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21 de agosto de 2013

Ato 2 - A crise de identidade (parte 3)


O dia seguinte é uma contínua exposição de ridículo e constrangimento enquanto caminho e passo de uma sala para outra, de um departamento para outro, enquanto alguém faz um comentário sacana ou uma pergunta estúpida sobre minha noitada, minha ressaca, e por tal motivo resolvo me esconder em minha sala, passar nela o restante de meu expediente fazendo algum trabalho burocrático que me obrigue a ficar quieto e calmo ali. A calmaria não dura muito tempo.
_ Você ficou sabendo daquele funcionário? – pergunta Fausto, se aproximando de minha sala, com diversos relatórios abarrotadas em uma pasta em uma mão, e um café esfumaceando na outra.
_ Qual?
_ Um dos últimos a fazer um de seus treinamentos... A papelada toda está aqui comigo, sobre como ele atendeu uma senhora de idade, e a sua reclamação junto ao conselho regulatório.
Fausto já me conhece, e sabe, que quando não expresso qualquer comentário, e paro o que faço, é por que estou bastante interessado, e por isso ele me provoca. Faz uma pausa, toma seu café, coloca a pasta na mesa, folheia um pouco, bebe mais um pouco de café, como que esperando que eu pergunte um ‘E...?’, mas nada faço. Sua vontade de contar é maior, afinal, foi ele que veio à minha sala.
_ Ela, mancando, questionou, se haveria possibilidade de efetuar um saque na instituição. Confuso, o guri olhou para o cartão dela, e... Ah, eu mencionei que ela era cliente de outra instituição? É, ela contou pra ele que era cliente de outro banco, mas queria fazer um saque, dentro da agência, e, o guri, olhando o cartão e vendo que não era um conveniado disse que, se ela conseguisse, seria no eletrônico. Sabe como é, eletrônico tem acesso a sistemas genéricos que acabam possibilitando, com a cobrança de tarifas e tudo mais que uma pessoa faça o saque em qualquer lugar.
Ela saiu, não conseguiu sacar, e voltou, gritando e reclamando já diretamente com o funcionário, coisas do tom de ‘Que pouca vergonha, você acha que eu sou palhaça pra me falar que dá pra fazer uma coisa quando não tem como’, entre outras coisas, enquanto ele mantinha alguma serenidade, e, respirando fundo respondeu: ‘Minha senhora, eu não acho que a senhora seja palhaça, por uma série de motivos, que vão desde o primeiro fator que nós nessa instituição não trabalhamos com deduções e suposições. Não tentamos adivinhar a profissão de nossos clientes, por mais evidente que possa parecer, principalmente porque as aparências enganam, e, sinceramente, não entendo qual a relevância do fato para a sua reclamação. Em segundo lugar, a senhora, que está reclamando tanto de dor na perna, e dificuldade de locomoção, fez questão de entrar numa instituição que não a sua, e, não fosse o bastante, mesmo com o fracasso na sua tentativa de fazer o que queria, preferiu andar de novo em minha direção, sem condição de fazê-lo como a senhora alega, sendo que, se gastasse a mesma quantidade de passos poderia já estar em seu banco efetuando o saque a que veio fazer na instituição errada, e, neste exato momento estaria seguindo rumo a sua própria casa. Agora, é verdade que vejo uma falta de vergonha e decoro nesse caso, mas não posso dizer realmente que seja de nossa parte’.
Rimos por alguns instantes, apesar de não ser algo realmente hilário ou sequer engraçado. Os custos com um processo desse tipo, por mais estúpido que sejam, e os custos para realocar o funcionário somente para evitar estresse novamente com a cliente ou sua família, são suficientes para preencher horas e horas de recursos e papéis, e, infelizmente, eu sou um dos responsáveis por cuidar disso, motivo pelo qual Fausto fez questão de me trazer o caso pessoalmente. Ele sai para sua reunião quinzenal ou algo do tipo, e me deixa com esse abacaxi no colo para descascar.
