Enclausurado.
Deprimido.
Indisposto.
Olho
meus olhos e vejo apenas um vazio. Olho ao redor e não vejo nada.
Essas
coisas são minhas, não esse lugar. Sinto um grito, um urro no fundo de minha
garganta, mas não tenho sequer a vontade de libertá-lo.
São
sete da manhã, véspera de Natal, minha cabeça dói, meu estômago está todo
revirado, e sei que a noite de hoje será a mais importante para o restante de
minha vida. É a minha chance de me encontrar novamente.
E
isso me assusta.
Essa
droga de vida, ela me atormenta, como essa mancha de mofo na parede, os odores
desagradáveis do banheiro e a pia que continua intermitente, e esse meu inferno
particular, tudo isso pode desaparecer, pode deixar de existir, se eu for capaz
de me redimir. Se eu puder fazer as pazes comigo mesmo... Com o velho e bom
Milton, aquele que realmente vale a pena salvar.
Aquele
que merece uma segunda chance... Não... Aquele que jamais faria as idiotices em
primeiro lugar.
Fecho
os olhos pesadamente, como se fosse dormir. Sonolento. Cansado.
Espirro
uma ou duas vezes. Minha cabeça arde.
Um
pesadelo recorrente, um demônio familiar me fita os olhos. Ele ri. Ele diz da
facilidade, da simplicidade, do quanto me faltava pouco. Desmaio, quase sem
fôlego, quase sem forças, enquanto meus olhos se fecham pesadamente uma vez
mais.
Acordo
com a cabeça zonza, confuso do que me ocorrera, de como vim a chegar ao chão.
São
quase sete e meia da manhã, o que mostra que será um longo dia.
Busco
algum remédio em meio a minhas coisas, e encontro algo que, há algum tempo não
via, e sou capaz de sorrir novamente. Aquela mãozinha minúscula perfeitamente
moldada e representada pelo exame feito por Marina meses antes, e aquele
rostinho mais lindo que ficavam o tempo todo em minha carteira e ainda assim eu
tão pouco via.
“É
por você que estou aqui, minha filha”, penso enquanto levo a foto próxima de
meu peito, como se abraçasse minha pequenina e ainda não nascida filha. “E um
dia você contará a história desse seu idiota de pai... Tente não me fazer pior
do que realmente sou”.
***
Já
é o quarto... Quinto cigarro...
Ele
olha para dentro com mais consternação que gostaria de admitir, e, realmente,
em momento algum o faz. Assim como em momento algum acende o cigarro, como
fizera com os outros quatro. Os movimenta repetidamente, simulando o ato de
fumar enquanto disfarçadamente olha para o telefone, vez sobre vez sobre vez, inquieto
e pueril.
Sua
família está toda reunida no salão de jantar, como já fizeram tantas e tantas
vezes antes. A diferença desta vez é sua “um-dia-virá-a-ser” esposa está
grávida. Seis protuberantes e impossíveis de se disfarçar meses, algo que está
longe dos desejos dela. Seu orgulho materno a coloca resplandecente no centro
da sala, sorrindo e expondo a quem quiser ver o habitat da primeira criança em
tempos para aquela casa. Em seu estado, seu sorriso é capaz de derreter
geleiras, e foi até capaz de reunir uma família distanciada pelo tempo, pelo
individualismo moderno e por toda e qualquer outra justificativa vaga que possa
explicar o afastamento daqueles, que, o motivo mais simples da distância,
também é o mais verdadeiro. Mas é claro e evidente também que existe dúvida em
seus olhos. Ela teme, por seu futuro, por sua criança... Por todas as coisas
que aconteceram.
Ele
vê, através de uma janela, observando do exterior da casa, toda a movimentação,
toda a aglomeração ao redor dela. Aquela cena perfeita, tirada de um livro
infantil, ou de uma história açucarada de Natal (convenientemente dada a época
em questão), e, por um minuto ele sente e pensa em como tudo aquilo seria
bobagem. Que ele estava levando as coisas fora de proporção demais. Que
precisava de uma nova perspectiva. “Porque...”, ele pergunta, enquanto coloca o
cigarro cuidadosamente entre os lábios, temendo que alguém o pudesse ver ali, e
suspeitar de seu comportamento.
