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29 de maio de 2013

Entropia no Reino Unido


Minhas queridas, meus anjos;
Espero que ainda se lembrem de mim, e que saibam que eu jamais me esqueci de vocês. Jamais. Não passa um dia sequer sem que meus pensamentos pousem sobre seus belos olhos castanhos, que brilham como faróis para afastar as neblinas que minha vida se tornou, que esse belo país se tornou.
Mary, você com certeza não reconheceria o lugar.
Cada sombra parece carregar em si um pedaço do próprio inferno. Londres se tornou um lugar perigoso para se andar à noite, e eu e meu inestimável parceiro parecemos ter cada vez mais trabalho, cada vez mais perigos para enfrentar, crimes para desvendar e inocentes para proteger...
... Mas isso não é verdade, não é mesmo, John?
Mary, me perdoe. Martha, você que talvez mal vá lembrar do rosto de seu pai além de fotografias e trapos mal rascunhados que por peripécias do destino viriam a se tornar meu trabalho final.
A verdade é que sou apenas um homem velho e cansado, acostumado demais a uma vida nada monótona de aventuras e loucuras quase sem explicação que a idéia de diminuir a velocidade, procurar conforto e paz parecesse uma insanidade maior. Talvez sejam os mesmos demônios que me afastaram da medicina, e que me atormentam da idéia de assumir responsabilidades. Ou somente covardia.
Após uma estranha noite que pretendo relatar aqui, creio que seja covardia, e peço antecipadamente perdão pela verborragia que toma conta de minha pena enquanto expresso a vontade de dividir com vocês está história, que, se não servir para nada, pelo menos sirva para ajudá-la, Mary, a colocar Martha para dormir.
Tudo começa com uma intrincada série de eventos que não importam realmente, de uma investigação que eu de fato não posso relevar nada por obrigações sigilosas com nosso cliente, e, após perder um coche na área de Crouch End, me vejo preso por uma vasta e espessa camada de fog carregando consigo o frio da noite, e me trazendo o arrependimento por não usar um terno mais quente que este meu velho companheiro de tweed. Tremendo e pesaroso enquanto vejo minha situação em retrospecto, resolvo acender um cigarro para acalmar meus nervos, e sei que é um hábito deplorável que eu há tempos vinha tentando abandonar. Perdão, venho. Venho tentando abandonar. Como dizia, era uma noite terrível, e mesmo a lua parecia querer se esconder, só dando um breve ar de sua graça e logo voltando para trás da cortina escura no céu, que além dela não mostrava sinal de estrela ou corpo celeste qualquer. Era, afinal de contas, uma noite londrina. Vi ao longe uma lamparina acesa, indicando uma taverna aberta, ao que achei prudente e mais seguro adentrar ao estabelecimento enquanto aguardava por outro coche, inclusive podendo pedir algo para me ajudar a aquecer um pouco. Que mal há nisso?
O lugar parecia retirado de outra era, como se a névoa o trouxesse diretamente do século XIV ou XV. Sentia-me como se adentrasse uma antiga estalagem. Paredes feitas com pesadas pedras sobrepostas e um telhado amadeirado, completado com galhos. Lamparinas e tochas iluminavam o local, que curiosamente parecia muito mais amplo no seu interior que do que eu vi do lado de fora. E um lugar lotado de rostos solitários e grupos esparsos.
Havia pessoas incríveis, de tantas cores, tons e, tudo parecia tão eclético e fantástico que eu levaria anos para descrever tudo o que vi, supondo que eu pudesse me lembrar de tudo. Podia notar um grupo de pessoas pálidas, incrivelmente brancas, que apesar da falta de semelhanças físicas evidentes indicavam possuir algum grau de parentesco. Algumas figuras curiosas cantavam em nome do lorde da dança, encabeçados por um homem grande e forte, sempre com um canecão de vinho e a cada vez que passava por mim, um chapéu diferente. Um senhor se escondia mais ao fundo, próximo as paredes, quase apenas uma sombra negra, um vulto de um homem corpulento com uma vasta barba, e que parecia fazer o chão tremer quando sua voz grave começasse a entoar. Uma mulher cega usava um baralho de tarô para ler cartas a um homem de sobretudo, que fumava um cigarro após o outro. Podia até jurar que o Bardo estava ali em algum canto conversando com uma pequena multidão ao seu redor, contando histórias e fábulas, enquanto uma dama dizia com certeza que todo o brilho é ouro. Um grupo peculiar bebia chá com um homem que parecia ter duas cabeças acompanhado de uma bela garota que carregava uma toalha sobre os ombros e uma forma que eu não consegui distinguir bem, e que mesmo ao longe me parecia deprimida. Tantas pessoas e tantas histórias.