E começo a buscar algum material, sobre minha pesquisa, sobre as palestras e material oferecido aos funcionários, tentando revisar o que estava fazendo e o quanto realmente tinha conseguido evoluir de minha idéia inicial de projeto... Quer dizer, quando comecei com o trabalho de seleção de treinamentos e programas para os funcionários, vários e vários tipos de coisa me foram oferecidos, e eu acompanhei de tudo um pouco esses materiais em busca de algo que enquadrasse em minha visão de projeto. Oficinas motivacionais, programas de treinamento do exército, palestras de vendas... E uma infinidade de palestrantes de auto-ajuda.
Faço uma ressalva aqui, uma vez que, é verdade e não nego que acho o assunto um campo minado, e bota minado nisso. A quantidade de charlatães aproveitando-se de falsas pesquisas e dados incompletos para oferecer materiais sem nexo ou embasamento científico/prático como algo lógico aplicando o termo chavão “auto-ajuda” é sem sombra de dúvidas a maior de qualquer área de conhecimento humano. É absurda a quantidade de programas mal orientados e intencionados oferecidos e se fazendo passar por motivacional ou mesmo voltado para o desenvolvimento pessoal.
Parte disso se deve, obviamente, a quantidade abissal de mitos inerentes do conhecimento e desconhecimento humano sobre a psique, nosso intelecto e, enfim, a dimensão real de nossa capacidade cerebral, do quanto isso significa e representa. Um dos mais difundidos e absurdos ‘fatos’, costumeiramente ditos sobre o cérebro humano, por exemplo, é o de que utilizamos dele apenas dez por cento, que é uma mentira daquelas que se repetiu e repete a tanto tempo que acabou virando fato,
 um dos famosos ‘números fictícios’, ou como alguns gostam de utilizar de palavras menos polidas (que não será o caso) ‘números tirados do ânus’. Como o Pé-Grande, ou Nessie e tantas outras criaturas folclóricas, que, nada mais são que aliterações de crendices com visões assustadoras ou sem qualquer foco de coisas comuns e muito bem conhecidas.
Adaptou-se a história para dizer que, não é que o ser humano use apenas dez por cento de seu cérebro, e sim que utilize da mente consciente apenas dez por cento, o que, novamente, é um absurdo, e, talvez, até maior que o primeiro. Que tipo de aparelho é realmente apto a captar o inconsciente humano? Ou distinguir o consciente do inconsciente para mensurar uma comparação dos desempenhos de ambos?
Obviamente os charlatães não se esforçam em ler ou pesquisar materiais de profissionais realmente capacitados e treinados, uma vez que isso é caro, chato e dispendioso, e é mais fácil inventar e trabalhar com fatos de conhecimento público, ou atribuir realidades relativas como verdades absolutas.
E dentre esses incautos estão dezenas de funcionários, gerentes e dirigentes de minha instituição a me perguntar sobre um curso falando sobre o tal segredo do universo e as leis dessa auto-ajuda picareta.
Só destaquei algumas frases de um dos livros, e mostrei o quanto isso é inútil e pode ser perigoso e mal interpretado, comparativamente com outra seita que prometia coisas semelhantes (e acabou com suicídio coletivo, porque afinal de contas eu não queria pegar leve, e sim enfatizar meu ponto). Desde então, as perguntas sobre o assunto raramente chegam até minha sala... Acabam parando bem antes com uma cópia desse documento que continua circulando e sendo divulgado pela instituição.
Mudando de perspectiva, eu cheguei a fatos sobre um pesquisador de verdade, e um real motivador. Ele começa seu discurso sobre uma história que circula pelo mundo como sendo verdadeira – apesar de, após essa mensagem circular, o fato se repetir em algumas reuniões, realmente – sobre um evento bastante típico, comum e, não obstante chato, da vida cotidiana: A famosa reunião sazonal para ‘ir de nenhum lugar para lugar nenhum’.