A
pergunta nunca é completada em sua mente, quando a lágrima lhe corta a face. E
ele sabe a resposta. É hora de assumir responsabilidades e crescer. Buscar ou
retornar ao caminho correto.
Ele
se sente mais isolado que antes. As coisas mudaram tanto e ainda assim parece
que falta algo e lhe falta algo. O jantar segue, e seu isolamento continua, lhe
afogando, comprimindo. Mesmo os líquidos descem difícil pela garganta. Pesados.
Sua mente não está ali, e por um bom tempo não estará. Existe algo a se fazer,
e até ser feito, seu corpo e mente estarão em lugares diferentes mesmo.
Saem,
sem muito alarde ao final da ceia, as palavras fluem truncadas, com muito mais
silêncio que som, até o momento em que a noite se encerra, com um beijo seco de
boa noite, e cada um virado para um lado, para descansar.
Um
dia horrível, toda aquela sensação horrível, estaria para terminar, pensava
ele. Suas dúvidas vinham diminuindo e suas certezas aumentando. Só haviam
algumas poucas coisas a fazer, alguns últimos ajustes para garantir que tudo
possa terminar bem. Ele precisava atar os nós dos fios perdidos para que tudo
se concentrasse e formasse um único tecido. E tudo começaria pela manhã.
***
Na
manhã seguinte, logo que acordo vou até o cemitério.
Assim
que entro, meu corpo parece se inflar de esperança, mesmo que seja um lugar tão
depressivo como é, este local sempre me trouxe paz. Foi pra onde eu sempre vim
quando precisava de asilo... Precisava ver um rosto familiar, mesmo que numa
lápide, um rosto que não me julgaria, ou faria algum comentário maldoso,
pesado. É um lugar lúgubre e pacífico, quase isolado do mundo moderno, mesmo
que no coração dele. No horário do dia em que estou, quase não tem pessoas
aqui, e o silêncio é uma benção. Nada aqui dentro é moderno ou tecnológico, e
mesmo os costumes, são os mesmos preservados, validos e repetidos através dos
séculos desde tempos imemoriais. Este é o destino final daqueles que andam pela
terra, e onde um dia estaremos todos que hoje vivem e respiram. Ou de forma
menos genérica, ao menos, uma vez que alguns seguem métodos menos ortodoxos de
funerais. Mesmo que um tanto catastrófico, não chega a ser triste. Pra mim é um
lembrete, do quanto a vida é importante e delicada... E pensando no contraste
disso, na minha filhinha que em questão de meses estará em meus braços, só
posso ver o quanto esta perspectiva faz mais sentido.
Meu
pai sempre me olhava com o mesmo olhar compassivo e calmo, e isso sempre
ajudou. Eu sempre consigo pensar melhor aqui, e este é o lugar de todos os
lugares onde posso ser honesto, completamente honesto, comigo mesmo acima de
tudo. Inibições e temores de ser franco demais não existem. Os falecidos não
julgam ninguém. Eles somente olham compassivos e calmos da foto de suas
lápides.
Existe
um banco, bem em frente ao seu túmulo. Quando a conversa é mais longa eu me
sento, e hoje é uma dessas. E não, não estou louco a ponto de ouvir a sua voz
dizendo algo de volta. Estou bem ciente disso... Confesso que realmente sequer
acredito que sua alma imortal, caso realmente exista, possa ficar vinculada a
este lugar ou espaço, e já discuti vezes e mais vezes a filosofia e teologia
toda da coisa. Algumas vezes o coração suplanta a lógica. Vincular este lugar a
meu pai é mais fácil que acreditar que ele se foi para sempre, e acreditar que
um dia eu poderei e irei revê-lo é mais confortável que crer que os poucos anos
que ele esteve aqui ao meu lado foram tudo. Mesmo que quisesse, a memória não
ajuda mais. Faz tanto tempo que ele se foi que lembrar de sua voz, de seus
modos, dele mesmo como era... É difícil. E não importa. A lógica disso é o
menos importante. Eu preciso falar um pouco mesmo, e preciso falar com alguém
com paciência e todo o tempo para me ouvir e compreender meus dilemas.
E
meu pai não vai a lugar algum.
