Não me lembro mais que dia era... Tudo
que sei é que estava muito quente. Quente demais pra usar um terno, mesmo com
todos os ares condicionados ligados eu ainda suava em bicas. Minha mulher
sempre disse que era pelo nervosismo, sabe? A reunião marcada no Rio com toda a
diretoria no dia seguinte definiria a continuidade da empresa. Minha
apresentação poderia garantir a continuidade de nosso funcionamento e os
subsídios para o desenvolvimento das novas filiais, ou a manutenção do plano de
downsizing proposto semanas atrás para aplacar os investidores. Claro que
estava nervoso, mas esse é o motivo pelo qual eu fumava, um cigarro após o
outro, com intervalos para um café expresso, e esmagava compulsivamente
bolinhas de papel com minha mão esquerda. Era uma responsabilidade muito
grande, de fato. Ainda mais que se tudo falhasse, eu ainda seria o responsável
por trazer as más notícias para casa.
Eram quase três e meia, talvez um pouco
mais, e só havia vagas em dois vôos, o das cinco – o qual estava aguardando,
com a última passagem disponível – e o das nove, que em breve estaria lotado
também. Sei que já estava havia algum tempo ali no aeroporto, tanto que tinha
lido o jornal inteiro, sem conseguir me concentrar, e folheara ao menos uma
revista integralmente. Também revisava planilhas, gráficos e projeções para
minha apresentação. E fumava mais um pouco.
Desde meus dezesseis anos, o cigarro era
uma forma de aliviar o estresse, e acho que diversos médicos e especialistas
podem dizer uma série de coisas sobre a ativação de substâncias no cérebro e
toda uma dose de fatos científicos. Só não era meu motivo.
Enquanto eu tragava, e por um pequeno e
ínfimo instante enquanto a fumaça passava por meus lábios, havia um breve e
poderoso momento em que minhas preocupações pareciam escapar de minha cabeça. E
por mais fugaz que isso fosse, era o suficiente para me fazer buscar por um
novo cigarro, e desejar por esse momento novamente.
Com o tempo os problemas só foram
aumentando e com isso a quantidade de cigarros por dia também subiu. Exponencialmente.
Um pretexto, é lógico, e eu costumava dizer que o sabor do café nunca fora tão
bom quanto depois de uma boa tragada de um cigarro, mas a verdade é que o
paladar foi talvez a primeira coisa que eu percebi que por muitos anos eu o
abandonara, no momento em que realmente parei de fumar... Apesar que acho que
estou me adiantando um pouco aqui.
Por volta das quatro, quatro e meia fui
conferir novamente minha bagagem, que toda cabia em uma pequeníssima mala,
afinal ficaria apenas um dia em meu destino, e foi quando percebi que parte de
minha apresentação não estava comigo. Revirei a mala uma, duas vezes e talvez
mais e nada de encontrar o pen drive com o arquivo da apresentação. Liguei
desesperado para o escritório, para descobrir que todas as cópias do documento
final estavam em minha posse. E o arquivo finalizado estava em um pen drive,
alocado exatamente onde eu o deixara: Sobre a cômoda, junto com meu relógio da
sorte (que ganhara de presente de minha mãe no dia do casamento), que também
ficara em casa.
Uma onda de desespero foi me acometendo,
e comecei a fazer os cálculos se teria tempo para chegar em casa e voltar com o
documento antes do voo, e, mesmo considerando um eventual e programado atraso,
era mais provável que não, então parti para a lógica e pedi pacientemente para
uma atendente que efetuasse a troca de minha passagem para o próximo horário
disponível, ao que ela me explicou que diante das circunstâncias pelo horário
adiantado, para realizar tal transação eu devia uma multa de 45% do valor da
passagem, acrescido da conversão da taxa da nova passagem, o que resultava
quase no equivalente de comprar a passagem do segundo voo e não usar a deste.
Disse a ela que decidiria nos próximos minutos, ao que fui ao lobby para fumar
novamente.