Acho que todo mundo conhece isso... É aquela situação onde um gerente, ou chefe, ou sub-chefe, ou... Enfim, alguém com um cargo mais importante, resolve exercer tal cargo falando um monte de asneiras chavões, repetindo discursos feitos e dizendo um bando de bobagens para tanto motivar quanto assustar os funcionários – e, assustando, fazer com que estes não se motivem a seguir seus próprios caminhos, para, por exemplo, montar uma concorrente que não traria metade dos defeitos que a empresa atual possui.
Uma dessas falácias é dita ao final da reunião, quando o diretor geral, como nota de encerramento acha prudente dizer que “É importante lembrar que ninguém é insubstituível”, que “existe um mercado inteiro cheio de pessoas dispostas e empolgadas em obter o seu cargo”, e enfim, que resumindo, todo e qualquer funcionário deve ficar grato pela empresa ter lhe concedido um emprego e que, obviamente, ele é tão relevante quanto uma folha de papel... Se uma se perde centenas de milhares estão em estoque para repor.
E é quando um funcionário, enquanto todos ainda estavam sentados logo após o encerramento, pede para fazer uma pergunta. “E quanto ao Beethoven, senhor?”. O diretor constrangido e confuso, pergunta, com um tom inquisitivo: “E o que tem o Beethoven?”. O funcionário, uma vez mais “Quem substituiu o Beethoven?”. Obviamente, sem a existência de um chavão pra isso, o diretor diz alguma bobagem para desviar o foco e foi isso.
A pergunta é pertinente, com toda a certeza, pois ela muda toda a postura do ‘fordismo’ e a idéia de linha de produção que limita, diminui e deixa claro que cada um só é relevante na confecção de seu limitado e mínimo serviço, até que outrem o faça, melhor ou mais rápido ou com menos matéria-prima. A idéia das ‘organizações-relógio’ que, dependem de pequenas, insignificantes e mínimas peças que só fazem sentido em um conjunto, e que cada e qualquer uma delas pode ser trocada e retirada e compensada.
Novamente, uma série de coisas sem sentido. O elemento humano não pode ser substituído. JAMAIS.
Quem substitui o meu pai? Quem pode substituir minha mãe? Meu filho ou filha?
E, mudando um pouco o foco, voltando para a outra questão, da empresa relógio... Realmente? Todo e qualquer funcionário pode ser substituído e trocado por outro equivalente? Claro que em um serviço burocrático e repetitivo, se você treinar um macaco ou colocar uma máquina, você obtém o mesmo resultado. Mas todo serviço é burocrático e repetitivo? Quantas idéias revolucionaram a forma como enxergamos o mundo, e foram simples sacadas, simples alterações do modo e forma como fazemos as coisas? Quantas delas não surgiram de pesquisa em universidades, e claro, parcerias com empresas ou somente em departamentos de desenvolvimento de empresas?
Menosprezar um funcionário ou pessoa ‘menor’ é um erro típico de pessoas arrogantes, e existem dezenas senão centenas de exemplos de como isso está errado.
Quantas bandas ouvem e ouviram um ‘não’? Quantos donos de bares e estabelecimentos simplesmente não fecharam suas portas para músicos, julgando o som muito barulhento ou que não combinasse com o perfil do lugar... Em Liverpool no início dos anos 60, quantos tiveram em suas mãos os Beatles - a marca musical mais lucrativa, por quase toda mídia em que esteve, ainda nos dias de hoje? Claro, quantas bandas tentaram chegar ao mesmo patamar? Quantas lutaram e ainda lutam por isso e quantos sonhos, amizades e famílias desfeitas por uma tentativa? Por uma chance, que algumas vezes nunca veio?
O mundo pode ser um lugar bastante cruel às vezes, mostrando uma breve luz que nunca seremos capazes de alcançar, ou que, para chegar levemente perto precisaremos sacrificar muito e abrir mão de quase tudo. Ninguém disse que seria fácil, mas com toda a certeza, em momento algum foi suposto que se conseguiria sozinho.
Não existe empresa de uma pessoa só (existem vendedores ambulantes e profissionais liberais).
