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15 de novembro de 2014

{EDITORIAL} Meritocracia é uma palavra inventada para manter o status quo, minha senhora

"Onde já se viu?", me pergunta uma furiosa dona de casa em uma fila de mercado enquanto ela se queixa do preço dos produtos. Ela, por algum motivo que me escapa, resolve me ver como seu terapeuta particular e desaba os problemas de sua família, e, comenta que o marido desempregado não acha emprego - algo que era bem mais fácil anos atrás - que o filho não conseguiu passar num vestibular de uma faculdade - porque o governo começou a facilitar pros negros...

Como eu retive qualquer informação é um mistério inclusive para mim. Olhei para as capas das revistas próximas ao caixa, olhei para o preço de baterias e M&Ms (até li todo o valor nutricional deles - e não sei se encontrei algum), e tentei não argumentar nada além de acenos com a cabeça e grunhidos mínimos. "Hmm-Hmm", "Uhm...", com uma expressão de desinteresse somado a incredulidade (de que ela ainda achasse importante continuar seu discurso).

Depois de beirar o racismo (e atravessar a linha, diga-se de passagem, pois prefiro omitir os comentários dessa natureza), chegou a bela palavrinha que me fez começar esse texto. "Meritocracia". Ela disse, por algum motivo que deveria me fazer sentir pena ou simpatizar com seu ponto de vista, que seus familiares eram vítimas num sistema em que o mérito deles não era enxergado, e, obviamente minha resposta foi clara e objetiva: Eu ri.

Ri alto, gargalhando entre cada próximo passo possibilitado pela fila, e eventualmente me virava para ela para tentar me recompor - quando desatava a rir novamente. E acho que falhei em argumentar, quando só pude dizer 'Meritocracia é conto da carochinha' (apesar que talvez eu tenha dito algo mais na linha de 'meritocracia de anus é pênis', mas tentemos manter certa classe), quando obviamente deveria usar um fraseado mais elegante, expor meu verso de maneira mais coerente e dizer algo nas linhas de 'Meritocracia é uma palavra inventada para manter o status quo, minha senhora', ao aproveito esse texto para corrigir minha reação.

Não que numa fila de supermercado eu deveria entrar no mérito de discutir com uma senhora revoltada sobre os textos de Emile Zola em Germinal (com os trabalhadores ralando e morrendo nas minas de carvão por centavos enquanto os grandes capitalistas fazem festas e se divertem em suas gigantescas mansões, reclamando da preguiça do povo operário), ou expor um exemplo claro desta situação naquele mesmo supermercado - em que, enquanto todos os cargos da base (caixas, atendentes e supervisores) eram ocupados por mulheres, os cargos gerenciais eram todos ocupados por homens (os gerentes todos) - ao que não é o mérito que permite a este ou aquele funcionário esforçado galgar posições (a menos que as caixas passem por cirurgias de mudança de sexo para chegar a gerentes).


Mas a verdade é que duas estatísticas recentes deixaram tudo mais claro e tangível que qualquer outra afirmação que eu pudesse colocar.
Primeiro esse texto do Washington Post (cujo gráfico principal está acima) que deixa bem claro que, por mais esforçado que seja um garoto pobre, ele dificilmente se sairá melhor que um rico desleixado - veja ali, ricos que abandonam o colégio contra pobres que se formam na faculdade.

Numa mesma escala, a Folha trouxe uma matéria que expõe que, dos novos estudantes da USP, 50% são do extrato mais rico (os 20% mais ricos, para ser mais preciso). Isso são dados apenas da USP, considerando outras faculdades, principalmente se focarmos em outros tipos de cursos como medicina, acho justo e fácil crer que estes números subam ainda mais - até porque em média é atribuído um gasto de R$1100,00 para alunos de medicina somente com material de estudos e trabalho, e gastos podem passar os R$500.000,00... Motivo pelo qual tantos alunos busquem com afinco um curso nesta área no exterior (somente para se deparar com as dificuldades elitistas do Revalida e do preconceito dos médicos da terra brazista - ah, e também esse dos "médicos" defendendo castrações químicas...)

Mais que isso, podemos e devemos nos lembrar da quantidade absurda de casos na história (recente ou não) em que a simples sorte valeu e vale muito mais que qualquer esforço ou 'mérito'.
Como os casos dos petroleiros do Texas (ei, qual o 'mérito' em ser o herdeiro de um fazendeiro do tempo escravagista e que recentemente abusou de recursos governamentais para extrair petróleo de suas terras?) ou mesmo dos muitos e inúmeros filhos de celebridades que nascem em berço esplêndido e neles persistem por toda a vida como a realeza (num tempo em que menos e menos reis e rainhas existem no mundo)?

Sim, seria um mundo ideal e lindo se o esforço e brio de cada um valesse seu ordenado.
Mas não é. O cortador de cana passa de antes de nascer o sol à tardezinha trabalhando sob o escaldante sol, mas nem sonha com as cifras do dono da usina...

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