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28 de agosto de 2013

Ato 2 - A crise de identidade (parte 4)


Resolvo, finalmente, visitar Virgilio na clínica, e, peço um fim-de-semana de folga para Marina, que fica sob os cuidados de minha mãe e minha sogra, além das duas outras enfermeiras que, por um pequeno bônus, topam trabalhar dois dias extras na semana.
Por um motivo que, eu não consigo explicar, acabo aceitando a companhia de Verônica nessa viagem e, posteriormente também ficaremos na mesma pensão – porém em quartos separados. Não acho que prestaria se estivéssemos ainda mais juntos nestas duas noites, de sexta e sábado, apesar de já não achar que a viagem como um todo vá prestar. Ela me atiça, mesmo sem querer, ao ajustar os óculos escuros, ao balançar os cabelos, ao mover a mão pelo pescoço... Eu fico olhando através do retrovisor interno, torcendo para não fazer algo ainda mais estúpido do que já estou fazendo. Às vezes me pergunto se conseguiria.
A viagem é longa, e acabamos parando algumas vezes em postos de gasolina para ir ao banheiro, ou somente para ficar alguns minutinhos em pé, tomar um cafezinho ou uma água ao menos. Em cada decida do carro, surge um silêncio e momento desconfortável. Fico sentindo que deveria fazer algo... Não sei, abrir a porta pra ela, pegar sua mão ou... Que tipo de idiotice estou fazendo? E são mais quase duas horas só para chegar à pensão. É uma longa viagem, e minha mente permeia caminhos que não deveria ousar. Sou um grande babaca, e parece que pensar nisso me faz querer ainda mais. E me faz pensar o que existe de errado comigo, porque estou buscando um caminho que não é o meu, que não me pertence, negligenciando a quem me quer bem... Quem precisa de mim, mais que nunca... Quando entro no quarto, e me vejo diante do espelho do banheiro, sinto uma vontade de gritar, de simplesmente voltar para casa, como se nada disso estivesse acontecendo ou acontecido. Por um instante, mal reconheço meu próprio reflexo.
Tomo um longo banho, e reflito bastante sobre o que estou fazendo, e porque estou aqui. Eu preciso conversar com alguém... Um bom amigo... Eu preciso de um pouco de ajuda, e é isso que vim buscar aqui na clínica. Só isso... Pura e somente isso.
A noite é longa e intempestiva. Acabo bebendo um bocado para tentar obter algum conforto, sendo que tudo que consigo é uma colossal dor de cabeça e só noto a ausência da Verônica pela manhã seguinte, quando vejo um bilhete seu, dizendo que eu não deveria esperá-la, ou acordá-la para minha visita. É a melhor idéia que ouço desde que a sexta feira terminou.
Não me lembro de ter comentado algo sobre a clínica, mesmo em minha primeira visita ou de minhas primeiras impressões, mas é um lugar imensamente lindo. Verde, cheio de árvores para todo lugar que se olhe, amplo e fresco, com um clima de sítio, chácara ou fazenda antiga, inclusive em um prédio inteiramente feito com estruturas de barro e moldes coloniais. Um verdadeiro mimo. Um lugar incrivelmente lindo e relaxante.
Tudo que uma pessoa enfrentando uma crise precisa para se reencontrar.
Parece até conveniente...
Quando chego a Virgílio, tenho de aguardar alguns minutos, devido a uma reunião em grupo ou algo parecido ocorrendo nas imediações, e da qual ele está fazendo parte. Eu fico em uma sala de espera, com uma mesa de canto cheia de revistas antigas e, com a coisa mais atualizada um jornal do dia, de um município que fica a quase duzentos quilômetros daqui, curiosamente.
Folheio por alguns instantes, e, depois de vinte minutos esperando pelo fim da reunião, vejo que estou tão entediado quanto humanamente possível. Começo a brincar com o telefone, jogando paciência ou algum joguinho igualmente com o propósito de distrair. E continuo com isso por quase mais meia hora. Uma hora de espera se passa, e é quando me dizem que posso entrar.
O ambiente é esquisito. Ruim, eu enfatizaria.
Ao contrário de tudo que vi até agora, é fechado, opressivo, com um odor peculiar e desagradável – quase de hospital – e cores frias estampando as paredes, inexpressivas.