Não existe família de uma pessoa só (existem pessoas que tem mais amigos que parentes, pessoas órfãs mas não sozinhas e os completamente solitários que vivem e perambulam pelo mundo).
Tudo, da mínima partícula da matéria até as mais intrincadas complexas constelações, galáxias e universos, faz parte e contém outros e outrem.
Um infindável dominó universal, agindo e reagindo, exigindo nossas ações e reflexões. Um Beatle um dia foi um mínimo óvulo e espermatozóide concomitantes e perdidos. Há um sentido para isso, e não mero acaso. Não apenas caos.
 Buscar nosso destino é parte do que nos faz humanos, e buscar razão e racionalidade parte do que nos faz inteligentes.
***
Concentrado em meio a minha papelada, e com a cabeça a mil, mal ouço o telefone tocar. Talvez eu tenha deixado fora do gancho por alguns momentos, ou eu realmente tenha abaixado o volume de toque propositadamente. Pouco importa. Atendo, e, do outro lado da linha, Verônica me convida ao almoço, levemente preocupada com meu estado depois da outra noite. Acabo aceitando, meio sem compreender porque. Quer dizer, se estivesse solteiro, sem dúvida alguma... Quer dizer, com toda a certeza eu que estaria ligando para ela, mas com toda a situação com a Marina e...
Bem... É estranho... Bem estranho. Eu me sinto como que querendo me justificar, de que não estive errado, de que agi por medo ou.
Não. Eu sou um bosta mesmo, e é por isso que, com minha mulher medicada, sendo tratada e observada e precisando de mim, e eu ainda aceito pensar sobre outras mulheres. Aceito um almoço com uma mulher com quem passei uma noite insana e que deveria me servir de parâmetro de coisas a evitar... Das quais fugir.
E mesmo assim, lá estou eu, no restaurante, vinte minutos antes, sentado, olhando o cardápio e quase que torcendo para que ela não venha, para aplacar minha culpa. Parte de mim deseja que ela venha, mas completamente diferente da mulher que vi dias atrás. Que aquela mulher linda, fogosa e admirável fosse apenas um fantasma do passado. Um vislumbre de minha mente da mulher que por tanto tempo povoou minha mente, e, num momento a mais, com o auxílio do álcool, pode aqui habitar uma noite adicional. Quando ela chega, bem mais discreta dessa vez, sem que eu sequer note sua chegada até que ela esteja ao meu lado, com um perfume característico, algo que qualquer um facilmente associaria a ela, mesmo sem conhecê-la bem, e, quase me assusto com o toque suave de sua mão na minha. “Oi, não te deixei esperando muito, não é?”, diz em um tom um tanto rouco com aqueles lábios vermelhos e provocantes.
Respondo em monossílabos, tentando me recompor e provando-me certo em partes sobre o álcool. Somente errado na proporção. Ela estava, naquele momento, com a luz do sol a brilhar por seu corpo levemente bronzeado e seus cabelos claros, formando a silhueta do algo mais próximo da perfeição em corpo de mulher, que eu jamais vi nela mesmo no auge de sua forma durante a faculdade, ou em outros momentos anteriores. Mesmo de dois dias atrás, quando, creio minha mente tenha visto outra mulher, que, ainda que belíssima, jamais chegaria aos pés desta beleza. “O que estou fazendo?”, é a pergunta que permeia por minha cabeça, palpitando a cada vez que fito aqueles olhos enormes e verdes, ou noto a partir de seu decote o contorno perfeito de seus seios, provocantes, vendo, afinal, que estão somente protegidos pela fina camada de tecido do vestido branco de alça que ela está usando. Me sinto um adolescente outra vez, vermelho como um pimentão, incapaz de falar coerentemente, e, mais excitado que em nenhum momento... Pelo menos recente de minha vida. Ela fala, calma e docemente sobre suas viagens, sua vida depois da faculdade, o que fizera, e o quanto estava feliz em me encontrar, depois de tanto tempo. Sentia que, ao me ver, sentiu que eu era o seu ‘porto-seguro’, depois das atribulações que enfrentou no divórcio e desemprego recentes.
