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23 de outubro de 2013

O dia em que parei de fumar

Não me lembro mais que dia era... Tudo que sei é que estava muito quente. Quente demais pra usar um terno, mesmo com todos os ares condicionados ligados eu ainda suava em bicas. Minha mulher sempre disse que era pelo nervosismo, sabe? A reunião marcada no Rio com toda a diretoria no dia seguinte definiria a continuidade da empresa. Minha apresentação poderia garantir a continuidade de nosso funcionamento e os subsídios para o desenvolvimento das novas filiais, ou a manutenção do plano de downsizing proposto semanas atrás para aplacar os investidores. Claro que estava nervoso, mas esse é o motivo pelo qual eu fumava, um cigarro após o outro, com intervalos para um café expresso, e esmagava compulsivamente bolinhas de papel com minha mão esquerda. Era uma responsabilidade muito grande, de fato. Ainda mais que se tudo falhasse, eu ainda seria o responsável por trazer as más notícias para casa.
Eram quase três e meia, talvez um pouco mais, e só havia vagas em dois vôos, o das cinco – o qual estava aguardando, com a última passagem disponível – e o das nove, que em breve estaria lotado também. Sei que já estava havia algum tempo ali no aeroporto, tanto que tinha lido o jornal inteiro, sem conseguir me concentrar, e folheara ao menos uma revista integralmente. Também revisava planilhas, gráficos e projeções para minha apresentação. E fumava mais um pouco.
Desde meus dezesseis anos, o cigarro era uma forma de aliviar o estresse, e acho que diversos médicos e especialistas podem dizer uma série de coisas sobre a ativação de substâncias no cérebro e toda uma dose de fatos científicos. Só não era meu motivo.
Enquanto eu tragava, e por um pequeno e ínfimo instante enquanto a fumaça passava por meus lábios, havia um breve e poderoso momento em que minhas preocupações pareciam escapar de minha cabeça. E por mais fugaz que isso fosse, era o suficiente para me fazer buscar por um novo cigarro, e desejar por esse momento novamente.
Com o tempo os problemas só foram aumentando e com isso a quantidade de cigarros por dia também subiu. Exponencialmente. Um pretexto, é lógico, e eu costumava dizer que o sabor do café nunca fora tão bom quanto depois de uma boa tragada de um cigarro, mas a verdade é que o paladar foi talvez a primeira coisa que eu percebi que por muitos anos eu o abandonara, no momento em que realmente parei de fumar... Apesar que acho que estou me adiantando um pouco aqui.
Por volta das quatro, quatro e meia fui conferir novamente minha bagagem, que toda cabia em uma pequeníssima mala, afinal ficaria apenas um dia em meu destino, e foi quando percebi que parte de minha apresentação não estava comigo. Revirei a mala uma, duas vezes e talvez mais e nada de encontrar o pen drive com o arquivo da apresentação. Liguei desesperado para o escritório, para descobrir que todas as cópias do documento final estavam em minha posse. E o arquivo finalizado estava em um pen drive, alocado exatamente onde eu o deixara: Sobre a cômoda, junto com meu relógio da sorte (que ganhara de presente de minha mãe no dia do casamento), que também ficara em casa.
Uma onda de desespero foi me acometendo, e comecei a fazer os cálculos se teria tempo para chegar em casa e voltar com o documento antes do voo, e, mesmo considerando um eventual e programado atraso, era mais provável que não, então parti para a lógica e pedi pacientemente para uma atendente que efetuasse a troca de minha passagem para o próximo horário disponível, ao que ela me explicou que diante das circunstâncias pelo horário adiantado, para realizar tal transação eu devia uma multa de 45% do valor da passagem, acrescido da conversão da taxa da nova passagem, o que resultava quase no equivalente de comprar a passagem do segundo voo e não usar a deste. Disse a ela que decidiria nos próximos minutos, ao que fui ao lobby para fumar novamente.
