Então, o que efetivamente acontece aqui?
Basicamente, você precisa entender que Nocenti escreve sua primeira edição (o número 236) como um teste, assim como as edições 234, 235 e 237 - cada uma escrita por diferentes autores para que a Marvel sentisse a percepção popular para verificar os rumos a seguir com o personagem. Nocenti se saiu melhor e inicia sua fase efetivamente a partir da edição 238 ignorando as outras três edições (o que, honestamente, é o mesmo que todo leitor de quadrinhos e a própria Marvel também faz).
Do começo, precisamos trilhar que após a saga de Frank Miller, Matt está quebrado, desempregado e tentando juntar os cacos de sua vida (enquanto o Rei do Crime sabe de sua identidade secreta e tentou matá-lo em mais de uma ocasião). O que sobra de esperança para o Demolidor é além do retorno de sua ex-namorada Karen Page (lidando com o vício em drogas, e a pessoa responsável por trair Matt e entregar sua identidade secreta), e encontrar sua mãe (que, até onde sabia estava morta). A partir daqui Ann Nocenti inicia o caminho para que o personagem reconstrua sua vida.
Banido da ordem dos advogados, ele tenta 'burlar' a situação oferecendo aconselhamento ainda que sem representação de seus clientes perante um tribunal, enquanto Karen monta um centro para ajudar os mais carentes da Cozinha do Inferno. É uma sacada interessante para mostrar a redenção e o crescimento de ambos personagens e rende bons momentos e boas sacadas, inclusive para expor vários dos pontos de vista da autora (como a dificuldade de gente mais pobre conseguir justiça - sendo esse um dos argumentos principais desse início quando uma gigantesca corporação polui um lago que acaba cegando um garoto). Tudo isso é muito bem trabalhado e conduzido principalmente no início da fase enquanto Nocenti lida com as consequências de A Queda de Murdock e trilha o caminho para seguir a partir dali.
Só que, obviamente, a editora (e os editores) já anteviam que a ramificação óbvia para a saga de Frank Miller seria que o Homem sem medo e o Rei do Crime se confrontassem novamente, mas, dessa vez o Demolidor sairia triunfante, só que não teria peso ou consequência se acontecesse imediatamente depois ou muito próximo - como na edição 250 a menos de dois anos da edição final de A Queda de Murdock. A solução é espaçar ao máximo possível para não tirar o impacto de uma história com outra, e se a edição 300 parecia a solução óbvia (quase 70 números e seis anos depois) ou se foi mera coincidência, acaso ou um pensamento posterior, bem, ao menos olhando hoje (vários anos depois da publicação) ao menos parece explicar bem o que acontece aqui. Um pouco de planejamento, muita sorte e encheção de linguiça.
Resumindo a fase da escritora em linhas bem gerais, do número 236 até o número 291 escritas por Nocenti a história se divide em três grandes partes: 236 a 260-262 a primeira fase que mostra Matt e Karen se readaptando e tentando se reeguer após os eventos de A Queda de Murdock (Demolidor 227 a 233); 263 - 283 que mostra o Demolidor derrotado por Mary Tifoide vagando sem rumo e finalmente abandonando Nova Iorque em uma busca espiritual para redescobrir o sentido daquilo que faz e por fim 284 a 291 que é o retorno à Nova Iorque (mas basicamente AINDA traz o Demolidor ajustando sua condição e identidade e posição no mundo, o que concluí na edição 290 lançando os eventos de A Queda do Rei do Crime - ou Last Rites - das edições 297 a 300, escritos por Danil G Chichester, mas que por mais bizarro que pareça, são o fim coerente e lógico para a série de Nocenti).
O problema é que esta não é uma fase do Demolidor - como outras que vieram antes - este é um título da Marvel para integrar aos incontáveis mega-eventos e crossovers, e eles vem de baciada (Massacre dos Mutantes, A Queda dos Mutantes, Inferno, Atos de Vingança, A Saga da Coroa da Serpente além dos anuais como da trama 'Forma de Vida' e a lista segue), e o personagem acaba se perdendo e inclusive virando mero coadjuvante de sua própria narrativa devido as mais insanas e absurdas imposições editoriais (do que, vale lembrar a própria Nocenti ERA uma das editoras da Marvel, colaborando com Chris Claremont em histórias envolvendo Mojo e Longshot). E cabe o parênteses porque vale lembrar que nesse ponto, Claremont já trabalhava com os X-men há quase uma década e a franquia vinha gerando mais e mais títulos (Novos Mutantes, X-Factor, Wolverine, Excalibur) e mesmo o melhor e mais competente editor do planeta teria dores de cabeça colossais só para fazer a cronologia fazer sentido.
Karen Page desaparece por volta da edição 261 para não retornar mais, Foggy Nelson aparece somente no comecinho (meio que como antagonista defendendo a corporação que polui o lago que causa a cegueira de uma criança - e que é uma ideia bem interessante e que podia render mais) e depois volta em relances ao final, enquanto Ben Urich SÓ aparece no fianl... Mesmo o Rei do Crime desaparece completamente das histórias do Demolidor (enquanto Matt vaga o país) ainda que suas histórias transcorram em outros eventos (como Atos de Vingança em que o vilão se alia ao Doutor Destino e cia). E eis que os Inumanos aparecem num arco de várias edições enquanto o Demolidor enfrenta o vilão Ultron (claro, porque não?) impondo condições que nada faziam de sentido para que um cego ninja que combate gangues enquanto enfrenta cada vez mais ameaças sobrenaturais e mutantes (afinal os mutantes nos anos 1980 vendiam MUITO na Marvel), enquanto Ann Nocenti (sabe, a escritora dessa fase) se vê incapaz de conduzir as histórias ou parece só fazer um trabalho protocolar para conciliar suas muitas tarefas na editora.