Fico com a pergunta constante sobre que tipo de homem ela estava casada, ainda mais com a descrição que ela faz dele, e, vez após vez surge em minha mente a imagem de Dick Vigarista, com seu bigode fino e alongado e o sorriso falso e malicioso, sempre tramando o próximo esquema patético e traiçoeiro. Rio comigo mesmo dessa suposição estapafúrdia, que vai crescendo e crescendo a cada novo detalhe que ela diz, a cada nova ação deste homem, deste monstro... E fico, muitas vezes, me perguntando como ela acabou com um traste desses. Ela sempre tão cheia de si e de vida, sempre procurando por coisas novas, sempre em busca da próxima moda e tendência, e... Bem, ela nunca me pareceu o tipo que se amarraria num cara (só). Não... Ela não me parecia o tipo que sossegaria e passaria quase quatro anos casada – o que me deixa com uma certa vergonha de meu tempo de noivado com Marina – ainda mais com o sujeito que ela descreve. Ele parece o exato oposto de tudo que sempre vi nela. Um sujeito previsível, com metas centradas e definidas... Alguém como Fausto, só que mais amoral, disposto a tudo mesmo para chegar ao posto que almeja. Um exagero, creio eu, afinal, nunca vi o sujeito, e minha fonte não é a pessoa mais confiável para fornecer um detalhamento de seu caráter, em virtude do divórcio que cada palavra dela indica não ter sido nada amigável. “Relacionamentos são muito complicados... Parece que para fazer duas pessoas se odiarem é só mantê-las juntas por algum tempo”, ela diz e me deixa completamente estupefato, e sem resposta. E eu lembro uma vez, que disseram – e, até acredito não ser verdade ou ao menos não atribuído corretamente – que o próprio Einstein disse achar bem mais fácil dividir o átomo que encontrar a capacidade para entender o que se passava com sua esposa.
Só sei que o almoço acaba se estendendo um pouco mais que deveria, mas acaba sem incidentes ou maiores detalhes e fatos interessantes. Fico com uma expressão aparvalhada a tarde toda, lembrando do rosto, do corpo e das curvas de Verônica e... E tenho uma tarde toda que não vale vinte minutos de trabalho. Por dias como esses que vejo que, bem, de uma forma ou outra, meu emprego é um pouco melhor que sempre sonhei, mesmo com todas as barras, todas as coisas que ninguém quer ver... Que ninguém gosta de saber... São momentos deste mais completo ócio, que rendem nada vezes nada, que vejo que preciso valorizar beeem mais esta condição em que estou.
Às vezes, quando reavaliamos as coisas, analisamos sob uma nova perspectiva e percebemos que pintamos alguns demônios muito maiores que realmente são.
***
No dia seguinte começa um projeto novo e poderoso da incorporação, a diretoria não está satisfeita com os números, e quer projetar um aumento da marca em trezentos por cento nos próximos cinco anos, com contenção de custos e – obviamente – demissão de milhares de funcionários, o fechamento de um bocado de áreas e toda aquela falação que nos últimos doze meses constantemente se evitou falar, usando dizer que nada daquilo seria necessário, passível ou sequer aconteceria. Agora é a regra da casa.
Fico bastante preocupado com a possibilidade de perder o emprego, ainda mais nesse momento, com todas as despesas... Todas essas malditas despesas. Meu breve tempo entre a reunião e o almoço é diante de uma planilha calculando quanto tempo eu conseguiria sobreviver, caso o pior acontecesse. Quanto de minhas economias eu precisaria abrir mão.
O telefone toca, e vejo que é uma ligação interna. Fausto está do outro lado da linha, calmo como sempre, e me pergunta “Tenso, meu amigo? Já tem planos pro almoço?”. Penso por um instante, mas vejo que, este é um momento perfeito para buscar algum benefício desta amizade. Ainda mais depois que ele me avisa que Dennis Moore também estará no restaurante.
