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25 de setembro de 2013

Ato 3 - O Sentido da vida (parte 1)


Enclausurado.
Deprimido.
Indisposto.
Olho meus olhos e vejo apenas um vazio. Olho ao redor e não vejo nada.
Essas coisas são minhas, não esse lugar. Sinto um grito, um urro no fundo de minha garganta, mas não tenho sequer a vontade de libertá-lo.
São sete da manhã, véspera de Natal, minha cabeça dói, meu estômago está todo revirado, e sei que a noite de hoje será a mais importante para o restante de minha vida. É a minha chance de me encontrar novamente.
E isso me assusta.
Essa droga de vida, ela me atormenta, como essa mancha de mofo na parede, os odores desagradáveis do banheiro e a pia que continua intermitente, e esse meu inferno particular, tudo isso pode desaparecer, pode deixar de existir, se eu for capaz de me redimir. Se eu puder fazer as pazes comigo mesmo... Com o velho e bom Milton, aquele que realmente vale a pena salvar.
Aquele que merece uma segunda chance... Não... Aquele que jamais faria as idiotices em primeiro lugar.
Fecho os olhos pesadamente, como se fosse dormir. Sonolento. Cansado.
Espirro uma ou duas vezes. Minha cabeça arde.
Um pesadelo recorrente, um demônio familiar me fita os olhos. Ele ri. Ele diz da facilidade, da simplicidade, do quanto me faltava pouco. Desmaio, quase sem fôlego, quase sem forças, enquanto meus olhos se fecham pesadamente uma vez mais.
Acordo com a cabeça zonza, confuso do que me ocorrera, de como vim a chegar ao chão.
São quase sete e meia da manhã, o que mostra que será um longo dia.
Busco algum remédio em meio a minhas coisas, e encontro algo que, há algum tempo não via, e sou capaz de sorrir novamente. Aquela mãozinha minúscula perfeitamente moldada e representada pelo exame feito por Marina meses antes, e aquele rostinho mais lindo que ficavam o tempo todo em minha carteira e ainda assim eu tão pouco via.
“É por você que estou aqui, minha filha”, penso enquanto levo a foto próxima de meu peito, como se abraçasse minha pequenina e ainda não nascida filha. “E um dia você contará a história desse seu idiota de pai... Tente não me fazer pior do que realmente sou”.
***
Já é o quarto... Quinto cigarro...
Ele olha para dentro com mais consternação que gostaria de admitir, e, realmente, em momento algum o faz. Assim como em momento algum acende o cigarro, como fizera com os outros quatro. Os movimenta repetidamente, simulando o ato de fumar enquanto disfarçadamente olha para o telefone, vez sobre vez sobre vez, inquieto e pueril.
Sua família está toda reunida no salão de jantar, como já fizeram tantas e tantas vezes antes. A diferença desta vez é sua “um-dia-virá-a-ser” esposa está grávida. Seis protuberantes e impossíveis de se disfarçar meses, algo que está longe dos desejos dela. Seu orgulho materno a coloca resplandecente no centro da sala, sorrindo e expondo a quem quiser ver o habitat da primeira criança em tempos para aquela casa. Em seu estado, seu sorriso é capaz de derreter geleiras, e foi até capaz de reunir uma família distanciada pelo tempo, pelo individualismo moderno e por toda e qualquer outra justificativa vaga que possa explicar o afastamento daqueles, que, o motivo mais simples da distância, também é o mais verdadeiro. Mas é claro e evidente também que existe dúvida em seus olhos. Ela teme, por seu futuro, por sua criança... Por todas as coisas que aconteceram.
Ele vê, através de uma janela, observando do exterior da casa, toda a movimentação, toda a aglomeração ao redor dela. Aquela cena perfeita, tirada de um livro infantil, ou de uma história açucarada de Natal (convenientemente dada a época em questão), e, por um minuto ele sente e pensa em como tudo aquilo seria bobagem. Que ele estava levando as coisas fora de proporção demais. Que precisava de uma nova perspectiva. “Porque...”, ele pergunta, enquanto coloca o cigarro cuidadosamente entre os lábios, temendo que alguém o pudesse ver ali, e suspeitar de seu comportamento.