Que lugar, Mary! Que lugar. Alguns me chamariam de louco, ou apontariam que não passa de um sonho louco ou algo do tipo. Pessoas mais maliciosas acusariam o álcool ou o ópio, mas você bem sabe que não faço uso de tais substâncias. Mas foi real. Minha mente não é assim tão criativa, minha querida. Jamais foi.
Como poderia eu criar alguém como aquele peculiar homem com um sobretudo claro sobre um terno azulado, com uma expressão agradavelmente familiar e calçados confusamente destoantes de suas vestes que ao se aproximar de mim, sem tirar o olhar do entorno, dizia: “Brilhante, simplesmente brilhante”, com um sorriso incrivelmente natural, e uma expressão de fascínio que dificilmente alguém seria capaz de fingir. Sua empolgação era quase palpável.
“Um lugar fascinante, de fato”, eu lhe disse, estendendo a mão para cumprimentá-lo e iniciar as apresentações.
“Um ponto de convergência como este”, iniciou ele, talvez intrigado demais com a situação para prestar atenção aos bons modos. Lembra alguém que conheço, você diria, não é mesmo, Mary? Sim, sim... Eles de fato são bastante parecidos, com esta habilidade incrivelmente irritante de desembestar a falar tantas palavras por minuto quanto se poderia achar impossível que alguém seja capaz de ouvir, muito menos se importar. E curiosamente fazem sentido.
Conversamos um bocado enquanto ele explicava como aquele lugar estava ligado a todos os pontos do universo simultaneamente, devido a eventos catastróficos que podem acontecer a qualquer momento, ou podem já ter acontecido, e, talvez eles reverberem de alguma maneira na forma como nós observamos o mundo às vezes, e algo sobre uma tempestade que estava se formando ou de fato ocorrendo lá fora, o motivo pelo qual a estalagem surgia para todos aqueles personagens inusitados.
De uma janela pequena, e que ficou ainda menor quando toda uma multidão de curiosos decidiu se espremer para vislumbrar um feixe do que acontecia lá fora, e era algo absurdamente lindo, com toda a certeza único. Era como se todo o universo estivesse nascendo e ressurgindo ali fora, e nós, poucos sortudos fossemos as testemunhas. Pelo menos era o que parecia do pouco que pude ver, e que me tirou o fôlego.
 “Fogos de artifício para um belo show, não?”, disse o homem de sobretudo que há pouco conversava com a mulher cega. Ele acendia um novo cigarro sem a menos terminar o atual, e continuava a tragar compulsivamente. “Anime-se, rapaz. Não é todo dia que se vê o fim dos mundos e sobrevive para reescrever a história!”. Sai dali o mais breve que pude, e procurei algum lugar mais calmo para que pudesse recompor meus pensamentos.
Zanzei pelos corredores por algum tempo ainda bastante confuso e aturdido, até me ver quase que hipnotizado pelo semblante singelo me fitando. “Você nunca sabe o tempo que tem, John”, me dizia a moça, clara como a neve e com trajes negros, e uma expressão um tanto triste, e ainda assim confortadora. Falava de maneira espontânea, tentando ser descontraída por mais sério que o teor de sua mensagem carregasse. “Não passe o que lhe resta da vida correndo de quem te ama”.
E ela sumiu, assim como a estalagem, o universo que se formava e os homens, mulheres, crianças e coisas estranhas que perambulavam pelo lugar. E lá estava eu de volta ao Crouch End, com a fumaça dissipando e o mundo voltando ao normal.
De fato havia muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Se tivesse vintes anos para analisar tudo, provavelmente ainda me faltaria tempo. Homens, animais e plantas exóticas e extraordinárias.
E tudo ali estava no seu lugar. Tudo funcionava perfeitamente. Toda aquela confusão, toda aquela bagunça, aquele festival de situações tipicamente peculiares e sutilmente bizarras estava ali, funcionando perfeitamente como um relógio. Cada excentricidade, cada vírgula era um perfeito complemento a outro detalhe, como cada pincelada de um grande mestre, como as palavras de um poeta, o conjunto de notas que configuram uma obra...
Mas na verdade... Já não é o mundo todo assim?
...
Com amor,
J. H. W.

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