Nervosamente batia meus pés como nenhum dançarino profissional na arte de sapateado faria com os dois, talvez apenas mais ritmado. Minha cabeça parecia prestes a explodir, e eu não via muita solução, quando um senhor de idade, beirando talvez uns setenta anos, se aproximou de mim. “Não pude deixar de ouvir seu dilema, meu rapaz”, disse ele com um ar de simpatia típico dos avôs com seus cabelos brancos cobertos por uma boinazinha preta e o casaco marrom, de quem parece ignorar o calor por não ter mais tempo para senti-lo, “mas talvez eu possa ajudá-lo”. Ele me explicou então sua necessidade de pegar o próximo voo, se possível, para acompanhar uma cirurgia de sua filha, que aconteceria mais à noite, e da qual somente fora avisado momentos atrás. Se pegasse o voo das nove, provavelmente não veria sua filha até o final do procedimento, isso se ela não tivesse de pernoitar na UTI, e, sem pensar muito, troquei minha passagem com a dele, ao que me agradeceu com um forte aperto de mão e um olhar genuinamente grato.
Nunca me explicou direito qual era o problema com sua filha, e confesso também não perguntar, mas ele carregava uma expressão preocupada de quem talvez nunca mais veria uma pessoa querida.
Com isso tive o tempo de voltar para casa, e, graças ao congestionamento que me acompanhou muito na ida e ainda mais na volta, e, como é meu costume, não gosto de ouvir notícias enquanto dirijo. Na minha opinião uma voz constantemente falando em um tom cadenciado e monótono sobre os acontecimentos do dia é algo que me desconcentra, por isso prefiro música para tentar me distrair, ou nesse caso em particular, eu ensaiei minha apresentação para os bancos e o painel do veículo. Uma, duas, três vezes eu repeti os argumentos que apresentaria no dia seguinte, cada vez de maneira mais incisiva e convincente, trocando alguns detalhes, ajustando alguns pontos. Meu último discurso foi impecável, em minha singela opinião, e, se os dirigentes da empresa estivessem ali no carro comigo, sem dúvida alguma o resultado seria o esperado.
Logo que chego ao aeroporto, a quantidade enorme de veículos, inclusive de imprensa deixa claro que algum desastre se passara ali dentro nessas quase duas horas em que estive ausente, e não tardo a descobrir, passando pelo portão principal, que um avião, logo depois de sua decolagem caíra. Ou sequer conseguira decolar, causando uma colisão feia, enquanto aguardavam a lista de embarque para confirmar os passageiros, e,iniciar o processo de comunicar suas famílias, que já começavam a se aglomerar nos longos corredores das companhias aéreas, disputando informação com os jornalistas, radialistas e outros tantos curiosos.
O voo? Das cinco horas para o Rio, aquele no qual eu deveria estar.
Comecei a tremer mais que pudim em terremoto, e, sei que acabei tendo uma queda de pressão, e tive que desesperadamente buscar um pouco de ar e um lugar para me sentar.
Buscava meu isqueiro, já com um cigarro nos lábios, mas minha mão tremia tanto que mal conseguia fazê-lo funcionar, e mesmo o cigarro não estava assim tão firme em minha boca. Fiquei sentado ali, por um tempo sentindo a brisa, e tentando digerir toda aquela maluquice.
Até que uma pessoa de uma equipe jornalística se aproximou de mim, vendo minha palidez e aparência notadamente preocupada como alguém que vira um fantasma, e me perguntou “O senhor está bem? Perdeu alguém neste voo?”.
“Não, minha querida...”, respondi com uma estranha calma que tomava meu corpo numa súbita epifania “Eu só perdi o voo...”, e simples assim eu pude ver minha vida de maneira diferente, e o quão ridículas algumas, senão muitas de minhas decisões tomadas vinham sendo. E eu comecei a agir diferente de forma gradual, nos dias que se seguiram.
Cortar o cigarro parecia lógico... Escapar da morte em um voo para cair vítima de um enfisema ou câncer anos mais tarde num leito de hospital sofrendo por anos e anos de tratamentos? Não, uma vez que me safei, era melhor procurar um outro final (feliz, quem sabe?)... Também passei a me alimentar melhor, de maneira mais saudável, fazer exercícios regularmente, até comecei um hobby para me distrair. Eu coleciono maços de cigarro, dos mais variados tipos, tamanhos, sabores e países. Velhos hábitos, como dizem...
...
A quem possa interessar, alguns meses mais tarde, fiquei sabendo que a filha daquele senhor que trocara de passagem comigo, falecera durante a cirurgia. Gosto de acreditar que de uma forma ou de outra, pai e filha se encontraram naquele mesmo dia, ainda que não da maneira que gostariam.

-- Esse conto participou da seleção da FLIP 2012, infelizmente não foi classificado...

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