Por alguns instantes, sinto que eles estão mais nervosos que eu, se isso é realmente possível. Seus cargos de confiança podem deixar de existir, mesmo que as metas pra cinco anos sejam obtidas em duas semanas, afinal, cargos de diretoria e planejamento estão na lista do Swann’s a um bom tempo, e agora fica mais evidente. A palavra de ordem é reescalonamento. Gente grande que curta a aposentadoria ou vá procurar outra coisa para fazer, enquanto seus cargos, se continuarem a existir, serão galgados por funcionários novos, ou de confiança da diretoria nova. E isso me deixa ainda mais preocupado. Se os dois saírem, meu cargo não se mantém por muito tempo – apesar de, eles garantirem que os investimentos em cursos e programas de aprendizado estarem se intensificando, o que facilitaria a manutenção de meu cargo, mesmo nessa nova realidade.
_ Os bancos estão se modernizando, e gente como nós, os grandes engravatados e executivos graduados estamos em nossos últimos dias. A extinção da modernização se aproxima – diz um caótico Dennis Moore, que prossegue – Em uma questão breve de anos, seremos não mais que um sonho... Peças de museus.
_ Você anda meio melancólico, Dennis – diz Fausto, expressando minha igual dúvida, ainda mais que, dos três à mesa, ele era o único que tivera um longo e extenso contrato revisto e formalizado – o que te perturba, meu amigo?
_ Meu cargo deixou de existir. Acharam uma forma de realizar o meu trabalho sem que seja necessária uma pessoa por trás. Conseguiram um substituto para o gerente de cartões de crédito de mais sucesso das Américas, vendedor recorde e, se me lembro, até fui chamado em certa época como o ‘papa’ dos cartões...
Ficamos em silêncio. Eu, honestamente um tanto constrangido. Quer dizer, é a terceira vez na vida que vejo esse homem... As duas outras em reuniões, exatamente como essas, marcadas às pressas e com a diferença de que, enquanto as outras só pretendiam mudar tudo o que fazíamos que pensávamos fazer, esta realmente foi isso.
_ Dennis, relaxe, amigo... Você sabe muito bem porque chegou ao topo, e que os amigos não esquecem. Tanto eu quanto você podemos cobrar uns favores aqui e ali e em semanas estaremos com novos empregos ou...
_ Não é isso, meu caro Fausto. Eu ainda tenho um bocado de contatos e propostas para começar de novo, ou departamentos que poderiam pra me realocar e, honestamente até tenho o suficiente para começar uma aposentadoria modesta, caso quisesse, fazendo algumas consultorias e palestras aqui e acolá. É a humilhação da forma como ocorreu que me perturba. Depois de vinte anos trabalhando no setor e consolidando diversas de suas marcas, quem é capaz de me substituir quando meu salário se torna alto demais para meu empregador? Você não vai acreditar... Um estagiário sardento e um computador de mão... Sério! Ele estava na minha sala hoje mais cedo, pedindo alguns de meus documentos, querendo conferir os contratos!
Ele não deve ter vinte anos, juro por Deus!
Ele ri nervosamente, e apesar de entender a ironia, tudo que vejo é um homem perdendo o controle. Surtando, e, com muito mais motivos que eu.
_ É o ciclo natural das coisas, meu velho! Um dia nós teríamos de ceder nossos lugares para outros e...
_ Você não parece entender, Fausto! É como se trocassem um funcionário por um peso de papel! Ou uma foto com uma placa embaixo!
Chega a ser ridículo. Com tanto lucro que nós geramos e continuamos a gerar... Com tudo que produzimos e continuamos a produzir, aqueles acima de nós simplesmente dizem um “E não esqueça de escrever”, e que isso faça tudo perfeito. Danem-se as férias que eu só tirei no papel, mas passei bolando novas estratégias de vendas... De que valem as noites que eu não dormi, ou o fato de eu nem estar no mesmo continente que minha esposa quando nossa filha nasceu, cobrindo uma reunião inútil com um cliente imbecil, mas ainda assim sozinho capaz de alavancar os lucros em duzentos por cento naquele ano...