***
Passo
a tarde em casa, visito minha mãe. Também faz um bom tempo que não temos um tempo
pra conversar, pra receber um pouco de mimo... Nos últimos meses, quando
conversamos, ou ela me deu alguma bronca por minha indigna falta de maturidade,
mas hoje enquanto peço alguns conselhos, pergunto algumas coisas sobre
casamento e como criar crianças e sobre o quanto eu fui difícil quando menor
(ao que ela diz que eu continuo difícil, e nós rimos um pouco, apesar de ser
verdade), finalmente temos algum tempo de mãe-filho.
“Tolerância,
meu filho, tolerância”. Ela diz, me encarando com aqueles olhos de mãe, gentis
como nunca, quase lacrimosos. Ela sentiu minha falta, e o abraço carinhoso que
ela me dá após isso deixa bastante evidente. É quando percebo o quanto me
deixei envolver por problemas que não podia resolver, que eram maiores que a
própria vida.
Ela
prepara um almoço, como a tempos não tenho tempo de comer. Uma refeição
incrível, e ela me faz, por algum tempo, me sentir como uma criancinha,
curtindo o mimo e a atenção da mãe, que faz o mundo externo parecer nulo. E os
problemas todos se esvaírem com o cheiro do prato de arroz, do sabor... Deus,
como eu me sinto egoísta com tudo isso.
A
única coisa que desejo neste momento, é que eu possa reverter os caminhos
errados, e manter a coragem que está me livrando dos caminhos errados.
***
Ao
voltar para casa, Milton percebe, com o primeiro olhar, que Marina estava
preocupada, e, não só isso, furiosa. Seria uma noite longa. E começa com Milton
fazendo de tudo para acalmá-la, explicando o que aconteceu, e porque eles
precisavam conversar.
_
Precisamos começar de algum lugar, e, eu começo pedindo desculpas, e, esperando
alguma complacência. Jogo-lhe a bandeira branca, e imploro que me oferte ao
menos isso.
_
Você sabe que eu tenho motivos para estar brava, certo? Esses dois últimos dias
foram bons, foram gostosos, me fizeram lembrar de quanto eu sempre gostei de
sua companhia, e o quanto mais dói tudo isso.
_
Você não gosta mais de mim?
_
Queria que fosse tão fácil...
Ficamos
em silêncio um minuto, ela fica sentada na cama, paciente, sem me olhar,
cabisbaixa. Eu puxo um banquinho, e me sento em frente dela, seguro sua mão
esquerda, em forma de concha, e, por alguns minutos ficamos assim.
Até
que ela quebra o silêncio, me devolvendo a pergunta: “E você, ainda gosta de
mim?”.
_
Eu fui um grande babaca, e, sempre que precisar falar sobre o assunto, vou ser
o primeiro a admitir isso. Não nego, Marina, não nego mesmo, que fui um
idiota... Querendo jogar a culpa em uma situação impossível que foi me
consumindo, absorvendo e demandando cada vez mais e mais... Me assustando e me
afastando de você, e até me fazendo temer sobre a nossa situação, sobre essa
vida de casado, essa vida pra qual estamos nos encaminhando, com a filha por
nascer e... Nossa rotina... E, sei lá... De todas as coisas, eu senti que eu
estava atrapalhando seu caminho...
Que
eu não sou bom o suficiente, e nem seria bom o suficiente pra cuidar de nossa
filha, que não seria um bom exemplo...
Ela
chora um pouco, cobre os olhos, se sente um pouco culpada pelo que vai fazer,
mas longe de achar que isso responda a angústia que veio sofrendo... Que veio
sentindo nos últimos meses, e mesmo todas as dúvidas e aqueles sentimentos
ruins lhe consumindo e... Todas as dúvidas.
_
E isso quer dizer o que? Que gosta de mim ou não?
_
Continuo te querendo como nunca. Quero você em minha vida, você e nossa filha.
Ela
olha para mim, pela primeira vez, chorosa, e com um tom de fúria ainda.
_
Você se lembra de uma noite em que estive com você no hospital? - ela faz que
não com a cabeça, do que sei, ela pouco se lembra desse período – Sabe que não
sou religioso... Não sou homem de rezar, de... – agora eu começo a chorar,
lembrando da noite em questão – Mas eu pedi, pedi com toda a fé... Toda a
esperança que carrego em meu coração... Implorei, que nada de grave lhe
acontecesse, ou a nossa filha – aperto sua mão mais forte, e choro com mais
intensidade, viro meu rosto, e sinto minha garganta se fechando, trancando –
Não... Implorei... Supliquei... Exigi que, se alguém ali naquele quarto tinha
que partir... Que fosse eu.