O grande exemplo disso vem na conclusão da saga de Mary Tifoide (que coloca o Demolidor derrotado pelo Rei do Crime e seus asseclas) que é eclipsada pelo mega evento Inferno (que coloca toda Nova Iorque em caos devido a alguma idiotice sobre demônios transdimensionais invadindo o planeta), principalmente porque não parece haver qualquer consequência a nenhum dos dois eventos (a derrota do Demolidor não torna a vizinhança da Cozinha do Inferno mais violenta ou expande os negócios do Rei do Crime, e o fim da saga Inferno não traz qualquer ramificação minimamente relevante). Mais que isso até porque a personagem só volta a aparecer em um anual e durante outra saga enfrentando O QUARTETO FUTURO (Sabe, um grupo de crianças que resolve virar super-herói e parecia uma boa ideia nos anos 1980 para vender brinquedos?)!
E aqui reside o grande (senão maior) problema da fase. Com histórias e mais histórias que pouco ou nada acrescentam à trama principal (como a edição 264 especialmente ilustrada por Steve Ditko ou a 277 que eu nem vou fingir que sei qual foi a lógica além de tapar buraco para o John Romita Jr terminar a arte de suas edições), somente para que façam parte de algum contexto maior de outras mega-sagas, eventos ou simplesmente dos títulos mais populares (como o Blob e Pyro cruzando o caminho do Demolidor em uma edição, ou o Homem Aranha aparecendo para ajudar o Demolidor a combater o demônio Coração Negro)... Tudo parece vazio e desinteressante, até porque de fato é.
São fragmentos com personagens que não oferecem nenhum vislumbre mais interessante ou que impacte a vida de Matt Murdock de maneira significativa. As histórias não trazem soluções para o problema que o Demolidor vivencia, ou mesmo, e isso é importante, algo que seja mais que um mero vislumbre e é a essência dos problemas do arco mais longo da autora "Estranho Solitário" (que seria a segunda fase mencionada antes, aproximadamente da edição 263 a 283) é o maior exemplo desses problemas, com o Demolidor meio que evocando a aura do seriado do Incrível Hulk cruzando cidade após cidade e resolvendo conflitos até que um time fixo de coadjuvantes passa a integrar a história.
Desse grupo NENHUM é MINIMAMENTE interessante - seja a feminazi ecochata Brandy ou a Barbie à enésima potência e criada em laboratório para ser a mulher perfeita (sim, você leu isso) Número 9 são insuportáveis), e por algum motivo bizarro (que é basicamente para garantir que republicanos continuem comprando quadrinhos ou não os denuncie publicamente em piras públicas - afinal de contas a série apresenta um herói vestido de demônio enfrentando o demônio bíblico/literal, e religiosos não costumam gostar de coisas que tragam esse tipo de imagens estampadas), o vilão da fase - um traficante financiado pela CIA e que faz experimentos genéticos - é meio que justificado como não sendo assim tão ruim e, sabe, um grande patriota. As histórias nesse ponto ficam completamente perdidas e desfocadas, com situações cada vez mais espalhafatosas e conceitos (e conflitos) que facilmente poderiam se resumir em um arco bem mais curto de seis edições ou (e francamente bem mais interessante) um salto temporal de alguns meses entre o final da saga de Mary Tifoide e o próximo arco. Inclusive, e isso é importante, porque a partir da edição 284 quando o Demolidor está em Nova Iorque alucinando, é até possível que nada dessas edições tenham acontecido mesmo e fosse somente um subproduto das alucinações e desvarios da mente de Matt Murdock racionalizando o que acontece.
Até existem boas histórias aqui e acolá (principalmente no que tange a aparição de Mefisto, forçando Matt a confrontar suas escolhas e hipocrisias), mas o sentimento geral é que facilmente da edição 262 você pode pular até a edição 284 (ou, sendo bem honesto, até a edição 292 quando a escritora deixa o título de vez, por que o retorno à Nova Iorque é bastante fraco também, com o Matt Murdock achando que é o pai Jack enquanto o Mercenário assume a identidade de Demolidor), ignorando quase todos os eventos nesse intervalo sem (muito) prejuízo.
Mas quando Chichester assume o título, bem, ao menos ele concluí a trama do Rei do Crime (mesmo que meio apressadamente e deixando um enorme potencial da história da rede de televisão sem desenvolvimento apropriado), mas continua um cenário em que o foco é mais editorial que lógico (como com a Hydra e Tentáculo aparecendo mais e mais em histórias do Homem sem Medo).
O que é uma pena, pois Nocenti mesmo em histórias desinteressantes e pouco inspiradas se mostra uma escritora muito melhor que Chichester. Ele só estava no lugar certo para concluir as histórias de Nocenti (e até mesmo de Frank Miller, afinal de contas).
RESUMINDO: Um bom começo, inspirado e cheio de gás. Depois vai se perdendo em crossovers, megaeventos (e personagens desinteressantes e sem propósito) e aí chega a um final extremamente anticlimático com a autora saindo ANTES do fim de sua fase.
Mas a arte é de primeira com John Romita Jr no auge (se bem que ele raramente desaponta) e outros artistas igualmente notáveis como Lee Weeks e Greg Capulo (sim).
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