Os lucros continuam a crescer e crescer de maneira exorbitante, e os cortes de custos, a redução na quantidade de funcionários, a diminuição de cargos com salários mais altos... E tudo isso pra que? Qual o propósito disso tudo? Desses lucros e mais lucros e mais lucros?
Novamente, somente o som nervoso de talheres contra a porcelana se ouve, e um distante som ambiente que parece manter-se no restaurante (apesar de ser notado apenas naquele momento, ao menos por minha pessoa).
_ O corporativismo nunca se importou com pessoas, desde os primeiros passos da indústria agrícola na chamada primeira onda do desenvolvimento, e, mesmo nos dias de hoje nada mudou – digo, com certa frieza que nunca me pareceu mais prudente – A história está repleta de contos de culturas e civilizações solapadas por culturas maiores ou mais avançadas.
O cinza da pólvora desvirginou a mata e eliminou povos avançados, em busca de pedras e metais preciosos e outros materiais que pudessem agregar algum valor para os assim chamados ‘desbravadores’. Os novos mercados desaparecem em virtude da agressividade para se manter um mercado que trata pessoas como relógios e engrenagens, e que nos faz cada vez mais débeis e ignóbeis perante uma realidade que nos diz que somos amplamente dispensáveis, fatalmente substituíveis. Subprodutos sem importância ou mérito.
_ Ironia, meu caro Dennis... Ironia... – Fausto tenta mudar o tom da conversa, sem saber ao certo o que, ou porque, está dizendo o que está dizendo.
Dennis porém continua, por quase vinte minutos ele fala sem interrupções sobre os planos de vigiar constantemente os funcionários monitorando cada movimento dentro do ambiente de trabalho através dos módulos de sistema, regulando cada acesso e momento utilizado com o sistema de ponto eletrônico aberto, cada aplicativo e movimento realizado, cada telefonema atendido, cada segundo gasto dentro do ambiente da agência é analisado e supervisionado por complexos e supervalorizados sistemas de algoritmos, comprimidos em relatórios de produtividade, impressos semanalmente e discutidos entre reuniões de executivos como desculpas para demissões de funcionários.
Parece até um cenário futurista aterrador... Uma realidade inventada, uma metáfora estabelecida para mostrar os riscos e problemas do totalitarismo, ou até tão somente uma visão paranóica de um homem enfurecido perante sua demissão. Não é. É uma realidade cada vez mais freqüente em escritórios e empreendimentos, e, eu pessoalmente discuti uma série de vezes sobre, ao menos o que vejo, o absurdo da coisa toda. Existe um limite entre vigilância e vigilantismo...
Recentemente foi implantado um sistema para checar o nível de organização dos funcionários, testando a velocidade com que responderiam a uma solicitação encaminhada pela diretoria, diretamente aos subordinados. Tudo na surdina, sem avisos, sem conferências. Três funcionários foram demitidos, nesse processo, sendo que um deles tão somente por contestar os motivos de tal empreendimento.
A solicitação em questão, ao que me recordo, era algo frívolo, tolo como conferir a temperatura do ar condicionado, ou a quantidade de papéis que haviam sobre a mesa, enviados diretamente da diretoria para o funcionário, e, a cada uma hora sem resposta, seria encaminhada uma nova, e, dessa feita mais intimidadora solicitação.
Os resultados, conforme um memorando que foi emitido a todos os membros da diretoria, e, de departamentos de gestão – que me inclui – foram um sucesso, e, novas aplicações estavam sob estudo. Já ouvi sobre a possibilidade de pedirem que o funcionário faça algo ilegal, pois afinal, se fizer, será demitido por justa causa. Se não fizer, estará desobedecendo a diretoria, e, deverá ser demitido ou avaliado negativamente por tal motivo.
Honestamente, torço para que levem a diante isso, e, estarei na primeira fila de testemunhas em favor dos funcionários no processo, se bem que o departamento jurídico precisa ser completamente incapaz para permitir tamanha atrocidade...

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