir de parâmetro de coisas a evitar... Das quais fugir.
E
mesmo assim, lá estou eu, no restaurante, vinte minutos antes, sentado, olhando
o cardápio e quase que torcendo para que ela não venha, para aplacar minha
culpa. Parte de mim deseja que ela venha, mas completamente diferente da mulher
que vi dias atrás. Que aquela mulher linda, fogosa e admirável fosse apenas um
fantasma do passado. Um vislumbre de minha mente da mulher que por tanto tempo
povoou minha mente, e, num momento a mais, com o auxílio do álcool, pode aqui
habitar uma noite adicional. Quando ela chega, bem mais discreta dessa vez, sem
que eu sequer note sua chegada até que ela esteja ao meu lado, com um perfume
característico, algo que qualquer um facilmente associaria a ela, mesmo sem
conhecê-la bem, e, quase me assusto com o toque suave de sua mão na minha. “Oi,
não te deixei esperando muito, não é?”, diz em um tom um tanto rouco com
aqueles lábios vermelhos e provocantes.
Respondo
em monossílabos, tentando me recompor e provando-me certo em partes sobre o
álcool. Somente errado na proporção. Ela estava, naquele momento, com a luz do
sol a brilhar por seu corpo levemente bronzeado e seus cabelos claros, formando
a silhueta do algo mais próximo da perfeição em corpo de mulher, que eu jamais
vi nela mesmo no auge de sua forma durante a faculdade, ou em outros momentos
anteriores. Mesmo de dois dias atrás, quando, creio minha mente tenha visto
outra mulher, que, ainda que belíssima, jamais chegaria aos pés desta beleza.
“O que estou fazendo?”, é a pergunta que permeia por minha cabeça, palpitando a
cada vez que fito aqueles olhos enormes e verdes, ou noto a partir de seu
decote o contorno perfeito de seus seios, provocantes, vendo, afinal, que estão
somente protegidos pela fina camada de tecido do vestido branco de alça que ela
está usando. Me sinto um adolescente outra vez, vermelho como um pimentão,
incapaz de falar coerentemente, e, mais excitado que em nenhum momento... Pelo
menos recente de minha vida. Ela fala, calma e docemente sobre suas viagens,
sua vida depois da faculdade, o que fizera, e o quanto estava feliz em me
encontrar, depois de tanto tempo. Sentia que, ao me ver, sentiu que eu era o
seu ‘porto-seguro’, depois das atribulações que enfrentou no divórcio e desemprego
recentes.
Fico
com a pergunta constante sobre que tipo de homem ela estava casada, ainda mais
com a descrição que ela faz dele, e, vez após vez surge em minha mente a imagem
de Dick Vigarista, com seu bigode fino e alongado e o sorriso falso e malicioso,
sempre tramando o próximo esquema patético e traiçoeiro. Rio comigo mesmo dessa
suposição estapafúrdia, que vai crescendo e crescendo a cada novo detalhe que
ela diz, a cada nova ação deste homem, deste monstro... E fico, muitas vezes,
me perguntando como ela acabou com um traste desses. Ela sempre tão cheia de si
e de vida, sempre procurando por coisas novas, sempre em busca da próxima moda
e tendência, e... Bem, ela nunca me pareceu o tipo que se amarraria num cara
(só). Não... Ela não me parecia o tipo que sossegaria e passaria quase quatro
anos casada – o que me deixa com uma certa vergonha de meu tempo de noivado com
Marina – ainda mais com o sujeito que ela descreve. Ele parece o exato oposto
de tudo que sempre vi nela. Um sujeito previsível, com metas centradas e
definidas... Alguém como Fausto, só que mais amoral, disposto a tudo mesmo para
chegar ao posto que almeja. Um exagero, creio eu, afinal, nunca vi o sujeito, e
minha fonte não é a pessoa mais confiável para fornecer um detalhamento de seu
caráter, em virtude do divórcio que cada palavra dela indica não ter sido nada
amigável. “Relacionamentos são muito complicados... Parece que para fazer duas
pessoas se odiarem é só mantê-las juntas por algum tempo”, ela diz e me deixa
completamente estupefato, e sem resposta. E eu lembro uma vez, que disseram –
e, até acredito não ser verdade ou ao menos não atribuído corretamente – que o
próprio Einstein disse achar bem mais fácil dividir o átomo que encontrar a
capacidade para entender o que se passava com sua esposa.
Só
sei que o almoço acaba se estendendo um pouco mais que deveria, mas acaba sem
incidentes ou maiores detalhes e fatos interessantes. Fico com uma expressão
aparvalhada a tarde toda, lembrando do rosto, do corpo e das curvas de Verônica
e... E tenho uma tarde toda que não vale vinte minutos de trabalho. Por dias
como esses que vejo que, bem, de uma forma ou outra, meu emprego é um pouco
melhor que sempre sonhei, mesmo com todas as barras, todas as coisas que
ninguém quer ver... Que ninguém gosta de saber... São momentos deste mais
completo ócio, que rendem nada vezes nada, que vejo que preciso valorizar beeem
mais esta condição em que estou.