Sentado diante de Virgílio em uma mesinha no refeitório, levo os documentos e livros que estava devendo a ele, e, ficamos em um longo silêncio, até que resolvo perguntar:
_ E como vão as coisas? Já se sente melhor... Quer dizer, pronto pra voltar e...
E é quando começamos um segundo longo silêncio. Dessa vez realmente constrangedor, enquanto ele olha para os papéis, documentos e livros, quase que ignorando minha presença.
_ Eu tenho andado bem mal das pernas,meu amigo... Desde que a Marina teve seu acidente, minha vida... Quer dizer eu...
_ Eu, eu, eu, eu! Sempre o umbigo do universo, não, senhor Milton Oliveira Santos? Sempre tudo tem de ser sobre como as coisas afetam sua merda de vidinha suburbana perfeita! Claro, sempre tem de ser!
Virgílio grita, transtornado, furioso. Parece que vai me atingir com alguma coisa enquanto anda para frente e para trás. Ele realmente não parece melhor que quando veio.
_ Houve um tempo que eu achei que você fosse meu amigo, meu caro. Que estivesse realmente preocupado, que quisesse saber o que realmente eu sinto ou senti... Quer dizer, faz quase um mês que eu estou aqui e é a primeira vez que você vem me visitar! UM MÊS!
_ Ei, não é bem assim... As coisas...
_ As coisas, as coisas! Bah! Bosta nenhuma! Você usa “as coisas” como muleta, como justificativa para moldar e ver o mundo da forma que melhor lhe couber. Sua mulher ficou doente? Então isso é motivo para que eu negligencie meu amigo... Seu time perdeu um jogo? Então porque não ignorar que alguém morreu diante de um estádio e não correr dar uma rapidinha, não é mesmo?
_Ei! Olha aqui... – Eu me levanto para reagir, já furioso, quando sou surpreendido, uma vez mais, por um tom ainda mais raivoso.
_ OLHA AQUI PORRA NENHUMA! Você não consegue se importar com ninguém, Milton, e por isso manipula e usa as pessoas ao seu redor para conseguir o que quer. E é por isso que você precisa de mim, porque eu ao contrário de você me importo, e contrabalanceio isso. E contrabalanceio tanto que acabo relegado, inútil quando as coisas andam bem, deixado pra apodrecer com meus livros e teses e todas as coisas que você sequer se importa em fingir interesse, a menos que te ajude a conseguir uma garota ou uma refeição grátis ou algo do tipo, não é mesmo?
Aposto alto que sequer folheou minha versão inicial de minha tese.
(Ele ganharia essa aposta, e é o que me faz sentir ainda pior. Olho pro vazio, pensando em fazer algo, em dizer algo, mas não passa nada por minha mente. Nada produtivo ou útil).
_ Você é patético.
Não... Não, eu sou patético. EU.
Achando que poderia ter alguma importância para vossa excelência e magnanimissência senhor Milton Oliveira Santos! Quanta petulância a minha.
Ele sai dali, falando pelos corredores enquanto carrega seus livros. Eu, por outro lado, fico sentado, olhando para o vazio, com aquele barulho todo ecoando por minha mente por um bom tempo. Me pego chorando, parte furioso, com vontade de arrancar a cabeça de Virgílio e chutá-la como uma bola de futebol, parte envergonhado e entristecido com o que ele disse. Tantas coisas que eu realmente sequer cogitei em minha vida.
Uma enfermeira se aproxima, algum tempo depois, e começa a me explicar a condição toda. Na ausência de família próxima, eu sou o contato mais próximo, e ela me atualiza da situação. É realmente preocupante, e mostra bastante o quanto ele estava certo. Eu não fui um bom amigo. Eu fui um bosta. Deveria estar ali, ao lado dele, presente, ajudando e me envolvendo... Fazendo com que...
Depois de ouvir tudo, finalmente caio diante do fato que, depois de tanto tempo achando que conheço uma pessoa, não fazia idéia dos demônios que ela carrega... E o quanto eles estão a consumi-la. Fico por um bom tempo parado, atônito, sem reação. Acabo perdendo a noção do tempo. Realmente o restante do dia e deste fim de semana passa como um clarão.