A pergunta nunca é completada em sua mente, quando a lágrima lhe corta a face. E ele sabe a resposta. É hora de assumir responsabilidades e crescer. Buscar ou retornar ao caminho correto.
Ele se sente mais isolado que antes. As coisas mudaram tanto e ainda assim parece que falta algo e lhe falta algo. O jantar segue, e seu isolamento continua, lhe afogando, comprimindo. Mesmo os líquidos descem difícil pela garganta. Pesados. Sua mente não está ali, e por um bom tempo não estará. Existe algo a se fazer, e até ser feito, seu corpo e mente estarão em lugares diferentes mesmo.
Saem, sem muito alarde ao final da ceia, as palavras fluem truncadas, com muito mais silêncio que som, até o momento em que a noite se encerra, com um beijo seco de boa noite, e cada um virado para um lado, para descansar.
Um dia horrível, toda aquela sensação horrível, estaria para terminar, pensava ele. Suas dúvidas vinham diminuindo e suas certezas aumentando. Só haviam algumas poucas coisas a fazer, alguns últimos ajustes para garantir que tudo possa terminar bem. Ele precisava atar os nós dos fios perdidos para que tudo se concentrasse e formasse um único tecido. E tudo começaria pela manhã.
***
Na manhã seguinte, logo que acordo vou até o cemitério.
Assim que entro, meu corpo parece se inflar de esperança, mesmo que seja um lugar tão depressivo como é, este local sempre me trouxe paz. Foi pra onde eu sempre vim quando precisava de asilo... Precisava ver um rosto familiar, mesmo que numa lápide, um rosto que não me julgaria, ou faria algum comentário maldoso, pesado. É um lugar lúgubre e pacífico, quase isolado do mundo moderno, mesmo que no coração dele. No horário do dia em que estou, quase não tem pessoas aqui, e o silêncio é uma benção. Nada aqui dentro é moderno ou tecnológico, e mesmo os costumes, são os mesmos preservados, validos e repetidos através dos séculos desde tempos imemoriais. Este é o destino final daqueles que andam pela terra, e onde um dia estaremos todos que hoje vivem e respiram. Ou de forma menos genérica, ao menos, uma vez que alguns seguem métodos menos ortodoxos de funerais. Mesmo que um tanto catastrófico, não chega a ser triste. Pra mim é um lembrete, do quanto a vida é importante e delicada... E pensando no contraste disso, na minha filhinha que em questão de meses estará em meus braços, só posso ver o quanto esta perspectiva faz mais sentido.
Meu pai sempre me olhava com o mesmo olhar compassivo e calmo, e isso sempre ajudou. Eu sempre consigo pensar melhor aqui, e este é o lugar de todos os lugares onde posso ser honesto, completamente honesto, comigo mesmo acima de tudo. Inibições e temores de ser franco demais não existem. Os falecidos não julgam ninguém. Eles somente olham compassivos e calmos da foto de suas lápides.
Existe um banco, bem em frente ao seu túmulo. Quando a conversa é mais longa eu me sento, e hoje é uma dessas. E não, não estou louco a ponto de ouvir a sua voz dizendo algo de volta. Estou bem ciente disso... Confesso que realmente sequer acredito que sua alma imortal, caso realmente exista, possa ficar vinculada a este lugar ou espaço, e já discuti vezes e mais vezes a filosofia e teologia toda da coisa. Algumas vezes o coração suplanta a lógica. Vincular este lugar a meu pai é mais fácil que acreditar que ele se foi para sempre, e acreditar que um dia eu poderei e irei revê-lo é mais confortável que crer que os poucos anos que ele esteve aqui ao meu lado foram tudo. Mesmo que quisesse, a memória não ajuda mais. Faz tanto tempo que ele se foi que lembrar de sua voz, de seus modos, dele mesmo como era... É difícil. E não importa. A lógica disso é o menos importante. Eu preciso falar um pouco mesmo, e preciso falar com alguém com paciência e todo o tempo para me ouvir e compreender meus dilemas.
E meu pai não vai a lugar algum.