Às
vezes, quando reavaliamos as coisas, analisamos sob uma nova perspectiva e
percebemos que pintamos alguns demônios muito maiores que realmente são.
***
No
dia seguinte começa um projeto novo e poderoso da incorporação, a diretoria não
está satisfeita com os números, e quer projetar um aumento da marca em
trezentos por cento nos próximos cinco anos, com contenção de custos e –
obviamente – demissão de milhares de funcionários, o fechamento de um bocado de
áreas e toda aquela falação que nos últimos doze meses constantemente se evitou
falar, usando dizer que nada daquilo seria necessário, passível ou sequer
aconteceria. Agora é a regra da casa.
Fico
bastante preocupado com a possibilidade de perder o emprego, ainda mais nesse
momento, com todas as despesas... Todas essas malditas despesas. Meu breve
tempo entre a reunião e o almoço é diante de uma planilha calculando quanto
tempo eu conseguiria sobreviver, caso o pior acontecesse. Quanto de minhas
economias eu precisaria abrir mão.
O
telefone toca, e vejo que é uma ligação interna. Fausto está do outro lado da
linha, calmo como sempre, e me pergunta “Tenso, meu amigo? Já tem planos pro
almoço?”. Penso por um instante, mas vejo que, este é um momento perfeito para
buscar algum benefício desta amizade. Ainda mais depois que ele me avisa que
Dennis Moore também estará no restaurante.
Por
alguns instantes, sinto que eles estão mais nervosos que eu, se isso é
realmente possível. Seus cargos de confiança podem deixar de existir, mesmo que
as metas pra cinco anos sejam obtidas em duas semanas, afinal, cargos de
diretoria e planejamento estão na lista do Swann’s a um bom tempo, e agora fica
mais evidente. A palavra de ordem é reescalonamento. Gente grande que curta a
aposentadoria ou vá procurar outra coisa para fazer, enquanto seus cargos, se
continuarem a existir, serão galgados por funcionários novos, ou de confiança
da diretoria nova. E isso me deixa ainda mais preocupado. Se os dois saírem,
meu cargo não se mantém por muito tempo – apesar de, eles garantirem que os
investimentos em cursos e programas de aprendizado estarem se intensificando, o
que facilitaria a manutenção de meu cargo, mesmo nessa nova realidade.
_
Os bancos estão se modernizando, e gente como nós, os grandes engravatados e
executivos graduados estamos em nossos últimos dias. A extinção da modernização
se aproxima – diz um caótico Dennis Moore, que prossegue – Em uma questão breve
de anos, seremos não mais que um sonho... Peças de museus.
_
Você anda meio melancólico, Dennis – diz Fausto, expressando minha igual
dúvida, ainda mais que, dos três à mesa, ele era o único que tivera um longo e
extenso contrato revisto e formalizado – o que te perturba, meu amigo?
_
Meu cargo deixou de existir. Acharam uma forma de realizar o meu trabalho sem
que seja necessária uma pessoa por trás. Conseguiram um substituto para o
gerente de cartões de crédito de mais sucesso das Américas, vendedor recorde e,
se me lembro, até fui chamado em certa época como o ‘papa’ dos cartões...
Ficamos
em silêncio. Eu, honestamente um tanto constrangido. Quer dizer, é a terceira
vez na vida que vejo esse homem... As duas outras em reuniões, exatamente como
essas, marcadas às pressas e com a diferença de que, enquanto as outras só
pretendiam mudar tudo o que fazíamos que pensávamos fazer, esta realmente foi
isso.
_
Dennis, relaxe, amigo... Você sabe muito bem porque chegou ao topo, e que os
amigos não esquecem. Tanto eu quanto você podemos cobrar uns favores aqui e ali
e em semanas estaremos com novos empregos ou...
_
Não é isso, meu caro Fausto. Eu ainda tenho um bocado de contatos e propostas
para começar de novo, ou departamentos que poderiam pra me realocar e,
honestamente até tenho o suficiente para começar uma aposentadoria modesta,
caso quisesse, fazendo algumas consultorias e palestras aqui e acolá. É a
humilhação da forma como ocorreu que me perturba. Depois de vinte anos
trabalhando no setor e consolidando diversas de suas marcas, quem é capaz de me
substituir quando meu salário se torna alto demais para meu empregador? Você
não vai acreditar... Um estagiário sardento e um computador de mão... Sério!
Ele estava na minha sala hoje mais cedo, pedindo alguns de meus documentos,
querendo conferir os contratos!
Ele
não deve ter vinte anos, juro por Deus!
Ele
ri nervosamente, e apesar de entender a ironia, tudo que vejo é um homem
perdendo o controle. Surtando, e, com muito mais motivos que eu.
_
É o ciclo natural das coisas, meu velho! Um dia nós teríamos de ceder nossos
lugares para outros e...