Tudo que consigo lembrar é de estar chorando em meu quarto na pensão, por um bom tempo, chegando até a soluçar. Verônica chega, e me oferece um ombro amigo, me conforta e pede delicadamente para ouvir minha história. Ela diz que imaginava que seria ruim, mas não tanto. Ficamos por um bom tempo deitados, eu, em posição fetal entre seu ventre, e ela me abraçando, alisando meus cabelos delicadamente.
Acontece tão rápido, e quando percebo já é um novo dia, e, com ele vem a estrada e a volta.
E na volta, recebo a notícia de que Marina teve novas complicações, e está hospitalizada novamente. Talvez ela não sobreviva, e nem o bebê.
Peço um dia de folga, na segunda, depois de uma noite em claro no hospital, e sonho com um novo dia. Acordo com uma decisão tomada: Preciso visitar meu pai.
***
De todas as pessoas neste mundo, dispostas e capazes de me apoiar, com toda a certeza meu pai é o maior exemplo dentre elas. Esteve diante de mim em todos os momentos decisivos, em todos os momentos de calmaria ou de atribulações. Foi a primeira pessoa pra quem mostrei meu trabalho de conclusão, e posteriormente meu diploma. Ficamos horas conversando sobre o mérito de concluir o ensino superior, sobre como todo um mundo se abria diante de mim e todas as responsabilidades e exigências da vida adulta que começavam.
Foi com ele que falei primeiro sobre meu primeiro emprego, sobre minha efetivação e, bem, sobre um bocado de outras grandes conquistas de minha vida. E então o releguei... Mais ou menos na época que as coisas foram ficando mais sérias com Marina. Sequer vim aqui para mostrar a foto de nossa pequena da ultrassonografia... Aquela que todo pai babão carrega na carteira, e os mais relapsos até esquecem de olhá-la de vez em quando. Eu, pior ainda, esqueci de mostrá-la para meu pai.
Tem tanto tempo que não venho que acabo até esquecendo como fazer isso... Fico meio sem jeito, não sei o que dizer... A melhor maneira para começar. Digo um “Ei, faz um bom tempo, não é?”, sem muita empolgação ou expectativa. Ele fica ali, olhando para mim, com seus olhos calmos e silenciosos. Grande homem.
Conversar com ele sempre me traz paz. Não importa o motivo da conversa, e é por esse exato motivo que faço essa procissão.
“Preciso de um conselho... Não... Eu preciso de força, pai. Nunca estive tão desesperado, tão perdido como agora, e acredito que só o senhor possa me ajudar. Só o senhor pode... Desculpe, não é verdade.
A verdade é que eu não tenho mais a quem recorrer. Eu abandonei meu melhor amigo, e abandonei também minha esposa... E cai num vício... Num círculo vicioso de estupidez e idiotice, sempre um passo diante para realizar a próxima. Continuar numa empresa que não me quer mais e que nunca foi o que eu realmente quis fazer de minha vida... Afastar tanta gente de minha vida nesse processo da promoção, mudando para um lugar maior, uma casa maior e mais vazia... Tanta gente que deixei pra trás.
Inclusive o senhor.
E é por isso que começo, explicando a verdade, como o senhor sempre me ensinou, que ela é capaz de libertar, e abrir o caminho para a solução.”
A tarde é fria e venta muito, bastante atípica para os meados de novembro. Nada sinto. Tenho coisas maiores passando por minha mente, e isso me mantém focado. Concentrado.
O próximo passo é incerto, e assim chega a noite, quando retorno para o hospital.
***
O dia seguinte (como é de se esperar, quase uma constante) é um tanto conturbado. Muita agitação, alguns manifestos por parte de funcionários do banco, principalmente os mais antigos, com mais tempo de casa, que ainda lhes faltavam alguns anos para a aposentadoria, e agências inteiras sem trabalhar, aguardando palavras do presidente ou de algum outro representante. Para minha surpresa, quando chego ao serviço, o presidente havia se demitido horas antes, sem causar alvoroço ou chamar qualquer destaque, como forma de acordo estabelecido com a matriz do Swann’s. Ele receberia uma verba compensatória e, discretamente, se retiraria dando vazão para um próximo escolhido, desta feita já selecionado pelos dirigentes internacionais. Até segunda ordem, portanto, o vice-presidente, e meu amigo, Fausto, seria o responsável por toda aquela lambança. Ele me diz isso pessoalmente, coisa que descobrira durante a madrugada com um recado do presidente anterior em seu celular, por volta das três e trinta, dizendo algo como “Passando a bola, aproveite e boa sorte”. Como sempre motivador.