***
Passo a tarde em casa, visito minha mãe. Também faz um bom tempo que não temos um tempo pra conversar, pra receber um pouco de mimo... Nos últimos meses, quando conversamos, ou ela me deu alguma bronca por minha indigna falta de maturidade, mas hoje enquanto peço alguns conselhos, pergunto algumas coisas sobre casamento e como criar crianças e sobre o quanto eu fui difícil quando menor (ao que ela diz que eu continuo difícil, e nós rimos um pouco, apesar de ser verdade), finalmente temos algum tempo de mãe-filho.
“Tolerância, meu filho, tolerância”. Ela diz, me encarando com aqueles olhos de mãe, gentis como nunca, quase lacrimosos. Ela sentiu minha falta, e o abraço carinhoso que ela me dá após isso deixa bastante evidente. É quando percebo o quanto me deixei envolver por problemas que não podia resolver, que eram maiores que a própria vida.
Ela prepara um almoço, como a tempos não tenho tempo de comer. Uma refeição incrível, e ela me faz, por algum tempo, me sentir como uma criancinha, curtindo o mimo e a atenção da mãe, que faz o mundo externo parecer nulo. E os problemas todos se esvaírem com o cheiro do prato de arroz, do sabor... Deus, como eu me sinto egoísta com tudo isso.
A única coisa que desejo neste momento, é que eu possa reverter os caminhos errados, e manter a coragem que está me livrando dos caminhos errados.
***
Ao voltar para casa, Milton percebe, com o primeiro olhar, que Marina estava preocupada, e, não só isso, furiosa. Seria uma noite longa. E começa com Milton fazendo de tudo para acalmá-la, explicando o que aconteceu, e porque eles precisavam conversar.
_ Precisamos começar de algum lugar, e, eu começo pedindo desculpas, e, esperando alguma complacência. Jogo-lhe a bandeira branca, e imploro que me oferte ao menos isso.
_ Você sabe que eu tenho motivos para estar brava, certo? Esses dois últimos dias foram bons, foram gostosos, me fizeram lembrar de quanto eu sempre gostei de sua companhia, e o quanto mais dói tudo isso.
_ Você não gosta mais de mim?
_ Queria que fosse tão fácil...
Ficamos em silêncio um minuto, ela fica sentada na cama, paciente, sem me olhar, cabisbaixa. Eu puxo um banquinho, e me sento em frente dela, seguro sua mão esquerda, em forma de concha, e, por alguns minutos ficamos assim.
Até que ela quebra o silêncio, me devolvendo a pergunta: “E você, ainda gosta de mim?”.
_ Eu fui um grande babaca, e, sempre que precisar falar sobre o assunto, vou ser o primeiro a admitir isso. Não nego, Marina, não nego mesmo, que fui um idiota... Querendo jogar a culpa em uma situação impossível que foi me consumindo, absorvendo e demandando cada vez mais e mais... Me assustando e me afastando de você, e até me fazendo temer sobre a nossa situação, sobre essa vida de casado, essa vida pra qual estamos nos encaminhando, com a filha por nascer e... Nossa rotina... E, sei lá... De todas as coisas, eu senti que eu estava atrapalhando seu caminho...
Que eu não sou bom o suficiente, e nem seria bom o suficiente pra cuidar de nossa filha, que não seria um bom exemplo...
Ela chora um pouco, cobre os olhos, se sente um pouco culpada pelo que vai fazer, mas longe de achar que isso responda a angústia que veio sofrendo... Que veio sentindo nos últimos meses, e mesmo todas as dúvidas e aqueles sentimentos ruins lhe consumindo e... Todas as dúvidas.
_ E isso quer dizer o que? Que gosta de mim ou não?
_ Continuo te querendo como nunca. Quero você em minha vida, você e nossa filha.
Ela olha para mim, pela primeira vez, chorosa, e com um tom de fúria ainda.
_ Você se lembra de uma noite em que estive com você no hospital? - ela faz que não com a cabeça, do que sei, ela pouco se lembra desse período – Sabe que não sou religioso... Não sou homem de rezar, de... – agora eu começo a chorar, lembrando da noite em questão – Mas eu pedi, pedi com toda a fé... Toda a esperança que carrego em meu coração... Implorei, que nada de grave lhe acontecesse, ou a nossa filha – aperto sua mão mais forte, e choro com mais intensidade, viro meu rosto, e sinto minha garganta se fechando, trancando – Não... Implorei... Supliquei... Exigi que, se alguém ali naquele quarto tinha que partir... Que fosse eu.