Nervosamente batia meus pés como nenhum
dançarino profissional na arte de sapateado faria com os dois, talvez apenas
mais ritmado. Minha cabeça parecia prestes a explodir, e eu não via muita
solução, quando um senhor de idade, beirando talvez uns setenta anos, se
aproximou de mim. “Não pude deixar de ouvir seu dilema, meu rapaz”, disse ele
com um ar de simpatia típico dos avôs com seus cabelos brancos cobertos por uma
boinazinha preta e o casaco marrom, de quem parece ignorar o calor por não ter
mais tempo para senti-lo, “mas talvez eu possa ajudá-lo”. Ele me explicou então
sua necessidade de pegar o próximo voo, se possível, para acompanhar uma
cirurgia de sua filha, que aconteceria mais à noite, e da qual somente fora
avisado momentos atrás. Se pegasse o voo das nove, provavelmente não veria sua
filha até o final do procedimento, isso se ela não tivesse de pernoitar na UTI,
e, sem pensar muito, troquei minha passagem com a dele, ao que me agradeceu com
um forte aperto de mão e um olhar genuinamente grato.
Nunca me explicou direito qual era o
problema com sua filha, e confesso também não perguntar, mas ele carregava uma
expressão preocupada de quem talvez nunca mais veria uma pessoa querida.
Com isso tive o tempo de voltar para
casa, e, graças ao congestionamento que me acompanhou muito na ida e ainda mais
na volta, e, como é meu costume, não gosto de ouvir notícias enquanto dirijo. Na
minha opinião uma voz constantemente falando em um tom cadenciado e monótono
sobre os acontecimentos do dia é algo que me desconcentra, por isso prefiro
música para tentar me distrair, ou nesse caso em particular, eu ensaiei minha
apresentação para os bancos e o painel do veículo. Uma, duas, três vezes eu
repeti os argumentos que apresentaria no dia seguinte, cada vez de maneira mais
incisiva e convincente, trocando alguns detalhes, ajustando alguns pontos. Meu
último discurso foi impecável, em minha singela opinião, e, se os dirigentes da
empresa estivessem ali no carro comigo, sem dúvida alguma o resultado seria o
esperado.
Logo que chego ao aeroporto, a
quantidade enorme de veículos, inclusive de imprensa deixa claro que algum
desastre se passara ali dentro nessas quase duas horas em que estive ausente, e
não tardo a descobrir, passando pelo portão principal, que um avião, logo
depois de sua decolagem caíra. Ou sequer conseguira decolar, causando uma
colisão feia, enquanto aguardavam a lista de embarque para confirmar os
passageiros, e,iniciar o processo de comunicar suas famílias, que já começavam
a se aglomerar nos longos corredores das companhias aéreas, disputando informação
com os jornalistas, radialistas e outros tantos curiosos.
O voo? Das cinco horas para o Rio,
aquele no qual eu deveria estar.
Comecei a tremer mais que pudim em
terremoto, e, sei que acabei tendo uma queda de pressão, e tive que
desesperadamente buscar um pouco de ar e um lugar para me sentar.
Buscava meu isqueiro, já com um cigarro
nos lábios, mas minha mão tremia tanto que mal conseguia fazê-lo funcionar, e
mesmo o cigarro não estava assim tão firme em minha boca. Fiquei sentado ali,
por um tempo sentindo a brisa, e tentando digerir toda aquela maluquice.
Até que uma pessoa de uma equipe
jornalística se aproximou de mim, vendo minha palidez e aparência notadamente
preocupada como alguém que vira um fantasma, e me perguntou “O senhor está bem?
Perdeu alguém neste voo?”.
“Não, minha querida...”, respondi com
uma estranha calma que tomava meu corpo numa súbita epifania “Eu só perdi o
voo...”, e simples assim eu pude ver minha vida de maneira diferente, e o quão
ridículas algumas, senão muitas de minhas decisões tomadas vinham sendo. E eu
comecei a agir diferente de forma gradual, nos dias que se seguiram.
Cortar o cigarro parecia lógico...
Escapar da morte em um voo para cair vítima de um enfisema ou câncer anos mais
tarde num leito de hospital sofrendo por anos e anos de tratamentos? Não, uma
vez que me safei, era melhor procurar um outro final (feliz, quem sabe?)...
Também passei a me alimentar melhor, de maneira mais saudável, fazer exercícios
regularmente, até comecei um hobby para me distrair. Eu coleciono maços de
cigarro, dos mais variados tipos, tamanhos, sabores e países. Velhos hábitos,
como dizem...
...
A quem possa
interessar, alguns meses mais tarde, fiquei sabendo que a filha daquele senhor
que trocara de passagem comigo, falecera durante a cirurgia. Gosto de acreditar
que de uma forma ou de outra, pai e filha se encontraram naquele mesmo dia, ainda que
não da maneira que gostariam.-- Esse conto participou da seleção da FLIP 2012, infelizmente não foi classificado...
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