Fausto, como deveria se esperar, estava desesperado. Tinha de conter toda aquela confusão e tentar apaziguar os ânimos de todos os funcionários grevistas, além de cobrar deles a colaboração neste momento, sem poder oferecer qualquer garantia, e foi o que ele me pediu, adicionando: “Amigo, eu preciso de uma forma direta e simples pra dizer isso”.
“E rápido”, emendou.
Não pensei muito para responder, e até acredito que se o fizesse, minha sugestão seria bem pior. Disse a ele que o melhor, numa situação dessas, era ser franco, integralmente franco. A diretoria poderia não gostar e demiti-lo? Bem, a diretoria já estava pensando em demiti-lo, como anunciaram na reunião de acionistas, e, novamente na reunião com todos os funcionários departamentais menos de uma semana atrás, assim como todos os demais do alto escalão.
Talvez também não apaziguaria por completo os ânimos. Até parece bastante claro que não apaziguaria mesmo, uma vez que as pessoas estão assustadas e preocupadas, e, parte de seus medos só se confirmaria com a declaração de Fausto. Mas elas saberiam o que esperar, e poderiam se preparar para isso.
O importante naquele momento era reduzir o caos, e, com algumas ligações de última hora, Fausto agendou uma reunião com os principais representantes sindicais, dirigentes de agências de grande porte e, demais funcionários interessados nas instalações de nosso prédio, por volta do meio dia. A conversa seria retransmitida para as demais e mais distantes agências, e, caso isso fosse impossível, o conteúdo também estaria disponível como texto, alguns minutos após o fim dessa reunião de emergência.
E deu certo. Por volta das duas, nenhuma informação sobre novos protestos ou manifestações se fez. As pessoas passaram, em contrário, a enviar mensagens de solidariedade a Fausto e outros membros departamentais, correndo muito mais risco de demissão que os demais colegas. Por volta das quatro, Fausto aparece em minha sala com uma garrafa de champagne, que sempre guardou em sua sala, mais como um ornamento que qualquer outra coisa.
“Genial, Miltinho! Genial!” – disse enquanto entrava, abrindo a garrafa.
Conversamos por alguns minutos, falo sobre Marina, sobre minhas preocupações, e ele fala um pouco sobre as suas próprias. Sobre sua filha, que ele não vê há quase dois anos, depois que se mudou para o Canadá, e, dificilmente entra em contato. Sobre sua mulher, que, resolveu abandoná-lo devido a esta sua rotina insana de trabalho. Sobre como tudo mudou desde que voltou para trabalhar no banco, como teve de mudar também. Ficamos conversando por um bom tempo, e é quando ele me cobra alguns projetos, engavetados ou nunca sequer trabalhados.
“Naquele dia que almoçamos com Dennis, com todo aquele papo pesado, eu me lembrei de uma conversa com você, e, hoje, ficou ainda mais claro isso tudo. Nós conversamos sobre como a administração é cega as necessidades dos funcionários, como pareciam inertes e incapazes de lembrar daquele tempo em que estiveram atrás de uma mesa padronizada e atendendo cliente após cliente com reclamações absurdas e objetivos e metas abusivas para se cumprir e... Como tudo isso parece distante e diferente agora que estamos aqui. Agora que somos a diretoria, que cuidamos da administração, por bem ou mal, e parecemos cegos e incapazes de enxergar os problemas daqueles que estão lá embaixo, fazendo o serviço pesado... E precisando de umas poucas palavras, de um pouco de apoio e direcionamento, não mais e nada mais que nós precisamos... Repostas e condições para o bom desempenho e fluxo do serviço a ser desempenhado”.
Há um silêncio introspectivo por um instante, lembrando dessas coisas, e de tantas outras analises que fiz e paralelos que tracei sobre o assunto, e que nunca mostrei a alguém. Começamos a traçar alguns planos e projetos para melhorar a comunicação interna, algo que só no dia seguinte poderemos saber se tem qualquer mérito ou valia, afinal estávamos bastante animados, e não mais exatamente coesos.