Acho que foi isso que foi me afastando de você...
_ Não – ela diz seca. Ríspida.
_Não?
_ Não. Não me venha com isso... Não venha querendo culpar ninguém... Não venha querer dizer que...
_ Desculpe... Eu sei... Os últimos meses foram estranhos... Ruins mesmo. E tudo que eu possa dizer... Todas as coisas, nada vai justificar, nada vai fazer com que fique melhor, acerte ou...
Tive medo que você fosse me abandonar, ou que estivesse se aproximando de outro... Mas acima de tudo, quando você foi internada... Eu temi demais que aquilo fosse o fim. Eu fiquei pensando... Temendo que você realmente não estivesse mais aqui, ou que, caso voltasse, não quisesse mais ficar comigo. E essa idéia me assustou. Me assustou pra caramba. E é por isso que eu vim agindo como um babaca, que fugi pro mundo... Que...  Que fiz o que fiz.
Eu não posso justificar todos os erros cometidos, e não existe coisa que eu possa dizer, ou mesmo fazer... Achando que você merecia algo melhor.

Olha... Eu sei que é uma justificativa barata, que é algo fútil e vão culpar... Usar um bode expiatório até... Mas a verdade é que eu mudei, e mudei bastante durante esse tempo todo que estivemos juntos. Mudei pra pior, em muitos aspectos de minha vida, conforme avançava em direção ao abismo, me tornando cada vez mais parecido aos monstros que eu jurava querer ver o fim, que eu questionava e... Todos aqueles preguiçosos e vagabundos de altos escalões, em ternos engomados, cuja parte de cima passava e passa mais tempo no escritório que eles próprios. E eu fui entrando num ciclo vicioso e cada vez mais seguindo em direção a este caminho.
Só acordei dessa agonia quando você anunciou que estava grávida, e foi quando eu comecei a repensar minha vida, nossa vida... O que cada coisa e cada pequena coisa significava. E cada coisa absurda e grande também. Quando você quase perdeu a pequenina... Eu acabei perdendo um pouco o eixo, mas cada vez mais fazia sentido que mudanças deveriam ocorrer. Que era hora de buscar um novo rumo.
Precisei voltar a ser um idiota pueril para finalmente amadurecer, e acho agora que sou um homem sério, comprometido com um propósito maior na universidade...
Ajoelhado perante Marina, seguro com uma de suas mãos às duas dela, posicionadas sobre o colo, enquanto com a outra alisa o rosto, tirando o cabelo que insistia em lhe cobrir ao tempo que enxuga algumas lágrimas.
_ E querendo me comprometer a algo maior com você...
Ela nada diz, engole o choro seco, sente que deveria demonstrar alguma raiva ou indignação ou temperança, mas, honestamente, seu coração não consegue se manifestar, em nenhum sentido. E é verdade que foi de longe um pedido bem medíocre de casamento, num momento bastante inoportuno.
_ E como nós ficamos?
_ Essa é uma decisão sua, Marina... Eu quero fazer parte da vida de nossa filha... Eu quero fazer parte de sua vida. E quero você em minha vida, Marina. Quero que passemos a ser uma família de verdade, numa casa nossa... Só nossa. Feita e projetada pela melhor arquiteta que conheço, e bancada pelo que de lucro que pude juntar com investimentos – somando ao apartamento e alguns outros trocos que receberei de minha saída do banco, de rescisórios e outras verbas. É pouco o que estou oferecendo, mas as coisas vão mudar... Eu acertei minha situação com um emprego que vai me oferecer mais tempo, que vai me dar maior disponibilidade para cuidar de você, da pequenina... Mas a decisão final é sua.
Se você vai me aceitar, se vamos ficar juntos todo o tempo, ou ter a custódia da menina dividida, ou... Enfim... É sua decisão, e, eu vou respeitar.
Por mais que me doa.

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