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9 de outubro de 2013

Ato 3 - O Sentido da vida (parte final)


Ele segura sua pequena, carinhosamente e parece que o tempo não existe, assim como qualquer outra coisa no universo.
Aquela diminuta criaturinha loira e babona incapaz de realizar qualquer coisa que difira de dormir, chorar e fazer coco, mamar... E ser simplesmente adorável. Aquela prova viva de que a simplicidade é o caminho da felicidade, e que isso mesmo tão simples e evidente desde nosso nascimento, ainda é algo tão facilmente esquecido.
A pequena sorri, enquanto seu pai brinca com ela, segurando um chacoalho ou outro brinquedo infantil colorido e barulhento que ele balança freneticamente diante dela. E ela sorri, gargalha alto e chama a atenção de todos que passam ali.
E é algo bom.
Não há quem veja aquela criaturinha linda e charmosa sorrindo e se divertindo ao lado de seu pai que consiga manter um olhar sério, carrancudo ou pessimista. Os sorrisos se espalham, o carinho se espalha e um bem estar, uma sensação clara de que algo bom existe e está bem ali, diante de qualquer um que queira ver.
Mais que qualquer um, evidentemente, quem sorri é o pai, que se diverte e se sente realmente feliz, somente por estar ali. Ela parece cansada, e ele resolve colocá-la no carrinho um pouco, empurrando-o para frente e para trás, cantando uma canção suave e envolvente que a embala para o sono.
_ Demorei muito? – pergunta a mãe, olhando no relógio e carregando sacolas e mais sacolas de compras.
_ Confesso que não percebi... Essa pequena exige tanta atenção que...
_ É... Eu sei bem disso... – diz a mãe sorridente entregando as sacolas de compras para o pai, enquanto se posiciona atrás do carrinho de bebê – Vamos?
Sem uma palavra, o trio segue pelos corredores da loja, Milton, Marina e a pequena Verônica.
***
O machado desce suavemente contra a madeira, sem falhas, sem a necessidade de repetidos golpes, algo que somente com anos repetindo esse ritual vespertino para tornar o hábito mais eficiente, nessa que era sua última tarefa diária antes do regresso ao lar. Mas não era um lar.
Ele estava sozinho, e sabia muito bem disso, mesmo que o sentido e contexto não fossem exatamente claros. Não havia mais nenhuma vivalma nas ruas, em outras casas e no restante do mundo, e fazia muito tempo disso. Tempo demais, para se ter certeza de estar completa e totalmente sozinho.
O pequeno casebre de madeira, improvisado em um lugar alto de uma colina fria, parecia deixar mais frio entrar que impedi-lo de fato, e ele sente que aquela seria uma noite particularmente fria. Não havia lua, e as nuvens se formavam densas no horizonte. Uma tempestade seminal, talvez, embora improvável. Não havia vento.
Ele deixa as toras ao lado da casa, carregando apenas o que precisaria para acender uma fogueira, para impedir que morra com o abraço gelado da noite, que seus cobertores vinham repetidamente se provando insuficientes.
Como em outras ocasiões, aqueles pareciam os seus últimos pensamentos a correr pela vastidão de sua massa cinzenta, por isso parecia lógico abrir sua última garrafa de vinho, consumi-la até o final e passear pelo tortuoso caminho da memória, através do pesado álbum de fotografias que deixava como um troféu e seu bem mais precioso ao lado de sua cama.
“Dias de ouro”, ele sussurra, virando as páginas que a cada instante parecem mais embaçadas pelas lágrimas a turvar-lhe os olhos. Seu pai, sua mãe, seus amigos, alguns nem tanto... O antigo pessoal do trabalho, do time de futebol amador, dos encontros de pôquer... Seu grande amor do colégio. O grande amor de sua vida. Sua filha.
Chorava caudalosamente, sentado ao chão apoiando suas costas à poltrona, mantendo nela inclusive um segundo álbum quase tão grosso e pesado, este trazendo ainda mais fotos, e mais histórias – como desenhos e trabalhos de escola de sua filha. Abraçou com força o pesado documento que carregava contra seu peito, como se estivesse de fato, não só com uma ou outra das pessoas de suas lembranças e sim todas.
E assim ficou, pelo restante da noite fria de inverno.
No suave abraço das lembranças, no confortável toque das boas recordações. Algo que, mesmo sendo o último homem do mundo, cansado e faminto, não lhe seria privado.

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