Um dia incrível. E ainda havia o segundo tempo...
Depois de um segundo susto, os médicos dizem que não existem motivos para preocupação, e, Marina estaria em casa ainda na quarta-feira, e tanto ela quanto a criança estavam em perfeitas condições. Ela estava estabilizada e, mesmo com o contratempo do fim de semana, os médicos deixaram bem claro que ela está, se é que possível, ainda melhor que antes. Ela só precisava se alimentar um pouco melhor, e tentar se mover um pouco mais em casa. A gravidez, obviamente ainda era de risco, diante de tudo que aconteceu até agora, mas as perspectivas mais otimistas diziam que em quatro meses e meio quando nossa menina está programada, e a cesariana minimiza os riscos inerentes do nascimento a quase zero.
Em muito tempo, pela primeira vez ouço boas notícias, e parece que a nuvem cinzenta começa a se dissipar.
Durmo como uma criança, mesmo que desconfortável e jogado ao lado de Marina no leito do hospital... Não importa. A maré estava mudando. Podia finalmente colocar a cabeça num travesseiro e descansar.
***
Marina está se recuperando do último susto que tivemos, que, não foi nada grave, apesar de precisarmos manter enfermeiras em casa por, pelo menos mais duas semanas. Sei que não tenho nada contra as duas, ou mesmo as visitas freqüentes de minha mãe ou minha sogra, e, com toda a certeza, não tenho a fibra necessária para fazer tanto do serviço que todas elas fazem, mas não me sinto bem naquela casa tão constantemente cheia, e, eu ainda tão vazio. Ciúmes , talvez. Acho que ela anda recebendo tanta atenção que sinto como se ela não precisasse de mim... É patético, eu sei. E é algo sobre o que eu havia lido ou visto anteriormente, sobre se sentir um estranho na própria casa, e, agora, eu sentia.
Precisava de ar, e após passar por alguns lugares, acabo na universidade, conversar com a única pessoa que julgo capaz de me abstrair de minha situação, com algum debate bastante prolífico sobre algum assunto do qual eu provavelmente pouco ou nada saberia...
_ Já assistiu “A noite dos mortos-vivos”? Filme antigo, de 1968, preto e branco, qualidade bastante questionável, diálogos forçados, atuações ainda mais... Enfim, nenhum primor, mas com certeza uma boa fantasia, uma boa viagem.
Muito se discute sobre o significado do filme, sobre possibilidades, imagens e pretextos. Alguns dizem que a casa é uma metáfora ao cérebro humano, com as pessoas representando idéias, pensamentos, fantasias e sonhos. A aproximação de pensamentos ruins, negativos, tenta corromper a estrutura deste cérebro, mas não é capaz de sobreviver por muito tempo. Mesmo que com alguns sacrifícios.
Outros supõem que é uma crítica velada à guerra fria. Os zumbis sem alma (uma vez que é comum associar o comunista russo a imagem de um ateu), coração ou piedade são os comunistas, agindo por impulso, sem pensar ou incapazes disso, e, levemente semelhante, alguns dizem que é na verdade um questionamento à sociedade de consumo moderna, à necessidade de se situar e pertencer, e fazer parte de um grupo – o que faz um pouco menos de sentido que a teoria da guerra fria, pelo contexto histórico, do período em que a película foi lançada.
Ou uma análise do medo da natureza humana, da brutalidade. Os zumbis podem ser vistos como tudo que causa repulsa na humanidade, tudo que folgamos em crer abandonar.
Também pode ser somente um filme sobre monstros sobrenaturais combatendo pessoas normais, como todo filme de monstros ou, caso prefira, de ação e com monstros, e, tão somente isso.
Qual análise está correta? Qual é mais próxima da imagem criada e inspirada pelo autor? O que ele realmente quis dizer com isso? Talvez existam mais possibilidades, porque não? Isso muito me lembra de alguns de meus alunos, quando iniciam sua jornada pela literatura tendem a me perguntar minha opinião sobre Dom Casmurro.
Ele faz um silêncio profético, daqueles para fazer suspense, e nada mais que isso. Fica olhando para o nada, como se procurasse um bom chá, do qual beberia um gole pequeno apenas para sentir o gosto. Fico olhando por alguns instantes, tentando sorver o monólogo, e, após pouco tempo emendo: “E o que responde?”
_ Oras, que Machado não quis dar a resposta.
Por um tempo fico ali, olhando para aquele homem calmo e sereno, irônico em sua resposta, e, ainda assim, tão verdadeiro. Eu rio, discretamente, mas uma risada gostosa, como há muito tempo não tenho experimentado. Ele entra no embalo, algum tempo depois, e, então retoma seu trem de pensamento.
_ São tantas perguntas, e, honestamente, cada uma e todas elas só podem ser respondidas pela simplicidade da interpretação pessoal – algo que muitos estudiosos e pensadores se mostram incapazes de fazer. Às vezes o cérebro humano busca lógica no caos, e, às vezes até encontra em forma fractal ou teorética... E algumas vezes precisamos forçar uma interpretação para que tudo passe a fazer sentido.
Quer dizer, assassinos procuraram sentido nas palavras do ‘Apanhador no campo de centeio’ para justificar suas ações. Outros lunáticos a buscam na Bíblia. Outros são capazes de enxergar coisas que não estavam ali e que, por si só são capazes de abrir perspectivas novas e trazer explicações para a vida moderna, seja a mensagem ambiental de Moby Dick, ou os dilemas psicológicos de Édipo Rei. De toda forma os livros são apenas o que são, e são histórias. Contos, fábulas, passagens de vida de pessoas reais e ficcionais. Contos para divertir, contos para informar, contos para moldar... Histórias.
Desde tempos primórdios o homem tem como grande e notável tradição a de contar histórias e distribuir conhecimento e explicações sobre o mundo externo. Sonhos, revelações... A imaginação como método de compreender o inexplicável, como tanto se fez até a concepção do método socrático e científico...
Uma história medíocre pode entreter. Uma grande história é arte.
Ele faz uma expressão de paisagem, indiferente a intensidade de tudo o que acabar de dizer, e fica ali, somente olhando em minha direção. Curioso, eu não consigo me controlar e pergunto: _ Então o senhor está me dizendo que não existe nenhum sentido oculto? Nenhuma mensagem secreta ou propósito?
_ Oras... E por acaso foi isso que eu disse? – encerra Borges enigmático.
***
Outubro chega ao fim, e com ele o fim de uma era. Nada mais do Cosette resta.
Nome, marca, esperanças, sonhos... Nada.
E é nesse tom de despedida, aliado a partida de alguns tantos outros de nossos amigos demitidos nos últimos meses e semanas, que uma festa se agenda. Ao meio dia faríamos um grande almoço, sem hora de retorno, todos os funcionários, amigos e familiares, colaboradores e quem mais se dispusesse a comparecer. Um restaurante grande e confortável, elegante, requintado e particularmente, acho que com as melhores carnes que eu já provei em minha vida. O cordeiro deles é algo de outra realidade. Nunca encontrei algo sequer parecido.
Marina se recupera muito bem, sem ninguém mais a pajeando vinte e quatro horas por dia, e conseguiu por em dia seu trabalho e voltar a seu ritmo. Por isso resolvo buscá-la, afinal, ela e nós merecemos uma comemoração destas mais do que nunca.
Vê-la sorrindo, calma e tranqüila, celebrando ao meu lado... Isso enche meu coração de uma esperança que não estava mais aqui. Existe tanta coisa que eu gostaria de dizer para ela... O quanto eu senti a falta de tê-la aqui, ao meu lado, de poder ver esse sorriso fantástico, esses olhos brilhando em minha direção... Mas não consigo. Minha capacidade se resume a apertá-la um pouco mais forte, um pouco mais perto de mim. Ela até estranha, pergunta “O que foi?”. Nada respondo, só fico ali, olhando para ela, com um sorriso nos lábios e os olhos levemente mareados. Não é preciso mais que isso.
Por muito tempo venho buscando um tempo como esse. Calmo, alegre, com pessoas de quem gosto e alheio a meus problemas, a minhas preocupações. Essa tarde é exatamente isso. Marina ao meu lado, e, por agradáveis horas somos o mesmo velho casal de antes, que não tinha que se preocupar com as contas do hospital e das enfermeiras e com a saúde... Nada mais que um momento para curtir o momento.
É um dia perfeito.
Um final perfeito.

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