Acho
que foi isso que foi me afastando de você...
_
Não – ela diz seca. Ríspida.
_Não?
_
Não. Não me venha com isso... Não venha querendo culpar ninguém... Não venha
querer dizer que...
_
Desculpe... Eu sei... Os últimos meses foram estranhos... Ruins mesmo. E tudo
que eu possa dizer... Todas as coisas, nada vai justificar, nada vai fazer com
que fique melhor, acerte ou...
Tive
medo que você fosse me abandonar, ou que estivesse se aproximando de outro...
Mas acima de tudo, quando você foi internada... Eu temi demais que aquilo fosse
o fim. Eu fiquei pensando... Temendo que você realmente não estivesse mais
aqui, ou que, caso voltasse, não quisesse mais ficar comigo. E essa idéia me
assustou. Me assustou pra caramba. E é por isso que eu vim agindo como um
babaca, que fugi pro mundo... Que... Que
fiz o que fiz.
Eu
não posso justificar todos os erros cometidos, e não existe coisa que eu possa
dizer, ou mesmo fazer... Achando que você merecia algo melhor.
Olha...
Eu sei que é uma justificativa barata, que é algo fútil e vão culpar... Usar um
bode expiatório até... Mas a verdade é que eu mudei, e mudei bastante durante
esse tempo todo que estivemos juntos. Mudei pra pior, em muitos aspectos de
minha vida, conforme avançava em direção ao abismo, me tornando cada vez mais parecido
aos monstros que eu jurava querer ver o fim, que eu questionava e... Todos
aqueles preguiçosos e vagabundos de altos escalões, em ternos engomados, cuja
parte de cima passava e passa mais tempo no escritório que eles próprios. E eu
fui entrando num ciclo vicioso e cada vez mais seguindo em direção a este
caminho.
Só
acordei dessa agonia quando você anunciou que estava grávida, e foi quando eu
comecei a repensar minha vida, nossa vida... O que cada coisa e cada pequena
coisa significava. E cada coisa absurda e grande também. Quando você quase
perdeu a pequenina... Eu acabei perdendo um pouco o eixo, mas cada vez mais
fazia sentido que mudanças deveriam ocorrer. Que era hora de buscar um novo
rumo.
Precisei
voltar a ser um idiota pueril para finalmente amadurecer, e acho agora que sou
um homem sério, comprometido com um propósito maior na universidade...
Ajoelhado
perante Marina, seguro com uma de suas mãos às duas dela, posicionadas sobre o
colo, enquanto com a outra alisa o rosto, tirando o cabelo que insistia em lhe
cobrir ao tempo que enxuga algumas lágrimas.
_
E querendo me comprometer a algo maior com você...
Ela nada diz, engole o choro seco, sente que deveria demonstrar alguma raiva ou indignação ou temperança, mas, honestamente, seu coração não consegue se manifestar, em nenhum sentido. E é verdade que foi de longe um pedido bem medíocre de casamento, num momento bastante inoportuno.
Ela nada diz, engole o choro seco, sente que deveria demonstrar alguma raiva ou indignação ou temperança, mas, honestamente, seu coração não consegue se manifestar, em nenhum sentido. E é verdade que foi de longe um pedido bem medíocre de casamento, num momento bastante inoportuno.
_
E como nós ficamos?
_
Essa é uma decisão sua, Marina... Eu quero fazer parte da vida de nossa
filha... Eu quero fazer parte de sua vida. E quero você em minha vida, Marina.
Quero que passemos a ser uma família de verdade, numa casa nossa... Só nossa.
Feita e projetada pela melhor arquiteta que conheço, e bancada pelo que de
lucro que pude juntar com investimentos – somando ao apartamento e alguns
outros trocos que receberei de minha saída do banco, de rescisórios e outras
verbas. É pouco o que estou oferecendo, mas as coisas vão mudar... Eu acertei
minha situação com um emprego que vai me oferecer mais tempo, que vai me dar
maior disponibilidade para cuidar de você, da pequenina... Mas a decisão final
é sua.
Se
você vai me aceitar, se vamos ficar juntos todo o tempo, ou ter a custódia da
menina dividida, ou... Enfim... É sua decisão, e, eu vou respeitar.
Por
mais que me doa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário