Minhas queridas, meus anjos;
Espero que ainda se lembrem de mim, e
que saibam que eu jamais me esqueci de vocês. Jamais. Não passa um dia sequer
sem que meus pensamentos pousem sobre seus belos olhos castanhos, que brilham
como faróis para afastar as neblinas que minha vida se tornou, que esse belo
país se tornou.
Mary, você com certeza não reconheceria
o lugar.
Cada sombra parece carregar em si um
pedaço do próprio inferno. Londres se tornou um lugar perigoso para se andar à
noite, e eu e meu inestimável parceiro parecemos ter cada vez mais trabalho,
cada vez mais perigos para enfrentar, crimes para desvendar e inocentes para
proteger...
... Mas isso não é verdade, não é mesmo,
John?
Mary, me perdoe. Martha, você que talvez
mal vá lembrar do rosto de seu pai além de fotografias e trapos mal rascunhados
que por peripécias do destino viriam a se tornar meu trabalho final.
A verdade é que sou apenas um homem
velho e cansado, acostumado demais a uma vida nada monótona de aventuras e
loucuras quase sem explicação que a idéia de diminuir a velocidade, procurar
conforto e paz parecesse uma insanidade maior. Talvez sejam os mesmos demônios
que me afastaram da medicina, e que me atormentam da idéia de assumir
responsabilidades. Ou somente covardia.
Após uma estranha noite que pretendo
relatar aqui, creio que seja covardia, e peço antecipadamente perdão pela
verborragia que toma conta de minha pena enquanto expresso a vontade de dividir
com vocês está história, que, se não servir para nada, pelo menos sirva para
ajudá-la, Mary, a colocar Martha para dormir.
Tudo começa com uma intrincada série de
eventos que não importam realmente, de uma investigação que eu de fato não
posso relevar nada por obrigações sigilosas com nosso cliente, e, após perder
um coche na área de Crouch End, me vejo preso por uma vasta e espessa camada de
fog carregando consigo o frio da noite, e me trazendo o arrependimento por não
usar um terno mais quente que este meu velho companheiro de tweed. Tremendo e
pesaroso enquanto vejo minha situação em retrospecto, resolvo acender um
cigarro para acalmar meus nervos, e sei que é um hábito deplorável que eu há
tempos vinha tentando abandonar. Perdão, venho. Venho tentando abandonar. Como
dizia, era uma noite terrível, e mesmo a lua parecia querer se esconder, só
dando um breve ar de sua graça e logo voltando para trás da cortina escura no
céu, que além dela não mostrava sinal de estrela ou corpo celeste qualquer.
Era, afinal de contas, uma noite londrina. Vi ao longe uma lamparina acesa,
indicando uma taverna aberta, ao que achei prudente e mais seguro adentrar ao
estabelecimento enquanto aguardava por outro coche, inclusive podendo pedir
algo para me ajudar a aquecer um pouco. Que mal há nisso?
O lugar parecia retirado de outra era,
como se a névoa o trouxesse diretamente do século XIV ou XV. Sentia-me como se
adentrasse uma antiga estalagem. Paredes feitas com pesadas pedras sobrepostas
e um telhado amadeirado, completado com galhos. Lamparinas e tochas iluminavam
o local, que curiosamente parecia muito mais amplo no seu interior que do que
eu vi do lado de fora. E um lugar lotado de rostos solitários e grupos
esparsos.
Havia pessoas incríveis, de tantas
cores, tons e, tudo parecia tão eclético e fantástico que eu levaria anos para
descrever tudo o que vi, supondo que eu pudesse me lembrar de tudo. Podia notar
um grupo de pessoas pálidas, incrivelmente brancas, que apesar da falta de
semelhanças físicas evidentes indicavam possuir algum grau de parentesco.
Algumas figuras curiosas cantavam em nome do lorde da dança, encabeçados por um
homem grande e forte, sempre com um canecão de vinho e a cada vez que passava
por mim, um chapéu diferente. Um senhor se escondia mais ao fundo, próximo as
paredes, quase apenas uma sombra negra, um vulto de um homem corpulento com uma
vasta barba, e que parecia fazer o chão tremer quando sua voz grave começasse a
entoar. Uma mulher cega usava um baralho de tarô para ler cartas a um homem de
sobretudo, que fumava um cigarro após o outro. Podia até jurar que o Bardo
estava ali em algum canto conversando com uma pequena multidão ao seu redor,
contando histórias e fábulas, enquanto uma dama dizia com certeza que todo o
brilho é ouro. Um grupo peculiar bebia chá com um homem que parecia ter duas
cabeças acompanhado de uma bela garota que carregava uma toalha sobre os ombros
e uma forma que eu não consegui distinguir bem, e que mesmo ao longe me parecia
deprimida. Tantas pessoas e tantas histórias.
Que lugar, Mary! Que lugar. Alguns me
chamariam de louco, ou apontariam que não passa de um sonho louco ou algo do
tipo. Pessoas mais maliciosas acusariam o álcool ou o ópio, mas você bem sabe
que não faço uso de tais substâncias. Mas foi real. Minha mente não é assim tão
criativa, minha querida. Jamais foi.
Como poderia eu criar alguém como aquele
peculiar homem com um sobretudo claro sobre um terno azulado, com uma expressão
agradavelmente familiar e calçados confusamente destoantes de suas vestes que
ao se aproximar de mim, sem tirar o olhar do entorno, dizia: “Brilhante,
simplesmente brilhante”, com um sorriso incrivelmente natural, e uma expressão
de fascínio que dificilmente alguém seria capaz de fingir. Sua empolgação era
quase palpável.
“Um lugar fascinante, de fato”, eu lhe
disse, estendendo a mão para cumprimentá-lo e iniciar as apresentações.
“Um ponto de convergência como este”,
iniciou ele, talvez intrigado demais com a situação para prestar atenção aos
bons modos. Lembra alguém que conheço, você diria, não é mesmo, Mary? Sim,
sim... Eles de fato são bastante parecidos, com esta habilidade incrivelmente
irritante de desembestar a falar tantas palavras por minuto quanto se poderia
achar impossível que alguém seja capaz de ouvir, muito menos se importar. E
curiosamente fazem sentido.
Conversamos um bocado enquanto ele
explicava como aquele lugar estava ligado a todos os pontos do universo
simultaneamente, devido a eventos catastróficos que podem acontecer a qualquer
momento, ou podem já ter acontecido, e, talvez eles reverberem de alguma
maneira na forma como nós observamos o mundo às vezes, e algo sobre uma
tempestade que estava se formando ou de fato ocorrendo lá fora, o motivo pelo
qual a estalagem surgia para todos aqueles personagens inusitados.
De uma janela pequena, e que ficou ainda
menor quando toda uma multidão de curiosos decidiu se espremer para vislumbrar
um feixe do que acontecia lá fora, e era algo absurdamente lindo, com toda a
certeza único. Era como se todo o universo estivesse nascendo e ressurgindo ali
fora, e nós, poucos sortudos fossemos as testemunhas. Pelo menos era o que
parecia do pouco que pude ver, e que me tirou o fôlego.
“Fogos
de artifício para um belo show, não?”, disse o homem de sobretudo que há pouco conversava
com a mulher cega. Ele acendia um novo cigarro sem a menos terminar o atual, e
continuava a tragar compulsivamente. “Anime-se, rapaz. Não é todo dia que se vê
o fim dos mundos e sobrevive para reescrever a história!”. Sai dali o mais
breve que pude, e procurei algum lugar mais calmo para que pudesse recompor
meus pensamentos.
Zanzei pelos corredores por algum tempo
ainda bastante confuso e aturdido, até me ver quase que hipnotizado pelo
semblante singelo me fitando. “Você nunca sabe o tempo que tem, John”, me dizia
a moça, clara como a neve e com trajes negros, e uma expressão um tanto triste,
e ainda assim confortadora. Falava de maneira espontânea, tentando ser
descontraída por mais sério que o teor de sua mensagem carregasse. “Não passe o
que lhe resta da vida correndo de quem te ama”.
E ela sumiu, assim como a estalagem, o
universo que se formava e os homens, mulheres, crianças e coisas estranhas que
perambulavam pelo lugar. E lá estava eu de volta ao Crouch End, com a fumaça
dissipando e o mundo voltando ao normal.
De fato havia muita coisa acontecendo ao
mesmo tempo. Se tivesse vintes anos para analisar tudo, provavelmente ainda me
faltaria tempo. Homens, animais e plantas exóticas e extraordinárias.
E tudo ali estava no seu lugar. Tudo
funcionava perfeitamente. Toda aquela confusão, toda aquela bagunça, aquele
festival de situações tipicamente peculiares e sutilmente bizarras estava ali,
funcionando perfeitamente como um relógio. Cada excentricidade, cada vírgula
era um perfeito complemento a outro detalhe, como cada pincelada de um grande
mestre, como as palavras de um poeta, o conjunto de notas que configuram uma
obra...
Mas na verdade... Já não é o mundo todo
assim?
...
Com amor,
J. H. W.
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