_
Você não parece entender, Fausto! É como se trocassem um funcionário por um
peso de papel! Ou uma foto com uma placa embaixo!
Chega
a ser ridículo. Com tanto lucro que nós geramos e continuamos a gerar... Com
tudo que produzimos e continuamos a produzir, aqueles acima de nós simplesmente
dizem um “E não esqueça de escrever”, e que isso faça tudo perfeito. Danem-se
as férias que eu só tirei no papel, mas passei bolando novas estratégias de
vendas... De que valem as noites que eu não dormi, ou o fato de eu nem estar no
mesmo continente que minha esposa quando nossa filha nasceu, cobrindo uma
reunião inútil com um cliente imbecil, mas ainda assim sozinho capaz de
alavancar os lucros em duzentos por cento naquele ano...
Os
lucros continuam a crescer e crescer de maneira exorbitante, e os cortes de
custos, a redução na quantidade de funcionários, a diminuição de cargos com
salários mais altos... E tudo isso pra que? Qual o propósito disso tudo? Desses
lucros e mais lucros e mais lucros?
Novamente,
somente o som nervoso de talheres contra a porcelana se ouve, e um distante som
ambiente que parece manter-se no restaurante (apesar de ser notado apenas
naquele momento, ao menos por minha pessoa).
_
O corporativismo nunca se importou com pessoas, desde os primeiros passos da
indústria agrícola na chamada primeira onda do desenvolvimento, e, mesmo nos
dias de hoje nada mudou – digo, com certa frieza que nunca me pareceu mais
prudente – A história está repleta de contos de culturas e civilizações
solapadas por culturas maiores ou mais avançadas.
O
cinza da pólvora desvirginou a mata e eliminou povos avançados, em busca de
pedras e metais preciosos e outros materiais que pudessem agregar algum valor
para os assim chamados ‘desbravadores’. Os novos mercados desaparecem em virtude
da agressividade para se manter um mercado que trata pessoas como relógios e
engrenagens, e que nos faz cada vez mais débeis e ignóbeis perante uma
realidade que nos diz que somos amplamente dispensáveis, fatalmente
substituíveis. Subprodutos sem importância ou mérito.
_
Ironia, meu caro Dennis... Ironia... – Fausto tenta mudar o tom da conversa,
sem saber ao certo o que, ou porque, está dizendo o que está dizendo.
Dennis
porém continua, por quase vinte minutos ele fala sem interrupções sobre os
planos de vigiar constantemente os funcionários monitorando cada movimento
dentro do ambiente de trabalho através dos módulos de sistema, regulando cada
acesso e momento utilizado com o sistema de ponto eletrônico aberto, cada
aplicativo e movimento realizado, cada telefonema atendido, cada segundo gasto
dentro do ambiente da agência é analisado e supervisionado por complexos e
supervalorizados sistemas de algoritmos, comprimidos em relatórios de
produtividade, impressos semanalmente e discutidos entre reuniões de executivos
como desculpas para demissões de funcionários.
Parece
até um cenário futurista aterrador... Uma realidade inventada, uma metáfora
estabelecida para mostrar os riscos e problemas do totalitarismo, ou até tão
somente uma visão paranóica de um homem enfurecido perante sua demissão. Não é.
É uma realidade cada vez mais freqüente em escritórios e empreendimentos, e, eu
pessoalmente discuti uma série de vezes sobre, ao menos o que vejo, o absurdo
da coisa toda. Existe um limite entre vigilância e vigilantismo...
Recentemente
foi implantado um sistema para checar o nível de organização dos funcionários,
testando a velocidade com que responderiam a uma solicitação encaminhada pela
diretoria, diretamente aos subordinados. Tudo na surdina, sem avisos, sem
conferências. Três funcionários foram demitidos, nesse processo, sendo que um
deles tão somente por contestar os motivos de tal empreendimento.
A
solicitação em questão, ao que me recordo, era algo frívolo, tolo como conferir
a temperatura do ar condicionado, ou a quantidade de papéis que haviam sobre a
mesa, enviados diretamente da diretoria para o funcionário, e, a cada uma hora
sem resposta, seria encaminhada uma nova, e, dessa feita mais intimidadora
solicitação.
Os
resultados, conforme um memorando que foi emitido a todos os membros da
diretoria, e, de departamentos de gestão – que me inclui – foram um sucesso, e,
novas aplicações estavam sob estudo. Já ouvi sobre a possibilidade de pedirem
que o funcionário faça algo ilegal, pois afinal, se fizer, será demitido por
justa causa. Se não fizer, estará desobedecendo a diretoria, e, deverá ser
demitido ou avaliado negativamente por tal motivo.
Honestamente,
torço para que levem a diante isso, e, estarei na primeira fila de testemunhas
em favor dos funcionários no processo, se bem que o departamento jurídico
precisa ser completamente incapaz para permitir tamanha atrocidade...
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